É
cada vez mais raro, mas pelos visto ainda acontece, eu encantar-me
com um livro praticamente desconhecido. É o caso deste Baile da
Graça – Narrativas Irregulares do escritor Bastos Guerra. Um livro
que até teve uma segunda edição, o que é sempre louvável num
tempo em que o comum da tiragem andava na casa dos milhares. É claro
que é o mesmo tempo da maria cachucha em que se roga outorgar que
havia expedientes para os ‘brasis’, apenas dois é claro: São
Paulo e Rio, e as províncias ultramarinas – e que as tiragens
também cobririam essa vasta geografia. Pois claro que havia, mas
parece-me que isso só engrandecia o número de analfabetos e de
iletrados de toda a estirpe. E quanto à suposta cobertura geográfica
apostaria que se fosse consultar uma pauta aduaneira à cata dessa
alfandegária estatística teria um choque. Adiante.
Pelo que me é dado a entender não se sabe muito acerca deste autor.
Não encontrei nenhuma entrada no Dicionário de Autores Portugueses
que lhe fizesse referência. Porém admito que este Dicionário que
possuo não é o melhor, digamos antes, o mais completo… E eu não
estando aqui a fazer nenhuma tese não me sinto obrigado a um rigor
que me impelisse a ir consultar outros que me estão menos à mão.
Estou a falar por falar, como que dizendo: «ólha lá esta
curiosidade que encontrei num alfarrabista». Não sei o local onde o
autor nasceu, nem onde morreu, e para o efeito desta exposição não
acho isso particularmente grave. Mas tive acesso àquele circunlóquio
de parêntesis que lhe data a vida (1906-1965). E sei ainda que,
tirando uma viagem de comboio ao Porto, quase todas as narrativas do
Baile da Graça (e nada indica que se passassem no Bairro da Graça)
contêm referências a ruas, cinemas, teatros e eléctricos que
indiciam que o autor era um vivente e escrevente da capital. Foi
também por este livro, publicado em 1935, que fiquei a saber que
Bastos Guerra tem publicado um outro livro, de 1933, o de estreia,
com o título “Cem Por Cento Falado: Contos bem-humorados”
editado, em Lisboa, pela Livraria Guimarães Editores. E que teria
também na calha, quatro outros, já com os títulos devidamente
estabelecidos, que eram: Escala Cromática (Versos), A Batalha do
Pacífico (Novela), Compasso de Espera (Contos), e Cinco Cidades –
Paris, Bruxelas, Berlim, Copenhague, Rio de Janeiro – e que não
sei se alguma vez chegaram a ter letra de forma. O que sei é que o
Baile da Graça alia a tal série de narrativas curtas, shorts
stories em calão actual, e que são uns textinhos bastantes
espirituosos, sem serem picarescos, mas prenhos de uma rugosidade
ilustrativa da época com umas soluções tipográficas e uns
‘àpartes’ requintados: cuja ideia de um ‘entrefácio’ será
porventura a «mais bem» esgalhada e talvez um expediente inédito
em língua portuguesa. É certo que, este conluio tipográfico e
‘àpartes’, não chegam a ser tão geniais, nem numerosos, como
as que se encontram no Shandy do Laurence Sterne. Mas que à falta de
melhores termos direi que são arrojadas e incomuns: isto atendendo,
também, ao local e ano de publicação.
Dedicatória de Bastos Guerra ao próprio... |
No
Baile da Graça, Bastos Guerra, enfado do seu quotidiano, vai
encontrar uns episódios à Recambole dando ênfase a personagens, a
objectos e a situações com que se cruza. As descrições, quase
sempre em tom confessional, surgem sempre num meio (e isto de certa
forma é muito contemporâneo), sem princípios nem fins, as suas
curtas narrativas ilustram sobretudo o lado cómico-caricato, e
concomitantemente trágico, de quem tem de se amanhar com uma inata
infelicidade magnética que atrai, particularmente, uma vasta horda
de absurdos. E assim é de absurdo em absurdo, como quem salta de
bailarico em bailarico, que estas narrativas são engendradas.
Deixo-vos com alguns exemplos que achei mais pungentes:
RAR
Um aviso ao Bibliófilos... |
1)
“O meu receptor de T.S.F. tem dois fios: um de ligar à corrente,
outro de ligar ao retrato da minha velha tia Eufrásia. Dei essa
aplicação ao segundo fio não porque as ondas hertzianas mostrem
predilecção pela imagem da bondosa senhora. O caso é simples. Como
não sou pessoa de exibicionismos, prescindi da antena exterior. O
segundo fio serve de antena. Ora o retrato da tia Eufrásia está
prêso à parede por dois camarões. No camarão do lado esquerdo há
uma pequena fenda, onde se encaixa às mil maravilhas o contacto do
fio-antena. A tia Eufrásia, virtuosa e falecida relíquia do tempo
da mala-posta, colabora na eficiência da rádio-difusão.(…)”.
Pág. 23.
Uma
folha especialmente tipografada para dedicatórias com a observação:
(Obs. – Para facilidade das transacções em segunda mão, a página
pode ser cortada pelo filete.
|
2) “O vendedor considerou, ao entregar-me o recibo: «– Pode
gabar-se de possuir um aparelho muito selectivo.» Respondi, rubro de
prazer: «– Favores!» e, a partir dêsse momento, não perdi
nenhum ensejo de elogiar, em conversa, a singular qualidade –
embora ignorasse em absoluto o que queria dizer selectivo.
Depois comecei a compreender: a selectividade consiste em preferir um
certo número de estações e desprezar tôdas as outras. Pelo menos
é o que sucede com o meu receptor. Não é como os vulgares
aparelhos que vogam submissamente, ao sabor das ondas… Não! O meu
receptor tem inclinações, é susceptível de simpatias e
antipatias.(…)”. Pág.
29.
3)
“(…) O mau piropo traduz audácia e a audácia é
respeitável. O bom piropo revela amor e o amor é ridículo,
dissolvente e perigoso. Criação abstracta, com a qual só lucram os
folhetinistas, os editores e as parteiras, ninguém acredita nêle.
Uns não o tomam a sério. Outros vão mais longe: combatem-no em
nome da moral, embora, por contemporização certamente, apregoem, em
nome da mesma moral, os benefícios do aumento da natalidade.” Pág.
44.
4)”O
Diabo tece-as; e realmente teceu-as, na incarnação de Lily,
caixeira da livraria defronte.
Essa
pequena, chegada recentemente da província, não sabia nada de nada.
Valia-lhe o nome para atender os compradores, que saíam sempre
satisfeitos. Quando algum perguntava: «que tal é êste livro? Já
leu?»
–
ela respondia invariavelmente:
– Lily.” Pág. 48
5)”Os
dicionários são verdadeiros acumuladores de palavras, de pó e de
tédio. Junto aos débeis romances de capa amarela. Parecem atletas
de feira, feios, suados e exibindo grosseiramente os bicípedes. Às
vezes, os livros foram dispostos ao acaso na estante. De maneira que
nos aflige ver a Colmeia de Sonhos filiforme colectânea de
versos, encostada ao Novíssimo Dicionário Integral – tal
como uma vagoneta perto de um guindaste monstro ou uma casota de cão
ao lado de uma moradia apalaçada.” Pág.
58.
6)”As
Escadinhas da Saúde são um fóco de doenças; o Chiado, sob forma
de estátua, acocorou-se na Rua Garrett; e a coluna vertebral do
Bairro Camões chama-se Conde de Redondo.
Santa
Bárbara dista uma légua da Rua da Fé; na Praça dos Restauradores
há apenas dois restaurantes; os Anjos ingressam no Registo Civil;
Ferreira Borges incorpora-se em Infantaria 16; a Travessa da Palha,
contra tôdas as aparências, nunca se atreveu a desembocar no Largo
da Abegoaria; mas Alexandre Herculano, sem se importar com as
aparências, vai desaguar na Praça do Brasil.
Andrade
Corvo corta ao meio Fontes Pereira de Melo e as Picôas acabam com
êle, decepando-lhe a cabeça; S. Paulo anda arredio do Bêco dos
Apóstolos e absolutamente separado de S. Pedro de Alcântara, que
por sinal não é em Alcântara; entre o Largo da Graça e a Praça
da Alegria medeia uma enorme distância; a Rua das Pretas não
pertence ao Bairro das Colónias; D. Pedro V – quem diria! –
empurra Luiza Todi para o Bairro Alto.
Ruas
do Arco há duas. A segunda é do Cego, para distinguir. Ruas de S.
Mamede também há duas; uma é onde é, a outra é ao Caldas. O
Bairro da Liberdade não tem nada que ver com a Avenida do mesmo
nome. A Praça de Camões não é no Bairro Camões. O Parque Eduardo
VII faz vida aparte do Bairro de Inglaterra.
D.
Estefânia cohabita com Pascoal de Melo e é muito frequentada pelos
cadetes da Escola Militar. No Bairro dos Actores não foi incluída a
Calçada do Sacramento. A Rua do Salitre anda de rixa com a Rua da
Fábrica da Pólvora: pelo menos não convivem. A Rua dos Remédios
existe em Séca – e em Méca a Rua da Sociedade Farmacêutica. A
Rua Capêlo é uma rua vulgar, calçada de basalto. A Rua Capelão,
naturalmente por se tratar do aumentativo, entrou no folk-lore
e está juncada de rosmaninho e de outros ornatos não menos típicos.
Na
nomenclatura das ruas lisboetas só se depara com dois pormenores
acertados: D. Pedro V está mais alto que D. Pedro IV e a Rua dos
Correeiros é a estação preferida das mulheres de trottoir.”
Pp. 62-64.
7)
“– (…) Ia dizer isso mesmo e dar-lhe um exemplo. Numa das
noites de Carnaval (na Gronelândia também há Carnaval) mascarei-me
de «Sonho de uma noite de verão» e encaminhei-me para um dancing
(na Gronelândia também há dancings). Seduziu-me uma beldade
que por lá andava, vestida de Pierrette e despida de convenções.
Convidei-a para dançar. Empreguei a fundo o meu reportório de
galanteios. Ficou insensível e pediu-me quinhentas libras por uma
noite de amor.
–
Eis tudo?
–
Eis tudo.
–
É o que se pode chamar uma aventura extra-curta. Mas compreendo a
sua renúncia, perante uma exigência dessa ordem.
–
Não tão excessiva como parece à primeira vista. Bem vê: era uma
noite polar, uma noite de seis meses… “ Pág.
71.
Baile
da Graça – Narrativas irregulares editado
pela Livraria Editora Guimarães & C.ª, Lisboa. Em 1935.
|
8)
“Alexandre Barata, astucioso e resoluto «detective», recebe
uma comunicação telefónica de D. Noémia Cordeiro, senhora da sua
estima e consideração e excelso ornamento da vila de Tôrres
Vedras. (…) Dez minutos depois, o meu dez-cavalos rodava a
caminho de Tôrres Vedras. Adoro essa vila de azeite e vinagre, mas
desta vez levava-me lá um móbil mais forte que o interêsse
turístico. Puxei para a frente o boné de quadrados – eu uso um
boné de quadrados para quebrar a monotonia dos óculos redondos –
e deixei-me absorver pelas minhas deduções.
Em
primeiro logar, o barómetro acusava uma baixa pressão na Islândia
e fortes aguaceiros por altura dos Açôres. Descida de temperatura
na Península Ibérica. Logo, o crime fôra cometido a sangue-frio e
antes do romper de alva, o que era confirmado pela hora matinal da
comunicação telefónica. Visionei tudo. Judite estava no quarto,
dormindo o seu sono inocente e casto. Não houvera arrombamento –
D. Noémia teria dado conta e sofreria também as consequências –
donde resultava que o criminoso se introduzira pela janela, que era
térrea.
Ora
eu conhecia o local: só um homem com mais de um metro e oitenta de
altura poderia galgar o peitoril de Judite. Como teria reagido a
donzela? E como penetrara o criminoso? Com o pé direito ou com um
«pé de cabra»? O «pé de cabra» não era necessário: um simples
empurrão bastava para fazer girar os caixilhos. Portanto, o
assassino entrara com o pé direito. E, portanto, era supersticioso.
As
minhas deduções estavam já neste pé, mas eu fui mais além.
Ao
que parecia, a jóven não gritara. O bandido fizera-a calar por um
de dois processos: ou pela mordaça, ou pela gorgeta, que é também
um meio excelente de fazer calar as pessoas. Inclinei-me para a
mordaça – e bati com a cabeça no pára-brisas. Afigurou-se-me
indiscutível que fôra empregada a mordaça. A seguir, o malfeitor
apertara a glote de Judite: era poliglota. Obrigara a paciente a
deitar a língua de fóra: era médico.
Soltei
um urro de triunfo. Tinha a chave do trinco do enigma! Conhecia os
sinais do bandoleiro: um médico poliglota e supersticioso, com um
metro e oitenta de altura. E, sem sombra de dúvida, um especialista
de garganta.” Pp.
82-84.
9)
“Os prefácios vulgarizaram-se de maneira atroz e representam
verdadeiras armadilhas ao público. Nos prefácios, o autor, ou
alguém por êle, procura criar no leitor uma expectativa favorável,
sugestioná-lo àcêrca do mérito da obra. Isto é uma cobardia, uma
cilada, um guet-apens.
Em
conseqüência, resolvi suprimir o prefácio. Ainda pensei em
remetê-lo para as últimas páginas. Ponderei logo a seguir que,
nêsse caso, já não seria prefácio mas posfácio e ninguém
se daria ao trabalho de o folhear sequer.
Estava
naturalmente indicado um expediente médio, ou seja: o entrefácio.
Assim
o entendi e fiz executar.
Inserto
a meio do livro – numa altura em que o leitor já apreciou metade
e, portanto, não é fàcilmente sugestionável – o entrefácio
impõe-se como um processo honesto e digno de ser adoptado por
quantos pretendem ter um contacto explicativo com o público.
Esta
«Advertência» serve de entrefácio à 1.ª edição.
Mas
não seria justo que os leitores da 1.ª edição – precisamente o
mais fiéis, os mais dedicados, os mais merecedores da minha simpatia
ficassem privados do prazer de saborearem a prosa que eu aditar a
esta obra, em futuras edições (as quais, decerto, não se farão
esperar) Para lhes não frustrar tão legítimo regalo espiritual,
publico já os entrefácios à 2.ª edição e à 3.ª edição.
Cumpro
simplesmente o meu dever. Não agradeçam.” Pp.
96-97.
10) “
Entrefácio à 2.ª edição
ou
Uma
leitora
que
me faz perguntas
Devo-lhe
três cartas, mais polidas que a suas unhas de mulher civilizada,
três cartas que antes parecem escritas com o polissoir do que
com qualquer vulgar for life.
Póde
mandar a factura – contra o reembolso da minha gratidão.
Porquê
só três cartas, três simples fôlhas de papel? Gostaria que me
enviasse cinquenta (não esquecendo os correspondentes envelopes),
completamente em branco. Gostaria, não só porque o papel é
excelente, mas ainda porque assim ficaria dispensado de responder às
suas embaraçosas perguntas.
Começa por perguntar-me como escrevo. Como escrevo?! Sentado,
evidentemente. Sentado a uma secretária em que há de tudo: rosas do
Japão, o Anuário Comercial, o correio chegado de manhã e os
jornais recebidos à tarde. Para dizer toda a verdade – V., querida
leitora, merece que eu a tome por confidente – rectifico que não
tenho rosas do Japão na secretária. Falei nelas para mostrar que
não desdenho os pormenores requintados. E as rosas do Japão teem um
nome bem soante que quadra à maravilha com a decoração do meu
gabinete de trabalho. Guarde para si êste deslise de sinceridade.
Não o repita a ninguém – sob pena de comprometer
irremediàvelmente a minha reputação.
De
pé, só poderia escrever nas paredes. Confesso que nunca senti
atracção por semelhante género de escrita, nem quero difundir por
êsse meio as minhas convicções cívicas, o meu amor à pátria, a
minha repulsa pelos adversários ou os meus conhecimentos, aliás
profundos, de anatomia e fisiologia.
No
entanto, é-me muito agradável deparar com uma criança ou um
adolescente garatujando nas fachadas das casas. Enternecem-me as
obscenidades e o seu traçado primitivo, a gis ou carvão. Por duas
razões: por tratar de um sintoma da progressiva diminuição do
analfabetismo; e porque essa criança (ou êsse adolescente) será,
quando crescer e aparecer, um consagrado autor de revistas, repletas
da não menos consagrada «boa graça portuguesa».
Talvez
seja uma falha do meu passado. Realmente nunca escrevi nas paredes!
Por isso mesmo nunca serei consagrado autor, expressão com
que se designa quási sempre a paternidade legítima de oitenta e
seis traduções, quarenta adaptações e vinte e oito imitações –
e a paternidade, absolutamente ilegítima, de dois ou três originais
alheios.
Admitâmos,
porém, que escrevo sobre o joelho, como V., querida leitora,
imagina. Isso significa precisamente que não faço os meus contos
com uma perna às costas! Uma posição exclui a outra e V., com
certeza, não desejaria ver-me em horríveis contorsões, pouco
propícias ao bom exercício das faculdades intelectuais.
Se
tenho ilusões? Não. Perdi-as há muito. Sempre contei com o pior e
sempre estive convencido de que são efémeros os bens dêste mundo.
Ainda no berço, no período da amamentação, eu já sabia que êsse
regime de favor não se prolongaria por muito tempo. Na escola, foi
para mim ponto de fé, desde o primeiro dia, que não andaria
eternamente em instrução primária. Não, querida leitora. Tenho
perdido, nos zigue-zagues da vida, todas as ilusões benfazejas.
Resta-me uma única. A minha única ilusão consiste em supor que não
tenho ilusões.
Se
gosto de perfumes? Decerto, principalmente do perfume do seu papel de
carta. Mitsouko ou Narcise noir? Perdoe que a minha
resposta rescenda a tinta de imprensa. Não é culpa minha. O
original foi aromatizado au Dandy. Na verdade, gosto de
perfumes e tenho o olfacto educado, o que me permite fazer
classificações. Há mulheres que cheiram a wagons-lits –
um mixto de banho recente, hulha, metal aquecido, corticite e ozone.
São as «mulheres internacionais». Em compensação, alguns
boudoirs de marquesas trescalam a repartições de finanças –
cigarro apagado, poeira, oleografias e «Diário do Govêrno».
Perguntará
que sei eu de boudoirs de marquesas. Dou a mão à palmatória:
muito pouco. Não sou um escritor especializado no assunto. Tenho
vários titulares na minha família: vários apreciáveis parentes
possuem títulos da dívida pública – e que falam, dormem e amam
como todos os outros titulares. Não basta?! Creio também que não.
Mas seja justa: é apenas a segunda vez que me ocupo de marquesas e
nem chega a ser uma reincidência. Quando, da primeira vez, escrevi
num dos meus contos a frase «deitei-me sobre a marquesa», não
tinha (juro-lhe) a intenção de provocar a emulação dos meus
leitores – e sim, unicamente, a de relatar como me expús a uma
observação clínica meticulosa.
E
por hoje basta. Escreva-me na volta do correio, para me dar a
matéria-prima da minha próxima resposta. Não lhe beijo a fímbria
do vestido, porque seria romântico e contra higiene. Limito-me a
beijar-lhe a fímbria da mão direita, o que é igualmente romântico
e anti-higiénico. Que quere? Agrada-me o seu perfume. Mitsouko
ou Narcise noir?” Pp.
99-101.
11)
“É conhecida a minha simpatia pelos conferencistas. As
conferências são um meio excelente de nos alhearmos das realidades
durante um mínimo de cinquenta minutos. Enquanto o conferencista
fala, a assistência medita naquilo que mais lhe apraz, o que nem
sempre é possível conseguir nas circunstâncias normais da vida. De
modo que é dupla a vantagem das conferências: para o orador,
colheita fácil de aplausos; para o público, alguns momentos de bem
estar e de isolamento espiritual. Já no «100 % FALADO», livro que
corre mundo, incluí as Reflexões sôbre o casamento,
palestra que tôdas as pessoas bem intencionadas consideram um modêlo
no género. Continuo empenhado a facilitar o trabalho dos que
pretendem contactar com a multidão por intermédio de uma voz quente
e de um copo de água fria, no confôrto de uma sala. Os bons
conferencistas, isto é, aqueles que linguarejam com êxito, nunca
teem ideias próprias. Cedo-lhe portanto as minhas, sem reservas,
antes com a melhor boa vontade.” Pág.
108.
12)
“Em resumo: o homem não é lobo, nem cordeiro. É unicamente
hipócrita. Desdenha do que lhe agrada e reprime o que realmente lhe
interessa. Polígamo refalsado, só contra a vontade defende em
público o matrimónio, que secretamente considera, talvez com razão,
um aborrecido processo de trocar o amor por miúdos…
(…)
Isto vem a propósito, neste momento em que as populações das
cidades começam a ir diàriamente despir-se à beira-mar, para mais
íntimo contacto com o oceano. Estamos na época do pudor. A
sociedade policiada, descendente de Adão e do homem de armas,
serve-se de um funcionário para verificar a compostura dos
banhistas. É o cabo do mar.
Eu
sou aquele oculto e grande cabo…
Espécie
de espada de Damocles e ôlho de Providência, o respeitável
funcionário ocupa-se em medir a área dos soutiens,
fiscalizar a esquadria das alças e tirar o logaritmo dos calções.
É singular, mas verdadeiro: o Estado dá ordenado, farda e
municiamento a um delegado seu, para impedir que os cidadãos
descubram livremente o umbigo. Mais valia criar uma licença de uso e
porte de umbigo, já que é injusto proibir que cada qual disponha –
cobrindo-o ou descobrindo-o – dêsse encantador ornato, que lhe foi
dado pela Natureza. “ Pp.
132-133.