10/10/2018
...
“Vila
Nova, 10 de Outubro de 1936 – Um
Diário não é isto. Diário é o daquele inglês que, para que
ninguém o lesse, até uma cifra inventou.
O que eu diria aqui se soubesse escrever em cifra!”
Miguel
Torga, “Diário I”, pág. 28, 1941, Coimbra.
28/09/2018
26/09/2018
...
“Monsanto,
26 de Setembro de 1941 – … só não rezo porque não há
lages para certos joelhos…”
Miguel
Torga, “Diário
II” 3ª ed. Revista, pág. 13, Coimbra Editora, 1960.
24/09/2018
...
Pinhão,
25 de Setembro de 1945
– Desço
mais uma vez a estrada que liga as frescuras da montanha a estes
calores tropicais, e novamente o velho problema da nossa incultura me
começa a moer. Não pode haver no mundo coisa mais bela do que o
vale do Pinhão, quando estas primeiras tintas do outono o visitam. A
gente olha de cima, e não está mais na terra. Debruça-se sobre um
abismo de cor, ao fim do qual dois rios se bebem com sede um do
outro. Mas há uma linha decente a dizer isto, não existe uma linha
decente a dizer isto, não existe uma lenda a almofodar tanta beleza,
nunca um poeta por aqui passou com a lira na mão. O
Reno tem castelos, tem Brentanos, tem Heines. O desgraçado Doiro tem
as suas pedras descarnadas como ossos secos num deserto. Tanto vinho
generoso que deu, tanta força a rasgar rochedos desde a nascente ao
mar, e nada. Nem uma pintura, nem um poema, nem uma história! Suor,
suor, suor, e a espadela dum barco rabelo, pesada como um lâtego, a
açoitar-lhe o lombo doirado. E o pior é que a desgraça visita
outros rios e outros vales da nossa terra. Sítios maravilhosos onde
nunca chegou a imaginação de um artista, regatos cristalinos que
nunca foram vistos por ninguém. O povo, fechado nos antolhos da sua
fome milenária, só vẽ courelas e água de regar courelas. E os
outros, os bem comidos e bebidos, e que por isso tinham a obrigação
de uma acuidade mais ampla, jamais tiveram verdadeiro carinho por
esta pátria que sugam desde que ela existe. Nem mandaram um artista
passeá-la, nem eles próprios se dignaram parar a liteira no alto
dum monte para olhar à volta. Vão gastar o cansaço dos servos nos
cafés de Paris, certos que têm bom gosto e são pessoas
civilizadas. E o nome com que designam a roça da sua grandeza, é
«província». Fecha nestas palavras o seu nojo pelos piolhos e pela
lepra que cultivam com um desvelo digno deles e, quando regressam,
ficam-se pela Capital. Ficam-se pela Babilónia da nossa perdição,
por essa Lisboa que Portugal inteiro sustenta, – enorme,
monstruosas e vazia cabeça de um pequeno corpo, de tal maneira
cansado de trabalhar, que nem tempo tem para olhar a formosura
natural que Deus lhe deu.
Miguel Torga, “Diário
III”, pp. 117-118, 1954, Coimbra.
13/09/2018
08/09/2018
...
“Gerez,
8 de Setembro de 1942 – Passeio no jardim botânico. Cedros,
acácias, palmeiras, eucaliptos, e tudo me pareceu mais ou menos bem.
Mas de repente surgiu qualquer coisa a perturbar a harmonia. Vi
melhor, e era uma Ginkgo Biloba, que estava ali, trémula, delicada,
aflita, como uma deusa verdadeira num templo falso de exposição.
Aterrei-me. Sou assim: diante de uma bananeira, duma araucária, ou
de qualquer outra planta assim quente e distante, sinto-me em paz. No
meu sangue, os Incas, os Aztecas, os Guaranis, os Hotentotes, os
Senegaleses, e todas as outras raças de que a história seiscentista
reza, estão de facto conquistadas. Mas, com respeito aos Japoneses,
sinto que o tiro do Zeimoto não chegou. Por isso, sempre que me
aparece diante dos olhos um leque ou uma árvore assim, a sugerir
outra arquitectura, outra música, outra pintura e outra alma, é
como se visse o demónio em pessoa diante de mim.”
Miguel
Torga, “Diário
II” 3ª ed. Revista, pp. 64-65, Coimbra Editora, 1960.
05/09/2018
...
S.
Vicente, 5 de Setembro de 1943
– Um
desgraçado com a doença de Ayerza. Que tristeza deve ser ligar o
nome a uma coisa destas! Sorte os astrónomos, que dão o seu a
estrelas!
Miguel Torga, “Diário
III”, pág. 17, 1954, Coimbra.
04/09/2018
28/08/2018
...
Coimbra,
28 de Agosto de 1944
– Ontem
uma tarde
pavorosa, com raios de quilómetros e graniso de arrátel, e hoje uma
manhã calma, doce, fresca e conciliante. Uma paz tão completa em
tudo, uma serenidade tão autêntica do céu e da terra, que até as
próprias couves destroçadas dos quintais se esforçam para
disfarçar as comprometedoras lenhaduras do corpo.
E foi esta hipocrisia da natureza que me estragou os nervos. Os
coriscos, embora lhes tivesse, como sempre, um terror vergonhoso,
aceitei-os; a pedra, embora uma mais desabrida me tivesse magoado,
aceitei-a também. Mas este sorriso sonso do cosmos, irritou-me.
Achei-o indigno de uma força que pode abanar montanhas e secar
mares. Tive a impressão de que estava a ver todas as tartufices dos
homens abençoadas e copiadas por Deus.
Miguel Torga, “Diário
III”, pp. 79-80, 1954, Coimbra.
25/08/2018
...
Gerez,
25 de Julho de 1943 –
Aqui apresento ao leitor
benévolo o João Cantador, ou seja o Nijinski do Minho. Nasceu em
Rio Calvo, nunca foi vencido em desafios de cavaquinho e de malhão,
funda na Bíblia as suas réplicas, e é de verdade um bailarino
extraordinário único, que só a nossa incultura consente se perca
por estas serras a embebedar-se com vinho verde.
Miguel
Torga, “Diário
III”,
pág.
13,
1954,
Coimbra.
24/08/2018
...
“Gerez,
24 de Agosto de 1942 – Mas porque não deixa você de escrever
durante uma temporada, para descansar? – perguntava-me hoje alguém.
–
Porque era a mesma coisa que um crente deixar de rezar um mês ou
dois, por higiene.”
Miguel
Torga, “Diário
II” 3ª ed. Revista, pág. 58, Coimbra Editora, 1960.
...
Monte
Real, Agosto de 1938, Sexta –
Uma semana inteira a olhá-la
muito em segredo para que nem ela mesmo soubesse que só a cor dos
seus olhos enchia a minha solidão. E hoje, quando entrei na sala,
tinha o noivo ao lado! O que depois o pobre do violinista fez para me
consolar! Até a Viúva Alegre
tocou!
Miguel
Torga, “Diário I”, pág. 72, 1941, Coimbra.
22/08/2018
...
Arrouca,
22 de Agosto de 1945
– A
moldura vazia de um Murillo roubado, um cicerone que começa a
mostrar um orgão de 1.200 vozes e acaba por levar a gente a uma
fábrica doméstica de murcelas, e a princesa D. Mafalda num túmulo
de prata, muito reconfortada sobre cochins.
– Está conservada… – insinuei eu, a olhar irònicamente a
cera da cara e da mão.
E o funcionário, espicaçado nos seus brios, esclareceu:
– Foi retocada… Autênticos, são só os dentes, as pestanas e
as unhas…
Diante desta côrnea e calcárea declaração, ainda cuidei que uma
devota que resava ao lado estremecesse. Mas não. A fé pode muito.
Tanto, que nem era preciso a igreja ter o trabalho de conservar as
pestanas, os dentes e as unhas originais da santa…
Miguel Torga, “Diário
III”, pág. 111, 1954, Coimbra.
21/08/2018
17/08/2018
...
Gafanhas,
Aveiro, 17 de Agosto de 1944
– Este
Portugal é assim: meio natural, meio segregado. O natural é de
pedra, duro, onde o sal das lágrimas e do suor consegue abrir uma
cova plantar uma vide; o segregado é de bosta de gente e de
ovelhas, de sargaço e mexilhão, e é roubado aos ribeiros e ao
mar.
E há quem tenha coragem de parasitar isto!
Miguel Torga, “Diário
III”, pág. 77, 1954, Coimbra.
15/08/2018
...
Caldelas,
15 de Agosto de 1945
– O
Japão pediu a paz. O imperador, na sua qualidade de Deus, resolveu
neutralizar pela mansa a bomba atómica. Os seus súbditos, porque
acreditam nele, desataram a abrir a barriga, que é um fedor. Ele,
felizmente, é que não tem em quem acreditar, e fica.
Miguel Torga, “Diário
III”, pág. 110, 1954, Coimbra.
...
Figueira
da Foz, 15 de Agosto
de 1939 –
Leitura das
cartas de Lawrence. Grande bicho! Mas quando falava com entusiasmo da
sua coragem de solidão, fui atacado à má-cara:
– O Lawrence era como muitos sujeitos, que se dizem
auto-suficientes, mas acabam sempre por acrescentar em post-scriptum:
– ...Não venha, não é cá preciso, mas, se quisesse vir, seria a
maravilha das maravilhas...
Miguel
Torga, “Diário I”, pág. 104, 1941, Coimbra.
...
Monte
Real, Agosto de 1938, Quarta –
É preciso dizer isto. É
preciso fazer esta confissão, mesmo que a posteridade depois desista
desta lápide. É preciso dizer que li hoje de enfiada dois romances,
dum tal Sr. Amstrong, e que gostei. E acrescentar que tinha ao lado,
interrompida, A Luz de Agosto
de Faulkner.
Miguel
Torga, “Diário I”, pág. 72, 1941, Coimbra.
13/08/2018
11/08/2018
...
É
cada vez mais raro, mas pelos visto ainda acontece, eu encantar-me
com um livro praticamente desconhecido. É o caso deste Baile da
Graça – Narrativas Irregulares do escritor Bastos Guerra. Um livro
que até teve uma segunda edição, o que é sempre louvável num
tempo em que o comum da tiragem andava na casa dos milhares. É claro
que é o mesmo tempo da maria cachucha em que se roga outorgar que
havia expedientes para os ‘brasis’, apenas dois é claro: São
Paulo e Rio, e as províncias ultramarinas – e que as tiragens
também cobririam essa vasta geografia. Pois claro que havia, mas
parece-me que isso só engrandecia o número de analfabetos e de
iletrados de toda a estirpe. E quanto à suposta cobertura geográfica
apostaria que se fosse consultar uma pauta aduaneira à cata dessa
alfandegária estatística teria um choque. Adiante.
Pelo que me é dado a entender não se sabe muito acerca deste autor.
Não encontrei nenhuma entrada no Dicionário de Autores Portugueses
que lhe fizesse referência. Porém admito que este Dicionário que
possuo não é o melhor, digamos antes, o mais completo… E eu não
estando aqui a fazer nenhuma tese não me sinto obrigado a um rigor
que me impelisse a ir consultar outros que me estão menos à mão.
Estou a falar por falar, como que dizendo: «ólha lá esta
curiosidade que encontrei num alfarrabista». Não sei o local onde o
autor nasceu, nem onde morreu, e para o efeito desta exposição não
acho isso particularmente grave. Mas tive acesso àquele circunlóquio
de parêntesis que lhe data a vida (1906-1965). E sei ainda que,
tirando uma viagem de comboio ao Porto, quase todas as narrativas do
Baile da Graça (e nada indica que se passassem no Bairro da Graça)
contêm referências a ruas, cinemas, teatros e eléctricos que
indiciam que o autor era um vivente e escrevente da capital. Foi
também por este livro, publicado em 1935, que fiquei a saber que
Bastos Guerra tem publicado um outro livro, de 1933, o de estreia,
com o título “Cem Por Cento Falado: Contos bem-humorados”
editado, em Lisboa, pela Livraria Guimarães Editores. E que teria
também na calha, quatro outros, já com os títulos devidamente
estabelecidos, que eram: Escala Cromática (Versos), A Batalha do
Pacífico (Novela), Compasso de Espera (Contos), e Cinco Cidades –
Paris, Bruxelas, Berlim, Copenhague, Rio de Janeiro – e que não
sei se alguma vez chegaram a ter letra de forma. O que sei é que o
Baile da Graça alia a tal série de narrativas curtas, shorts
stories em calão actual, e que são uns textinhos bastantes
espirituosos, sem serem picarescos, mas prenhos de uma rugosidade
ilustrativa da época com umas soluções tipográficas e uns
‘àpartes’ requintados: cuja ideia de um ‘entrefácio’ será
porventura a «mais bem» esgalhada e talvez um expediente inédito
em língua portuguesa. É certo que, este conluio tipográfico e
‘àpartes’, não chegam a ser tão geniais, nem numerosos, como
as que se encontram no Shandy do Laurence Sterne. Mas que à falta de
melhores termos direi que são arrojadas e incomuns: isto atendendo,
também, ao local e ano de publicação.
Dedicatória de Bastos Guerra ao próprio... |
No
Baile da Graça, Bastos Guerra, enfado do seu quotidiano, vai
encontrar uns episódios à Recambole dando ênfase a personagens, a
objectos e a situações com que se cruza. As descrições, quase
sempre em tom confessional, surgem sempre num meio (e isto de certa
forma é muito contemporâneo), sem princípios nem fins, as suas
curtas narrativas ilustram sobretudo o lado cómico-caricato, e
concomitantemente trágico, de quem tem de se amanhar com uma inata
infelicidade magnética que atrai, particularmente, uma vasta horda
de absurdos. E assim é de absurdo em absurdo, como quem salta de
bailarico em bailarico, que estas narrativas são engendradas.
Deixo-vos com alguns exemplos que achei mais pungentes:
RAR
Um aviso ao Bibliófilos... |
1)
“O meu receptor de T.S.F. tem dois fios: um de ligar à corrente,
outro de ligar ao retrato da minha velha tia Eufrásia. Dei essa
aplicação ao segundo fio não porque as ondas hertzianas mostrem
predilecção pela imagem da bondosa senhora. O caso é simples. Como
não sou pessoa de exibicionismos, prescindi da antena exterior. O
segundo fio serve de antena. Ora o retrato da tia Eufrásia está
prêso à parede por dois camarões. No camarão do lado esquerdo há
uma pequena fenda, onde se encaixa às mil maravilhas o contacto do
fio-antena. A tia Eufrásia, virtuosa e falecida relíquia do tempo
da mala-posta, colabora na eficiência da rádio-difusão.(…)”.
Pág. 23.
Uma
folha especialmente tipografada para dedicatórias com a observação:
(Obs. – Para facilidade das transacções em segunda mão, a página
pode ser cortada pelo filete.
|
2) “O vendedor considerou, ao entregar-me o recibo: «– Pode
gabar-se de possuir um aparelho muito selectivo.» Respondi, rubro de
prazer: «– Favores!» e, a partir dêsse momento, não perdi
nenhum ensejo de elogiar, em conversa, a singular qualidade –
embora ignorasse em absoluto o que queria dizer selectivo.
Depois comecei a compreender: a selectividade consiste em preferir um
certo número de estações e desprezar tôdas as outras. Pelo menos
é o que sucede com o meu receptor. Não é como os vulgares
aparelhos que vogam submissamente, ao sabor das ondas… Não! O meu
receptor tem inclinações, é susceptível de simpatias e
antipatias.(…)”. Pág.
29.
3)
“(…) O mau piropo traduz audácia e a audácia é
respeitável. O bom piropo revela amor e o amor é ridículo,
dissolvente e perigoso. Criação abstracta, com a qual só lucram os
folhetinistas, os editores e as parteiras, ninguém acredita nêle.
Uns não o tomam a sério. Outros vão mais longe: combatem-no em
nome da moral, embora, por contemporização certamente, apregoem, em
nome da mesma moral, os benefícios do aumento da natalidade.” Pág.
44.
4)”O
Diabo tece-as; e realmente teceu-as, na incarnação de Lily,
caixeira da livraria defronte.
Essa
pequena, chegada recentemente da província, não sabia nada de nada.
Valia-lhe o nome para atender os compradores, que saíam sempre
satisfeitos. Quando algum perguntava: «que tal é êste livro? Já
leu?»
–
ela respondia invariavelmente:
– Lily.” Pág. 48
5)”Os
dicionários são verdadeiros acumuladores de palavras, de pó e de
tédio. Junto aos débeis romances de capa amarela. Parecem atletas
de feira, feios, suados e exibindo grosseiramente os bicípedes. Às
vezes, os livros foram dispostos ao acaso na estante. De maneira que
nos aflige ver a Colmeia de Sonhos filiforme colectânea de
versos, encostada ao Novíssimo Dicionário Integral – tal
como uma vagoneta perto de um guindaste monstro ou uma casota de cão
ao lado de uma moradia apalaçada.” Pág.
58.
6)”As
Escadinhas da Saúde são um fóco de doenças; o Chiado, sob forma
de estátua, acocorou-se na Rua Garrett; e a coluna vertebral do
Bairro Camões chama-se Conde de Redondo.
Santa
Bárbara dista uma légua da Rua da Fé; na Praça dos Restauradores
há apenas dois restaurantes; os Anjos ingressam no Registo Civil;
Ferreira Borges incorpora-se em Infantaria 16; a Travessa da Palha,
contra tôdas as aparências, nunca se atreveu a desembocar no Largo
da Abegoaria; mas Alexandre Herculano, sem se importar com as
aparências, vai desaguar na Praça do Brasil.
Andrade
Corvo corta ao meio Fontes Pereira de Melo e as Picôas acabam com
êle, decepando-lhe a cabeça; S. Paulo anda arredio do Bêco dos
Apóstolos e absolutamente separado de S. Pedro de Alcântara, que
por sinal não é em Alcântara; entre o Largo da Graça e a Praça
da Alegria medeia uma enorme distância; a Rua das Pretas não
pertence ao Bairro das Colónias; D. Pedro V – quem diria! –
empurra Luiza Todi para o Bairro Alto.
Ruas
do Arco há duas. A segunda é do Cego, para distinguir. Ruas de S.
Mamede também há duas; uma é onde é, a outra é ao Caldas. O
Bairro da Liberdade não tem nada que ver com a Avenida do mesmo
nome. A Praça de Camões não é no Bairro Camões. O Parque Eduardo
VII faz vida aparte do Bairro de Inglaterra.
D.
Estefânia cohabita com Pascoal de Melo e é muito frequentada pelos
cadetes da Escola Militar. No Bairro dos Actores não foi incluída a
Calçada do Sacramento. A Rua do Salitre anda de rixa com a Rua da
Fábrica da Pólvora: pelo menos não convivem. A Rua dos Remédios
existe em Séca – e em Méca a Rua da Sociedade Farmacêutica. A
Rua Capêlo é uma rua vulgar, calçada de basalto. A Rua Capelão,
naturalmente por se tratar do aumentativo, entrou no folk-lore
e está juncada de rosmaninho e de outros ornatos não menos típicos.
Na
nomenclatura das ruas lisboetas só se depara com dois pormenores
acertados: D. Pedro V está mais alto que D. Pedro IV e a Rua dos
Correeiros é a estação preferida das mulheres de trottoir.”
Pp. 62-64.
7)
“– (…) Ia dizer isso mesmo e dar-lhe um exemplo. Numa das
noites de Carnaval (na Gronelândia também há Carnaval) mascarei-me
de «Sonho de uma noite de verão» e encaminhei-me para um dancing
(na Gronelândia também há dancings). Seduziu-me uma beldade
que por lá andava, vestida de Pierrette e despida de convenções.
Convidei-a para dançar. Empreguei a fundo o meu reportório de
galanteios. Ficou insensível e pediu-me quinhentas libras por uma
noite de amor.
–
Eis tudo?
–
Eis tudo.
–
É o que se pode chamar uma aventura extra-curta. Mas compreendo a
sua renúncia, perante uma exigência dessa ordem.
–
Não tão excessiva como parece à primeira vista. Bem vê: era uma
noite polar, uma noite de seis meses… “ Pág.
71.
Baile
da Graça – Narrativas irregulares editado
pela Livraria Editora Guimarães & C.ª, Lisboa. Em 1935.
|
8)
“Alexandre Barata, astucioso e resoluto «detective», recebe
uma comunicação telefónica de D. Noémia Cordeiro, senhora da sua
estima e consideração e excelso ornamento da vila de Tôrres
Vedras. (…) Dez minutos depois, o meu dez-cavalos rodava a
caminho de Tôrres Vedras. Adoro essa vila de azeite e vinagre, mas
desta vez levava-me lá um móbil mais forte que o interêsse
turístico. Puxei para a frente o boné de quadrados – eu uso um
boné de quadrados para quebrar a monotonia dos óculos redondos –
e deixei-me absorver pelas minhas deduções.
Em
primeiro logar, o barómetro acusava uma baixa pressão na Islândia
e fortes aguaceiros por altura dos Açôres. Descida de temperatura
na Península Ibérica. Logo, o crime fôra cometido a sangue-frio e
antes do romper de alva, o que era confirmado pela hora matinal da
comunicação telefónica. Visionei tudo. Judite estava no quarto,
dormindo o seu sono inocente e casto. Não houvera arrombamento –
D. Noémia teria dado conta e sofreria também as consequências –
donde resultava que o criminoso se introduzira pela janela, que era
térrea.
Ora
eu conhecia o local: só um homem com mais de um metro e oitenta de
altura poderia galgar o peitoril de Judite. Como teria reagido a
donzela? E como penetrara o criminoso? Com o pé direito ou com um
«pé de cabra»? O «pé de cabra» não era necessário: um simples
empurrão bastava para fazer girar os caixilhos. Portanto, o
assassino entrara com o pé direito. E, portanto, era supersticioso.
As
minhas deduções estavam já neste pé, mas eu fui mais além.
Ao
que parecia, a jóven não gritara. O bandido fizera-a calar por um
de dois processos: ou pela mordaça, ou pela gorgeta, que é também
um meio excelente de fazer calar as pessoas. Inclinei-me para a
mordaça – e bati com a cabeça no pára-brisas. Afigurou-se-me
indiscutível que fôra empregada a mordaça. A seguir, o malfeitor
apertara a glote de Judite: era poliglota. Obrigara a paciente a
deitar a língua de fóra: era médico.
Soltei
um urro de triunfo. Tinha a chave do trinco do enigma! Conhecia os
sinais do bandoleiro: um médico poliglota e supersticioso, com um
metro e oitenta de altura. E, sem sombra de dúvida, um especialista
de garganta.” Pp.
82-84.
9)
“Os prefácios vulgarizaram-se de maneira atroz e representam
verdadeiras armadilhas ao público. Nos prefácios, o autor, ou
alguém por êle, procura criar no leitor uma expectativa favorável,
sugestioná-lo àcêrca do mérito da obra. Isto é uma cobardia, uma
cilada, um guet-apens.
Em
conseqüência, resolvi suprimir o prefácio. Ainda pensei em
remetê-lo para as últimas páginas. Ponderei logo a seguir que,
nêsse caso, já não seria prefácio mas posfácio e ninguém
se daria ao trabalho de o folhear sequer.
Estava
naturalmente indicado um expediente médio, ou seja: o entrefácio.
Assim
o entendi e fiz executar.
Inserto
a meio do livro – numa altura em que o leitor já apreciou metade
e, portanto, não é fàcilmente sugestionável – o entrefácio
impõe-se como um processo honesto e digno de ser adoptado por
quantos pretendem ter um contacto explicativo com o público.
Esta
«Advertência» serve de entrefácio à 1.ª edição.
Mas
não seria justo que os leitores da 1.ª edição – precisamente o
mais fiéis, os mais dedicados, os mais merecedores da minha simpatia
ficassem privados do prazer de saborearem a prosa que eu aditar a
esta obra, em futuras edições (as quais, decerto, não se farão
esperar) Para lhes não frustrar tão legítimo regalo espiritual,
publico já os entrefácios à 2.ª edição e à 3.ª edição.
Cumpro
simplesmente o meu dever. Não agradeçam.” Pp.
96-97.
10) “
Entrefácio à 2.ª edição
ou
Uma
leitora
que
me faz perguntas
Devo-lhe
três cartas, mais polidas que a suas unhas de mulher civilizada,
três cartas que antes parecem escritas com o polissoir do que
com qualquer vulgar for life.
Póde
mandar a factura – contra o reembolso da minha gratidão.
Porquê
só três cartas, três simples fôlhas de papel? Gostaria que me
enviasse cinquenta (não esquecendo os correspondentes envelopes),
completamente em branco. Gostaria, não só porque o papel é
excelente, mas ainda porque assim ficaria dispensado de responder às
suas embaraçosas perguntas.
Começa por perguntar-me como escrevo. Como escrevo?! Sentado,
evidentemente. Sentado a uma secretária em que há de tudo: rosas do
Japão, o Anuário Comercial, o correio chegado de manhã e os
jornais recebidos à tarde. Para dizer toda a verdade – V., querida
leitora, merece que eu a tome por confidente – rectifico que não
tenho rosas do Japão na secretária. Falei nelas para mostrar que
não desdenho os pormenores requintados. E as rosas do Japão teem um
nome bem soante que quadra à maravilha com a decoração do meu
gabinete de trabalho. Guarde para si êste deslise de sinceridade.
Não o repita a ninguém – sob pena de comprometer
irremediàvelmente a minha reputação.
De
pé, só poderia escrever nas paredes. Confesso que nunca senti
atracção por semelhante género de escrita, nem quero difundir por
êsse meio as minhas convicções cívicas, o meu amor à pátria, a
minha repulsa pelos adversários ou os meus conhecimentos, aliás
profundos, de anatomia e fisiologia.
No
entanto, é-me muito agradável deparar com uma criança ou um
adolescente garatujando nas fachadas das casas. Enternecem-me as
obscenidades e o seu traçado primitivo, a gis ou carvão. Por duas
razões: por tratar de um sintoma da progressiva diminuição do
analfabetismo; e porque essa criança (ou êsse adolescente) será,
quando crescer e aparecer, um consagrado autor de revistas, repletas
da não menos consagrada «boa graça portuguesa».
Talvez
seja uma falha do meu passado. Realmente nunca escrevi nas paredes!
Por isso mesmo nunca serei consagrado autor, expressão com
que se designa quási sempre a paternidade legítima de oitenta e
seis traduções, quarenta adaptações e vinte e oito imitações –
e a paternidade, absolutamente ilegítima, de dois ou três originais
alheios.
Admitâmos,
porém, que escrevo sobre o joelho, como V., querida leitora,
imagina. Isso significa precisamente que não faço os meus contos
com uma perna às costas! Uma posição exclui a outra e V., com
certeza, não desejaria ver-me em horríveis contorsões, pouco
propícias ao bom exercício das faculdades intelectuais.
Se
tenho ilusões? Não. Perdi-as há muito. Sempre contei com o pior e
sempre estive convencido de que são efémeros os bens dêste mundo.
Ainda no berço, no período da amamentação, eu já sabia que êsse
regime de favor não se prolongaria por muito tempo. Na escola, foi
para mim ponto de fé, desde o primeiro dia, que não andaria
eternamente em instrução primária. Não, querida leitora. Tenho
perdido, nos zigue-zagues da vida, todas as ilusões benfazejas.
Resta-me uma única. A minha única ilusão consiste em supor que não
tenho ilusões.
Se
gosto de perfumes? Decerto, principalmente do perfume do seu papel de
carta. Mitsouko ou Narcise noir? Perdoe que a minha
resposta rescenda a tinta de imprensa. Não é culpa minha. O
original foi aromatizado au Dandy. Na verdade, gosto de
perfumes e tenho o olfacto educado, o que me permite fazer
classificações. Há mulheres que cheiram a wagons-lits –
um mixto de banho recente, hulha, metal aquecido, corticite e ozone.
São as «mulheres internacionais». Em compensação, alguns
boudoirs de marquesas trescalam a repartições de finanças –
cigarro apagado, poeira, oleografias e «Diário do Govêrno».
Perguntará
que sei eu de boudoirs de marquesas. Dou a mão à palmatória:
muito pouco. Não sou um escritor especializado no assunto. Tenho
vários titulares na minha família: vários apreciáveis parentes
possuem títulos da dívida pública – e que falam, dormem e amam
como todos os outros titulares. Não basta?! Creio também que não.
Mas seja justa: é apenas a segunda vez que me ocupo de marquesas e
nem chega a ser uma reincidência. Quando, da primeira vez, escrevi
num dos meus contos a frase «deitei-me sobre a marquesa», não
tinha (juro-lhe) a intenção de provocar a emulação dos meus
leitores – e sim, unicamente, a de relatar como me expús a uma
observação clínica meticulosa.
E
por hoje basta. Escreva-me na volta do correio, para me dar a
matéria-prima da minha próxima resposta. Não lhe beijo a fímbria
do vestido, porque seria romântico e contra higiene. Limito-me a
beijar-lhe a fímbria da mão direita, o que é igualmente romântico
e anti-higiénico. Que quere? Agrada-me o seu perfume. Mitsouko
ou Narcise noir?” Pp.
99-101.
11)
“É conhecida a minha simpatia pelos conferencistas. As
conferências são um meio excelente de nos alhearmos das realidades
durante um mínimo de cinquenta minutos. Enquanto o conferencista
fala, a assistência medita naquilo que mais lhe apraz, o que nem
sempre é possível conseguir nas circunstâncias normais da vida. De
modo que é dupla a vantagem das conferências: para o orador,
colheita fácil de aplausos; para o público, alguns momentos de bem
estar e de isolamento espiritual. Já no «100 % FALADO», livro que
corre mundo, incluí as Reflexões sôbre o casamento,
palestra que tôdas as pessoas bem intencionadas consideram um modêlo
no género. Continuo empenhado a facilitar o trabalho dos que
pretendem contactar com a multidão por intermédio de uma voz quente
e de um copo de água fria, no confôrto de uma sala. Os bons
conferencistas, isto é, aqueles que linguarejam com êxito, nunca
teem ideias próprias. Cedo-lhe portanto as minhas, sem reservas,
antes com a melhor boa vontade.” Pág.
108.
12)
“Em resumo: o homem não é lobo, nem cordeiro. É unicamente
hipócrita. Desdenha do que lhe agrada e reprime o que realmente lhe
interessa. Polígamo refalsado, só contra a vontade defende em
público o matrimónio, que secretamente considera, talvez com razão,
um aborrecido processo de trocar o amor por miúdos…
(…)
Isto vem a propósito, neste momento em que as populações das
cidades começam a ir diàriamente despir-se à beira-mar, para mais
íntimo contacto com o oceano. Estamos na época do pudor. A
sociedade policiada, descendente de Adão e do homem de armas,
serve-se de um funcionário para verificar a compostura dos
banhistas. É o cabo do mar.
Eu
sou aquele oculto e grande cabo…
Espécie
de espada de Damocles e ôlho de Providência, o respeitável
funcionário ocupa-se em medir a área dos soutiens,
fiscalizar a esquadria das alças e tirar o logaritmo dos calções.
É singular, mas verdadeiro: o Estado dá ordenado, farda e
municiamento a um delegado seu, para impedir que os cidadãos
descubram livremente o umbigo. Mais valia criar uma licença de uso e
porte de umbigo, já que é injusto proibir que cada qual disponha –
cobrindo-o ou descobrindo-o – dêsse encantador ornato, que lhe foi
dado pela Natureza. “ Pp.
132-133.
09/08/2018
...
Altar
de Cabrões, 9 de Agosto de 1944
– Estou
a 1536 metros, perto do céu, a ver o Barroso, o Marão, a Peneda, a
Serra Amarela e o Lindoso. Estou sentado num marco que separa
Portugal de Espanha, mas o sítio chama-se Altar de Cabrões e foi,
como se vê, o olimpo de majestades cornudas, a ara de alguns
daqueles sagrados deuses lusitanos, de que só restam nomes e cascos.
Cada vez sei menos de rezas e de santos. Mas quando pressinto pègada
do velho Endovélicos, tenho logo vontade de me prosternar e benzer.
O catolicismo, sem o Cristo querer, encheu este mundo de cruzes e
água benta. Ora os nossos patrícios deuses de chifres eram
portadores de uma virilidade mágica, que não nega nem degrada a
natureza. Nada de agonias lentas em madeiros de cedro. Água, frutos,
sol, e uma divindade fundamentada na verdade feiticeira das coisas.
Miguel Torga, “Diário
III”, pág. 77, 1954, Coimbra.
...
“S.
Vicente, 9 de Agosto de 1942 – Manon Lescaut. Se alguém
for capaz de me mostrar um dia um romance francês com uma mulher
honrada, um homem honrado, e meia dúzia de vizinhos honrados,
dou-lhe um doce.”
Miguel
Torga, “Diário
II” 3ª ed. Revista, pág. 53, Coimbra Editora, 1960.
Porto...
"Porto. Quero viver e morrer no Porto." |
07/08/2018
...
Subscrever:
Mensagens (Atom)