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24/08/2019

MAIS PORTO PONTO



Quase no mesmo momento em que a câmara municipal do Porto substitui o seu parque automóvel para o ecléctico eléctrico-ecológico, numa lavagem também ecológica e necessária aos tustos de um erário público, que cada vez mais se vê obrigado a entregar o dinheirinho empestado e empastado (e quando não emprestado) com o suor dos seus rostos e, sem que se dê o devido tempo para que esse suor se entranhe no níquel e crie a tão desejada patine; aproveita a câmara o lanço e também substitui as vassouras – tão ecológicas! – por sopradores a diesel triplamente poluentes: fazem um chinfrim danado, ficando os ouvidos a tinir; levantam uma poeira desgraçada, que logo repousa quando o zéfiro a diesel se pisga, deixando tudo praticamente na mesma para não dizer pior; a terceira já disse: são nutridos a gasóleo verde e aromático… Mas as hipóteses da minha tese são as seguintes: compraram-se sopradores barulhentos para todos ouvirem bem que os limpadores camarários ou subcontratados estão efectivamente a trabalhar; e compraram-se carros silenciosos para os engenheiros e maiorais de hierarquia, dessa instância pública, para que não os ouçam a não fazerem nenhum.
RAR

30/10/2018

Quem diz Rio diz, por exemplo, Lisboa ou Porto...


O DONO DA CIDADE

Como tôda a gente sabe, o Rio não pertence aos cariocas, nem aos brasileiros em geral, mas a um vago personagem de nacionalidade indefinida e existência até mesmo incerta por aqui. O Rio pertence ao turista.

Pouco importa que êle não apareça para tomar conta do que lhe deram de mão beijada. Embora ausente, embora no desconhecimento completo de tão rica propriedade, continua mandando e desmandando, como senhor absoluto de todos nós. É em seu nome, ou sob a invocação dos seus interêsses sagrados, que se resolvem os grandes e pequenos problemas da cidade. Não damos um passo sem pensar nêle, não movemos uma palha sem inquirir, num anseio do coração devoto e temeroso, o que diria de nós, se nos apanhasse em tal gesto, o ídolo fascinante.

Porque, em verdade, o turista é um ídolo. Governa-nos de longe, com a olímpica indiferença e o capricho sobranceiro dos deuses. Quase nunca o encontramos na terra, mas sentimos a cada instantte a sua influência mágica. De nada vale a teima de alguns céticos, negando-lhe a realidade. De nada vale porque o poder dos mitos vem da vida que lhe damos em nossa crença. E permanecemos fiéis à antiga fé, convencidíssimos de que o turista existe e pode rebentar a qualquer momento por esta deliciosa metrópole que é muito mais sua do que nossa. Eterno esperado do sebastianismo urbanístico, ao imaginar a sua vinda estremecemos ao mesmo tempo de júbilo e terror.

Estamos preparados para recebê-lo? – eis a pergunta agoniada que domina constantemente dois milhões de cabeças, desde as mais ilustres às mais obscuras, das mais responsáveis pelo destino da capital às que nem ao menos são responsáveis pelo arranjo da própria casa. O que se deve mostrar ao turista, sobretudo o que se deve esconder dos seus próprios olhos sacrossantos, constitui um motivo de preocupações alarmadas, que apenas se atenuam em algumas alegrias fortuitas, mas consoladoras, quando temos a certeza de que vamos agradá-lo em cheio.
Êsse propósito de agradar ao misterioso personagem deformou até a sensibilidade carioca ante os espectáculos da natureza. Quando o panorama do Rio nos oferece um trecho belo da montanha ou do mar, o que vislumbramos, quase sempre, não é a paisagem em si mesma, porém um americano ou um argentino mergulhado na sua contemplação. Murmuramos comovidos, na Vista Chinesa e no Alto do Corcovado: “Diante disso, o estrangeiro tem de ficar tonto!” e a sombra do turista embaça-nos a visão.
Entretanto, voltamos regosijados do passeio. Acalenta-nos o orgulho de que há por aqui muita coisa admirável, dada pelo velho Deus para que possamos ofertá-la, por nossa vez, ao novo ídolo da cidade. Mas êsse ingénuo contentamento logo se transforma em aflição quando um aspecto feio da rua, uma cena pobre de esquina, até mesmo uma reminiscẽncia pitoresca de nossa história, nos avisa de que, além do panorama, temos de expor ao turista o quadro humano do Rio.

Esquecidos de que somos talvez o máximo do que poderíamos ser em nossas condições de vida e formação, assalta-nos uma absurda timidez em face do gozador distraído que nos poderá surpreender como realmente somos. Aceitamo-lo como juiz dos nossos atos, receando-lhe o comentário desairoso, como se o estancieiro dos pampas ou o industrial de Chicago tivesse fôrça, autoridade e disposição para nos consagrar ou arruinar definitivamente no conceito dos povos.

Mas tamanha candura tem suas utilidades e vantagens. Graças ao temor do que o turista possa ver, descobrimos finalmente o que antes não feria a nossa vista. E muitos problemas urbanos foram atacados em atenção à prestigiosa divindade. É preciso, porém, que o mito não abuse dos seus poderes mágicos, perseguindo os humildes em vez de favorecê-los. Pensa-se, por exemplo, em acabar com as gordas e lustrosas “baianas” que enfeitam a cidade moderna com seu pequenino comércio colonial. Naturalmente, imgina-se que o turista não gostaria de vê-las. Mas é provàvelmente um ẽrro. E ainda que não fôsse. Nem por isso se deveria sacrificar as “baianas”, que têm por elas o Senhor do Bonfim, Senhor que nos ajudou a construir o Brasil e que sempre protegeu a gente pobre no seu trabalho.”

Genolino Amado, “Os Inocentes do Leblon – Crónicas do Rio”, pp. 27-29, Ed. Livraria do Globo, Pôrto Alegre, 1946.