30/07/2019

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S. Miguel de Seide, 30 de Julho de 1943 Este desgraçado Camilo nem na morte tem descanso, entendo por descanso uma camada de cinza leve a cobrir pela eternidade fora as agruras mais pungentes e os instrumentos mais aguçados da tortura de cada um. Miserável em vida, miserável continua na lembrança do país que o viu nascer e lhe perpetuou o nome escancarando aos olhos da posteridade as suas domésticas misérias. É difícil a uma nação que desconhece ou despreza os seus grandes homens em vida doirar-lhes depois a memória. Se viveram em pocilgas, mal poderão depois ser relembrados em castelos, a não ser nas academias, onde a hipocrisia supre tudo, com carpideiras oficiais, louros falsos e mármores de gesso. Mas há uma maneira decente de sanar as indecências: é esquecê-las. É passar um pano pela ardósia, e não falar mais nisso. Agora julgar que se fez qualquer coisa de limpo eternizando a privada dum génio, é que me parece um crime. A função duma memória destas é não deixar que a poeira dos móveis, dos soalhos e dos tectos simbolize a indiferença dos vindouros. É manter limpa e aliciante a presença do criador diante dos olhos novos de quem vem, de maneira que o eterno brote naturalmente do cotidiano, como a beleza brotava da sua pena. Da casa dum poeta é preciso que saia poesia. E se não sai, é urgente arrasá-la. Não é o Camilo do Amor de Perdição que aqui está vivo e revelado. É um inválido, pobre e desprezado português que não escreveu coisa alguma. Via mal, usava umas palas negras, deu um tiro na cabeça, etc., mas não se vislumbra que tivesse génio nem que fosse um dos maiores desta terra.

Miguel Torga, “Diário III”, pp. 13-15, 1954, Coimbra.

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