07/12/2018

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“Os jovens consideravam que era necessário voltar às raízes da sabedoria e que a sociedade industrializada e a escolaridade obrigatória tinham alterado a relação do Homem com o verdadeiro conhecimento. E diziam que o que dantes qualquer criança sabia hoje já só era do conhecimento de meia dúzia de especialistas e que antigamente as crianças conheciam diversas plantas medicinais e sabiam fazer armadilhas para apanhar coelhos e fazer bolas de erva fresca entrelaçada e enrolar cigarros com folhas de morangueiro e bochechar a boca com uma decocção de urtigas para não lhes darem uma seca em casa. As pessoas mais velhas por seu lado diziam que o que dantes só meia dúzia de especialistas tinha conhecimento hoje qualquer criança sabia por exemplo a raiz quadrada etc. Mas os jovens consideravam que a raiz quadrada de nada servia e passaram a viajar para a Índia e para o Nepal para se familiarizar com a sabedoria oriental e diziam que a moral cristã escravizava as pessoas e que as pessoas na Europa só sabiam contar as árvores ao passo que os Indianos viam a floresta. E não queriam viver num mundo violento e miserável e poluído e partiam para zonas desabitadas na América ou na Escócia ou em França onde fundavam comunas e fumavam haxixe e marijuana e copulavam e entoavam cânticos e ensinavam aos filhos como viver em harmonia com a natureza e defendiam as tradições e tamborilavam em pandeiretas e dançavam à volta de fogueiras e apregoavam ideias.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 94-5, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

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04/12/2018

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“No final do século as pessoas nos países democráticos começaram a ficar com a impressão de que a democracia e a sociedade de consumo de certa forma também contribuíam para o eclipse da memória e diziam que o excesso de informação era tão perigoso como a censura comunista e que as pessoas estavam alheadas das tradições e das raízes etc. e que a sociedade de consumo tendia inevitavelmente para o esquecimento devido ao seu hedonismo. E que a longo prazo o excesso de informação acabaria por ser ainda mais perigoso que a censura comunista porque não provocava uma reacção e a vontade de resistir mas o cansaço e a resignação.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pág. 93, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

03/12/2018

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Vila Nova, 3 de Dezembro de 1935 Morreu Fernando Pessoa. Mal acabei de ler a notícia no jornal, fechei a porta do consultório e meti-me pelos montes a cabo. Fui chorar com os pinheiros e com as fragas a morte do nosso maior poeta de hoje, que Portugal viu passar num caixão para a eternidade sem ao menos perguntar quem era.

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 19, 1941, Coimbra.

02/12/2018

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“Os sociólogos diziam que a neurose e a depressão eram reflexos da transformação cultural da sociedade ocidental no século XX. E que a neurose era o reflexo de uma sociedade em que dominavam a disciplina e a hierarquia e as proibições sociais e que se tratava de uma expressão patológica do sentimento de culpa. E que a depressão era uma expressão patológica do sentimento de impotência e da consciência do vazio. E que primeiro as pessoas ficavam neuróticas porque teriam gostado de fazer coisas proibidas mas não puderam porque eram proibidas e quando violaram a proibição sentiam-se culpadas. E mais tarde quando tudo era permitido começaram a ser depressivas porque não sabiam o que queriam no fundo fazer e transformaram-se em novos sujeitos patológicos e os psiquiatras diziam que o sujeito patológico tinha mudado completamente de figura. E os sociólogos diziam que a depressão era uma compensação para um mundo em que a liberdade individual já não representava um ideal a alcançar de forma dolorosa mas um obstáculo que devemos dolorosamente ultrapassar. E que a neurose era a angústia de violar as proibições e a depressão a angústia perante o peso da liberdade. E algumas pessoas queriam procurar em tudo algum sentido e padeciam de frustração existencial. E os psicólogos diziam que a procura do sentido da vida se deve à necessidade de expulsar dela o vazio e a morte e que isso permitia viver mais intensamente. E no final dos anos oitenta a Organização Mundial da Saúde emitiu uma declaração dizendo que a depressão era a patologia mais comum no mundo ocidental. Mas dos Estados Unidos da América começaram a infiltrar-se na Europa novas proibições sociais por exemplo que não se deve fumar ou abusar do sal ou contar piadas sobre homossexuais ou viver ociosamente etc.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 77-8, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

30/11/2018

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“Quando as pessoas deixaram de acreditar em Deus começaram a procurar uma forma de exprimir que o mundo era absurdo e inventaram o futurismo e o expressionismo e o dadaísmo e o existencialismo e o teatro absurdo. E os dadaístas quiseram acabar com a arte e faziam obras de arte com base em coisas com que antigamente não se faziam como arames e fósforos e palavras de ordem e títulos de jornal e listas telefónicas etc. e diziam que se tratava de uma arte nova e absoluta. Os futuristas escreviam versos cheios de interjeições como por exemplo KARAZUK ZUK ZUK DUM DUM DUM e faziam a apologia de uma tipografia expressiva e os expressionistas e os dadaístas escreviam versos em línguas novas e desconhecidas para mostrar que todas as línguas se equivaliam fossem ou não compreensíveis por exemplo BAMBLA Ó FALLI BAMBLA e os surrealistas por seu lado apregoavam a escrita automática e metáforas pouco habituais como por exmplo A MINHA BANHEIRA DE CORTIÇA É COMO O TEU OLHO DE MINHOCA e explicavam porque o sentido desse verso jorrava dele de forma espontânea e que era precisamente isso que era físico e metafísico ao mesmo tempo. Os existencialistas diziam que a metafísica estava em decadência e tudo era subjectivo mas que a objectividade ainda assim existia e que lidávamos mal com a situação porque o mais importante era a intersubjectividade. E que o que estava em causa era que tudo fosse autêntico e que a história e o seu curso decorriam da questão filosófica de saber se o Homem é capaz de comunicar de forma autêntica e se fosse esse o caso a história poderia fazer mais sentido que até então nomeadamente se fosse renovada a instância transcendental. E os linguistas diziam que a comunicação era apenas uma questão do modo de desconstrução e que há maneiras diversas de desconstruir. E as pessoas idosas diziam que a comunicação estava em maus lençóis porque as pessoas já não eram capazes de se olharem nos olhos e que desviavam o olhar mal se encontrava com o de outra pessoa e que hoje em dia as pessoas já só olhavam nos olhos os cegos.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 71-2, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.


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29/11/2018

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E em 1942 os representantes da Cruz Vermelha suíça ficaram a saber das câmaras de gás nos campos de concentração mas decidiram não publicar a notícia porque temiam que os Alemães poderiam abusar disso como pretexto para desacreditar as organizações humanitárias e vedar-lhes o acesso aos campos de prisioneiros e hospitais. E em 1944 os Alemães rodaram para os representantes da Cruz Vermelha e diversas comissões internacionais um documentário sobre a vida no campo de concentração de Terezín. No filme entraram 270 actores e 1600 crianças e vários milhares de figurantes adultos dos quais se excluíram à partida os de cabelo claro porque não tinham um ar suficientemente judeu. O título do filme era QUE BEM QUE SE ESTAVA EM TEREZÍN e neles os judeus iam ao café e cultivavam legumes em pequenas hortas e saltavam à água de cabeça na piscina e iam ao banco levantar dinheiro e aos correios para receber encomendas e escutavam óperas e na biblioteca local debatiam sobre o sentido da civilização europeia. E quando as filmagens terminaram os Alemães organizaram onze transportes especiais e mandaram todos os que participaram no filme para o campo de extermínio em Auschwitz.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 64-5, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

28/11/2018

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“Nos anos cinquenta os protagonistas dos filmes copulavam sobretudo em campos de trigo porque os campos de trigo estavam associados à juventude e à nova vida que esperava os jovens protagonistas e o vento acariciava as espigas e no horizonte punha-se o Sol e os seios das mulheres inchavam e nos anos sessenta os protagonistas dos filmes copulavam nas ondas da maré nas margens do oceano porque isso era romântico e a areia colava-se-lhes à pele e viam-se-lhes os traseiros e acima da água levantava-se a maresia. Nos anos sessenta também surgiram os primeiros filmes pornográficos em que se copulava quase o tempo todo e nos lugares mais diversos. E nas revistas para jovens raparigas as redactoras mais experientes explicavam como fazer sexo oral bem feito etc. E nas revistas para jovens rapazes os redactores mais experientes explicavam como evitar a ejeculação precoce e como enfiar o preservativo sem que a rapariga o notasse. E as agências de publicidade inventavam anúncios para preservativos e reflectiam sobre a melhor forma de se interpelar os jovens espectadores (aqui está um bom exemplo de como seria confuso usar o novo acordo ortográfico: “jovens espetadores” Nota RAR) e houve uma agência que se lembrou de fazer clipes publicitários em que copulavam diversas figuras dos contos de fadas como a Branca de Neve e a Cinderela e princesa Pele de Burro e Xerazade. Também em filmes artísticos cada vez mais se copulava mas os críticos diziam que não era a mesma coisa porque o que estava em causa não era a cópula enquanto tal mas a sua representação. E quando nalgum filme artístico a cópula era abundante diziam que esse filme expressava a nossa actividade entomológica perante o amor e que estava bem assim porque tal nos permitia reflectir melhor sobre o papel da cópula não só no contexto antropológico cultural ou político mas igualmente na vida humana. Nos anos setenta os protagonistas dos filmes copulavam sobretudo dentro de automóveis porque isso era original e a vida não parava de acelerar e os jovens espectadores que não tinham carro podiam assim imaginar o que os esperava na vida. E cada vez mais os homens estavam deitados por baixo e as mulheres estavam montadas em cima deles porque entretanto se tinham emancipado. E nos anos oitenta surgiu o sexo por telefone e os homens marcavam diversos números onde mulheres lhes diziam ao auscultador ESTOU A FICAR MOLHADA ou ENFIA-MO ATÉ AO FUNDO ou DEIXAS-ME SABOREAR? etc.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 60-1, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

Mnemónica...

“Mnemónica para achar o valor de π com 30 decimais

Que J’aime à faire apprendre un nombre utile aux sages;
Immortèl Archimède, artiste ingénieur,
Qui de ton jugement peut donder la valeur?

Pour moi, ton problème eut de féconds avantages!…

3,141592653589793238462643383279”


Edmundo B. Bispo, “AbeCedário Profissional e Técnico”, Editores Papelaria Fernandes, 4.ª ed, Lisboa, 1949.

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23/11/2018

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“Os sexólogos diziam que a boneca Barbie era o primeiro instrumento para a construção de uma identidade feminina em rapariguinhas de tenra idade e que o êxito da boneca comprovava que existe uma sexualidade infantil. A sexualidade infantil deu muito que falar no século XX quando se chegou à conclusão que as rapariguinhas de tenra idade gostariam era de ter um filho do papá e que esse filho era no fundo um sucedâneo do pénis porque as rapariguinhas também gostariam de ter um pénis e que a boneca era como um filho do papá e um pénis em simultâneo. Durante muito tempo as bonecas eram unicamente fabricadas como rapariguinhas mas depois também começaram a ser fabricados bonecos rapazinhos e as bonecas rapariguinhas tinham entre as pernas uma fenda e os bonecos rapazinhos um pirilau. E nos anos setenta também começaram a fabricar-se bonecas negras ou castanhas embora a maior parte dos casos quem as comprava fossem pais brancos que assim queriam dar a entender que não eram racistas. O racismo era uma teoria do século XIX que dizia que as raças humanas tinham as suas especificidades inalteráveis e se encontravam em diversos graus de desenvolvimento e que os mais desenvolvidos eram os brancos que tinham um sentido inato para a organização da sociedade e o pensamento abstracto e convívio popular e um racista era uma pessoa que temia que a miscigenação das raças iria pôr em causa as especificidades brancas e minar o potencial genético que permitia aos brancos marcharem na vanguarda da humanidade. As pessoas que não gostavam dos Judeus não eram racista mas anti-semitas porque bem vistas as coisas os Judeus não eram considerados inferiores como por exemplo os Indianos ou os Ciganos etc. A palavra anti-semita apareceu no final do século XIX e designava uma pessoa que não desejava que os Judeus dominassem o mundo e instigava ao seus concidadãos à resistẽncia. O racismo tornou-se um importante problema social após a Segunda Guerra Mundial porque nos países europeus ricos se estabeleceram grandes minorias étnicas que a sociedade tinha de absorver. Existiam dois modelos de absorção de minorias étnicas a integração e a assimilação e a integração era posta em prática por aqueles países que acreditavam que na sociedade civil podem coexistir diversos modelos culturais e que mais vale não misturar um com o outro e preservar as especificidades de cada um e a assimilação era promovida nos países que acreditavam no universalismo e julgavam existir um interesse superior da sociedade a que se encontram subordinadas as especificidades étnicas e culturais. Durante muito tempo o modelo da assimilação era mais bem-sucedido que o da integração porque nos países que o promoviam não havia revoltas raciais como em Inglaterra ou na América mas no final do século quando se começou a falar em globalismo e mundialismo o universalismo passou de moda e cada um queria ter a sua própria identidade e ter orgulho na sua raça não no sentido de raça mas de civilização e viver de acordo com as tradições e voltar às raízes etc.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 56-8, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

21/11/2018

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Leiria, 21 de Novembro de 1939 Hoje em Coimbra encontrei à cabeceira da cama de um amigo, encaixilhado, o If do Kipling. Apesar do poema a meu entender ser uma espécie de grande pílula Pink para uso do Império Britânico, o facto de o ver no lugar onde costuma ficar o Cristo, enterneceu-me. Não era precisamente o povo grego arrastado pelo ritmo do Pean, mas era um homem a benzer-se de manhã com meia dúzia de estrofes. É que isto de versos vai de mal a pior. Qualquer dia, nós, os poetas, temos mesmo que pedir desculpa à vizinhança deste feio vício.
Deste vício que Camões pagou tão caro, e que dá frutos bichosos como as Coplas do Jorge Manrique a Ode à Alegria do Schiller.

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 118, 1941, Coimbra.

18/11/2018

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“A ideia de deportar os Judeus para Madagáscar tinha surgido pela primeira vez em 1905 no livro de um exegeta vienense que tinha estudado o Velho Testamento e zoologia e inventado uma especialidade chamada teozoologia. E tinha chegado à conclusão de que Deus não existia e que o mundo tinha sido criado por deuses que eram da mesma estirpe que os humanos mas que sabiam emitir sinais eléctricos e dominavam a telapatia e eram imortais e espirituais e que com o avançar do tempo tinham começado a cruzar-se com os seres humanos e os animais e se tinham tornado mortais. E dizia que quem estava mais próximo dos deuses e da primeira geração dos homens divinos eram os Arianos nos quais ainda se podiam detectar vestígios da força electrónica e dos neutrões telepáticos e propunha a deportação dos Judeus para Madagáscar e o estabelecimento na Alemanha de ZUCHTKLÖSTER de conventos de criação onde mulheres alemãs seriam fecundadas por machos arianos e assim haveria de se recriar pela selecção genética o Homem-deus que iria comunicar telepaticamente pela força do pensamento e das descargas eléctricas. Os nazis acabaram por concluir que a deportação para Madagáscar iria custar dinheiro que seria necessário para custear o esforço de guerra e em 1942 decidiram que a partir daí a solução final iria consistir no extermínio dos Judeus por todos os meios ao seu dispor.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 42-43, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

17/11/2018

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Coimbra, 17 de Novembro de 1939 Nova ida a Conímbriga. Mas é escusado insistir. A arqueologia, levada ao caco, reduzida a uma pedra esfarelada, faz-me sentar na primeira sombra, de onde me ponho a imaginar no pó das ruínas a vida que nelas palpitou.
Foi o que hoje aconteceu. A olhar de longe aquela muralha que cortou a cidade ao meio, ocorreu-me que ela era, afinal, uma das tantas linhas Maginot que esta velha humanidade tem construído. Mais sgnificativo que as banheiras e os mosaicos, pareceu-me o medo que fez levantar aquela cerca de pedra.
E acabei longe dali, numa abstracção: que tudo o que é realmente grande não tem muros. Que, na Idade Média, em que tanta parede se fez, só o que saíu fora das ameias ficou eterno: os trovadores e os peregrinos. A poesia e a fé.

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 115, 1941, Coimbra.

12/11/2018

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“O primeiro genocídio do século XX ocorreu na Turquia em 1915. O Governo começou por prender e fuzilar seiscentas famílias arménias que viviam em Constantinopla e depois desarmou e fuzilou os soldados de origem arménia que prestavam serviço no exército turco. E todos os arménios receberam ordens para abandonar as cidades e aldeias num prazo de vinte e quatro ou quarenta e oito horas e o exército turco ocupou posições junto das portas da cidade e quando as pessoas saíram fuzilou todos os homens e mandou as mulheres e crianças para o degredo em regiões desérticas na Mesopotâmia. E as mulheres e crianças tiveram de percorrer de trezentos a quinhentos quilómetros a pé sem comida e a maioria pereceu. E os Franceses e os Ingleses e os Russos apresentarem uma nota de protesto em que pela primeira vez na história se escrevia tratar-se de um crime contra a humanidade. E um oficial alemão que nessa altura estava com o exército turco como instrutor levou para a Alemanha sessenta e seis fotografias do genocídio arménio e enviou-as ao imperador alemão e escreveu-lhe que a Alemanha haveria de escolher melhor os seus aliados porque a vergonha da Turquia não deixava de manchar também a Alemanha. E entre 1928 e 1949 os Russos deportaram seis milhões de cidadãos de nacionalidade suspeita arménios e lituanos e ucranianos e polacos e alemães e moldavos e gregos e calmucos e curdos e inguches etc. e 30 por cento deles pereceram pelo caminho e 20 por cento morreram no ano seguinte. Os comunistas diziam mais tarde que não se tinha tratado de deportações mas de optimização do espaço geográfico e do primeiro passo rumo a uma nova sociedade supranacional onde já não teria importância quem vivia onde mas quão afincadamente trabalhava para o bem de todos. E em 1934 inventaram uma reserva para os Judeus e convidaram todos os judeus soviéticos a mudarem-se para lá. A reserva encontrava-se na fronteira com a China na região de Khabarovka e no Inverno a temperatura descia até aos -40º C e os comunistas diziam que não era uma reserva mas uma região autónoma onde os Judeus podiam estar entre os seus e gerir a sua própria vida. E em 1944 deportaram para o Cazaquistão e para o Quirguistão 477 mil chechenos em 12525 vagões para o transporte de gado e 190 mil chechenos morreram pelo caminho de fome e gelo e em 1999 inventaram para os chechenos suspeitos campos especiais denominados campos de desterro temporário. E em 1948 acusaram jornalistas e médicos e engenheiros de origem judia de cosmopolitismo e de uma mentalidade burguesa e mandaram assassinar a maioria deles e mandaram outros para campos de concentração. O número de vítimas do genocídio arménio foi estimado em um milhão a milhão e meio mas os Turcos diziam que o genocídio arménio não tinha sido um verdadeiro genocídio e a maioria dos Judeus assim pensavam também.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 45-47, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

11/11/2018

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Coimbra, 11 de Novembro de 1942 – (…) Dizia-me ontem um amigo francês esta tristeza: – de Camilo em diante, parece que os escritores portugueses têm as raízes fora de Portugal! E é verdade. Por desgraça, somos todos, em mísero, Anatoles, Prousts, Morgans, Valérys, ou outros igualmente grandes e igualmente alheios. Daqui, deste avaro torrão, e com a consciência profunda dele, é que ninguém quer ser. E aí temos o resultado: não, existir europeu que se interesse sèriamente pela nossa literatura contemporânea. – Para quê? – perguntava-me irònicamente o mesmo sujeito. E dava-me a resposta: – Bem vê, temos lá os originais…
Mas ninguém é capaz de fazer compreender estas singelas coisas a uns pobres de Cristo que para aí fazem prosa e verso. Enfrenizam-se na asneira, e debilitam ainda mais as virtudes particulares que, pelo que diz respeito pròpriamente a Portugal, embora brandas, são as que temos para nos salvar ou perder.”

Miguel Torga, “Diário II” 3ª ed. Revista, pág. 77, Coimbra Editora, 1960.

10/11/2018

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“E em 1916 foi executado perto de Juvincourt um soldado que não trazia as calças regulamentares e que não quis vestir as calças de um camarada morto porque estavam sujas e cheias de sangue.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pág. 39, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

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08/11/2018

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Vila Nova, 8 de Novembro de 1936 Caso, não caso, torno a casar, e acabo por concluir que a verdadeira paisagem da minha vida é uma grande serra nua.
Uma árvore a dar sombra lá do alto? Eu sei lá!
Ao sol, tenho a certeza que faço versos; à sombra, se calhar, adormeço.

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 33, 1941, Coimbra.

06/11/2018

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“A grande desilusão do século XX foi que a escolaridade obrigatória e o progresso técnico e a erudição e a cultura não levam o Homem a ser melhor e mais humano como tanto se acreditou no século XIX e que hordas de assassinos e torturadoress e chacinadores foram amantes das artes e assistiram a espectáculos de ópera e visitaram exposições e escreveram poemas e estudaram humanidades e medicina etc.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pág. 30, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.