24/09/2018

...


Pinhão, 25 de Setembro de 1945 Desço mais uma vez a estrada que liga as frescuras da montanha a estes calores tropicais, e novamente o velho problema da nossa incultura me começa a moer. Não pode haver no mundo coisa mais bela do que o vale do Pinhão, quando estas primeiras tintas do outono o visitam. A gente olha de cima, e não está mais na terra. Debruça-se sobre um abismo de cor, ao fim do qual dois rios se bebem com sede um do outro. Mas há uma linha decente a dizer isto, não existe uma linha decente a dizer isto, não existe uma lenda a almofodar tanta beleza, nunca um poeta por aqui passou com a lira na mão. O Reno tem castelos, tem Brentanos, tem Heines. O desgraçado Doiro tem as suas pedras descarnadas como ossos secos num deserto. Tanto vinho generoso que deu, tanta força a rasgar rochedos desde a nascente ao mar, e nada. Nem uma pintura, nem um poema, nem uma história! Suor, suor, suor, e a espadela dum barco rabelo, pesada como um lâtego, a açoitar-lhe o lombo doirado. E o pior é que a desgraça visita outros rios e outros vales da nossa terra. Sítios maravilhosos onde nunca chegou a imaginação de um artista, regatos cristalinos que nunca foram vistos por ninguém. O povo, fechado nos antolhos da sua fome milenária, só vẽ courelas e água de regar courelas. E os outros, os bem comidos e bebidos, e que por isso tinham a obrigação de uma acuidade mais ampla, jamais tiveram verdadeiro carinho por esta pátria que sugam desde que ela existe. Nem mandaram um artista passeá-la, nem eles próprios se dignaram parar a liteira no alto dum monte para olhar à volta. Vão gastar o cansaço dos servos nos cafés de Paris, certos que têm bom gosto e são pessoas civilizadas. E o nome com que designam a roça da sua grandeza, é «província». Fecha nestas palavras o seu nojo pelos piolhos e pela lepra que cultivam com um desvelo digno deles e, quando regressam, ficam-se pela Capital. Ficam-se pela Babilónia da nossa perdição, por essa Lisboa que Portugal inteiro sustenta, – enorme, monstruosas e vazia cabeça de um pequeno corpo, de tal maneira cansado de trabalhar, que nem tempo tem para olhar a formosura natural que Deus lhe deu.

Miguel Torga, “Diário III”, pp. 117-118, 1954, Coimbra.

Sem comentários: