Pinhão,
25 de Setembro de 1945
– Desço
mais uma vez a estrada que liga as frescuras da montanha a estes
calores tropicais, e novamente o velho problema da nossa incultura me
começa a moer. Não pode haver no mundo coisa mais bela do que o
vale do Pinhão, quando estas primeiras tintas do outono o visitam. A
gente olha de cima, e não está mais na terra. Debruça-se sobre um
abismo de cor, ao fim do qual dois rios se bebem com sede um do
outro. Mas há uma linha decente a dizer isto, não existe uma linha
decente a dizer isto, não existe uma lenda a almofodar tanta beleza,
nunca um poeta por aqui passou com a lira na mão. O
Reno tem castelos, tem Brentanos, tem Heines. O desgraçado Doiro tem
as suas pedras descarnadas como ossos secos num deserto. Tanto vinho
generoso que deu, tanta força a rasgar rochedos desde a nascente ao
mar, e nada. Nem uma pintura, nem um poema, nem uma história! Suor,
suor, suor, e a espadela dum barco rabelo, pesada como um lâtego, a
açoitar-lhe o lombo doirado. E o pior é que a desgraça visita
outros rios e outros vales da nossa terra. Sítios maravilhosos onde
nunca chegou a imaginação de um artista, regatos cristalinos que
nunca foram vistos por ninguém. O povo, fechado nos antolhos da sua
fome milenária, só vẽ courelas e água de regar courelas. E os
outros, os bem comidos e bebidos, e que por isso tinham a obrigação
de uma acuidade mais ampla, jamais tiveram verdadeiro carinho por
esta pátria que sugam desde que ela existe. Nem mandaram um artista
passeá-la, nem eles próprios se dignaram parar a liteira no alto
dum monte para olhar à volta. Vão gastar o cansaço dos servos nos
cafés de Paris, certos que têm bom gosto e são pessoas
civilizadas. E o nome com que designam a roça da sua grandeza, é
«província». Fecha nestas palavras o seu nojo pelos piolhos e pela
lepra que cultivam com um desvelo digno deles e, quando regressam,
ficam-se pela Capital. Ficam-se pela Babilónia da nossa perdição,
por essa Lisboa que Portugal inteiro sustenta, – enorme,
monstruosas e vazia cabeça de um pequeno corpo, de tal maneira
cansado de trabalhar, que nem tempo tem para olhar a formosura
natural que Deus lhe deu.
Miguel Torga, “Diário
III”, pp. 117-118, 1954, Coimbra.
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