S.
Miguel de Seide, 30 de Julho de 1943
– Este
desgraçado Camilo nem na morte tem descanso, entendo por descanso
uma camada de cinza leve a cobrir pela eternidade fora as agruras
mais pungentes e os instrumentos mais aguçados da tortura de cada
um. Miserável em vida, miserável continua na lembrança do país
que o viu nascer e lhe perpetuou o nome escancarando aos olhos da
posteridade as suas domésticas misérias. É difícil a uma nação
que desconhece ou despreza os seus grandes homens em vida doirar-lhes
depois a memória. Se viveram em pocilgas, mal poderão depois ser
relembrados em castelos, a não ser nas academias, onde a hipocrisia
supre tudo, com carpideiras oficiais, louros falsos e mármores de
gesso. Mas há uma maneira decente de sanar as indecências: é
esquecê-las. É passar um pano pela ardósia, e não falar mais
nisso. Agora julgar que se fez qualquer
coisa de limpo eternizando a privada dum génio, é que me parece um
crime. A função duma memória destas é não deixar que a poeira
dos móveis, dos soalhos e dos tectos simbolize a indiferença dos
vindouros. É manter limpa e aliciante a presença do criador diante
dos olhos novos de quem vem, de maneira que o eterno brote
naturalmente do cotidiano, como a beleza brotava da sua pena. Da casa
dum poeta é preciso que saia poesia. E se não sai, é urgente
arrasá-la. Não é o Camilo do Amor de Perdição
que aqui está vivo e revelado. É um inválido, pobre e desprezado
português que não escreveu coisa alguma. Via mal, usava umas palas
negras, deu um tiro na cabeça, etc., mas não se vislumbra que
tivesse génio nem que fosse um dos maiores desta terra.
Miguel Torga, “Diário
III”, pp. 13-15, 1954, Coimbra.
Sem comentários:
Enviar um comentário