28/04/2018

Inscrições Abertas 2...


Curso de Práticas de “Secreto” para Encenadores e Coreógrafos.

     Após o estrondoso sucesso do nosso primeiro curso designado por «Literatura para Vitrinistas» (ver + aqui). Dá-mos início à abertura das inscrições para este novo curso.
Fomos para isso motivados pelas imensas incongruências, incoerências e erros históricos que constantemente se encontram nos chamados filmes de época, ou nas peças teatrais, que também retractando uma determinada época, são levadas, hoje, à boca de cena. A parca ou mesmo a falta de pesquisa por parte de quem pretende recriar com rigor histórico determinado ambiente ou situação passada - leva-nos constantemente a ver, nos ditos filmes e peças de época, erros de cronologia que mancham indelevelmente o suposto rigor que deveriam atender. Constantemente se vê, por exemplo, fulano de tal, numa cena passada no século XVIII, sentado à sua secretária que até pode ser de um estilo congruente, mas emoldurado por uma biblioteca cheia de encadernações que só apareceriam cem ou duzentos anos mais tarde. Vê-se tipografias e ferros de Arte Nova num filme que pretende passar-se no século XVII. Pastas feitas com balancés eléctricos, ou uma encadernação meia amador francesa nas mãos de um devoto da Idade Média… Pensa-se que basta uma encadernação de pele gasta, para dar aquele ar antigo, e usado e pouco mais é necessário para se pintar o retrato há época… Não basta, é claro!
Mas há outras subtilezas que são ainda mais comuns. Noutro dia vimos um filme, que por consideração não o vamos nomear, mas que pretendia com rigor retractar um conflito no século XIX, uma alta patente militar é interrompido por um subalterno com um requerimento interno com ordens e instruções estratégicas. Como é que é apresentado essa missiva? Num sobrescrito quadrilongo e dobrado em harmónio, ou seja, um formato comercial. Quando se sabe que a forma oficial dos requerimentos, nessa altura, eram o duma dobragem em quatro partes iguais com envelopes quadrados destinados para esse fim. São minudências isto? São minudências ouvir chamar, numa peça histórica, «Sua Alteza» à rainha quando se sabe que é um tratamento exclusivo para os seus filhos enquanto principes e infantes? Sei que são situações que passam ao lado de muitos. Mas queremos rigor histórico ou não? Poderiamos falar de muitos mais casos, de expressões de trato usadas incorrectamente, uma coisa simples como o uso de cores de lacre para selar os invólucros e que representam diferentes estados de espírito, o negro para uma carta de luto, o vermelho para uma carta mais intima. Mas não burocrática ou oficial como se vê muitas vezes representado. Sem falar na joalharia ou nas coroas que são sempre símbolos representando a sua determinada casta. A coroa de um duque é tão diferente da dum conde e por aí fora até à dum rei ou a de um imperador que é bem diferente da dum rei. São cuidados que se podem aplicar até na manufactura das coroas de papel de um teatrinho infantil.
Por estas razões. E para orientar os interessados na manutenção destes rigores que darão uma maior verosimilhança às suas recriações históricas. Decidimos elaborar este curso que terá como base a famosíssima obra, que é em si um grande compêndio, da segunda metade do século XIX – o “O Novo Secretário Universal Comercial Portuguez”. Os destinatários são os que com o título do curso são indicados, porém não abrindo ao público em geral porque o consideramos abstracto fazemos uma excepção, com uma pequena quota, (não sejam assim com as quotas) para estudantes de estudos feministas e do género, onde nesta obra poderão encontrar imenso material e “assumptos” acerca do papel da mulher, ou a inexistência deste, nas sociedades da altura. Sendo as extrapolações para a sociedade actual da vossa responsabilidade, ou como se diz nos direitos de antena: da responsabilidade dos intervenientes.
Estão abertas as Inscrições. Boa sorte!

RAR, 28 de Abril de 2018.


Das formulas de tratamentos

Quando nas regras e observações geraes ácerca do estylo epistolar, ponderámos, que era necessario attender á qualidade e cathegoria da pessoa a quem se escreve, dissemol-o, porque o estylo deve ser adequado aos predicados d’essas pessoas. Agora porèm, que vamos enumerar succintamente quaes os tratamentos devidos ás differentes jerarchias, que constituem a sociedade (alguns dos quaes sómente se acham estabelecidos pelo uso geral que d’elles se faz) cabe-nos recommendar a maior circumspecção no emprego d’esses tratamentos, para que de simellhante falta não nasça algum resentimento.
Assim é que quando a carta ou requerimento fôr feito:
Ao papa, pôr-se-ha no alto = Santissimo Padre.
Ao rei = Senhor.
Á rainha = Senhora.
Ao principe, princeza, infante ou infanta1 = Serenissimo Senhor ou Serenissima Senhora.
Ao patriarcha = Eminentissimo e Reverendissimo Senhor.
Aos bispos, arcebispos e principaes da Sé = Excellentissimo Senhor.
Ao vigario geral = O mesmo tratamento.
Ao esmoler mór = O mesmo tratamento.
Aos monsenhores = Ill.mo Reverendissimo Senhor.
Aos barões, condes, marquezes e duques = Ill.mo Excellentissimo Senhor.
Aos pares do reino = O mesmo tratamento.
Aos conselheiros de estado = O mesmo tratamento.
Ao presidente do tribunal da relação = O mesmo tratamento.
Ao procurador geral da corôa = O mesmo tratamento.
Ao procurador regio = O mesmo tratamento.
Ao procurador geral da fazenda = O mesmo tratamento.
Aos governadores civis dos districtos do reino = Ill.mo Excellentissimo Senhor.
Ao presidente da camara dos deputados = O mesmo tratamento.
Ao presidente da camara municipal = O mesmo tratamento.
Ao presidente da junta do credito publico = O mesmo tratamento.
Aos brigadeiros, marechaes de campo, tenentes generaes, marechaes do exercito = O mesmo tratamento.
Aos chefes de divisão, chefes de esquadra, vice-almirantes e almirantes = O mesmo tratamento.
A todos o mais individuos, que occupam uma posição decente na sociedade, é costume pôr-se no alto da carta Ill.mo Senhor e dar-se o tratamento de Senhoria. O vossa mercê sôa mal hoje ao ouvido, que se o empregarmos escrevendo mesmo a pessoas a quem não competisse outro tratamento, esta incuria beliscaria o melindre de muitos, ou ao menos, a hilaridade de todos.
Ás senhoras competem os respectivos tratamentos de seus paes, maridos, etc., e sempre Dom; no entanto é moda dar-se Excellencia a todas, mui particularmente nos bailes e saráos. Aquelle, que infringisse hoje este requintado preceito de urbanidade, passaria por grosseiro e descortez.
Quando a pessoa a quem escrevemos fôr de consideração e respeito, deveremos pôr, bem no alto da carta, o tratamento que lhe tocar, e depois começar a primeira regra a dois terços, pouco mais ou menos, da altura do papel.
Nas correspondencias familiares não se exige esta formalidade.


Corpo da Carta

Seria grande incivilidade, especialmente em uma carta de ceremonia, usar de breves, raspar palavas, ou pôr entrelinhas.
A polidez tambem exige, que se deixe á esquerda do papel uma margem larga em branco. Todavia nas cartas familiares, ou de egual para egual, é dispensavel esta formalidade.
No corpo da carta deve usar-se sem affectação do titulo ou tratamento devido á pessoa a quem se escreve.
Assim é que diremos:
Ao papa – Vossa Santidade.
Ao rei e à rainha – Vossa Magestade.
Ao patriarcha – Vossa Eminencia.
Aos bispos, arcebispos, fidalgos, titulares, pares do reino, etc. – Vossa Excellencia.
Ás mais pessoas, como atraz dito – Vossa Senhoria.
Nas cartas de formalidade e ceremonia devem evitar-se as interrogações; mas se as fizermos será sempre de um modo respeitoso.


Finais das Cartas

Como são muitas e variadas as maneiras de rematar uma carta, transcreveremos aqui, para maior facilidade, as formulas mais usadas, em cujo emprego (escusado seria repetil-o) devemos sempre ter em vista quaes as relações que temos com a pessoa a que nos dirigimos:

Sou com o mais profundo respeito

De V. Excellencia
Attento venerador e criado.


Digne-se V. Excellencia receber as protestações e respeito de quem tem a honra de ser

De V. Excellencia
Subdito fiel e respeitoso.


Sou com todo o respeito e acatamento

De V. Senhoria
Attento venerador.


Aproveito esta ocasião para repetir mais uma vez que sou

De V. Excellencia
O mais attento venerador.


Tenho a honra de confessar que sou

De V. Excellencia
Muito venerador e criado.


Sou com toda a consideração

De V. Senhoria
Respeitoso admirador e
affectuoso criado.


Espero que V. Excellencia não duvidará nunca da consideração e respeito com que sou

De V. Excellencia
Muito humilde criado.


Digne-se V. Excellencia receber os respeitosos cumprimentos, de quem tem a honra de assignar-se

De V. Excellencia, etc.


Receba V. Senhoria, com a sincera expressão do meu reconhecimento, as protestações de respeito e acatamento com que

De V. Senhoria
Sou com a mais alta consideração
De V. Excellencia, etc.


Nas correspondências familiares usaremos das seguintes formulas:

Acredita que sou e serei eternamente
Teu amigo do coração.

Adeus, meu charo, conta sempre com a sincera amisade e verdadeira estima do

Teu fiel amigo.


Recebe com as expressões de amizade, que te envio, mil saudades d’este

Teu amigo sincero


podes ficar certo, que a minha amisade nunca terá quebra, e que sou e serei sempre

Teu amigo, etc.

Para se empregar com acerto qualquer d’estas formulas, diremos que a palavra reconhecimento é a mais propria quando se escreve a um bemfeitor; que aos superiores devemos respeito; reverencia aos paes e aos mestres; e consideração áquelles, que gozam da estima publica pelas virtudes e ponderosos serviços.
Os paes, escrevendo aos filhos, acabam ordinariamente dizendo:
Teu pae affectuoso e amigo.
Teu pae e bem sincero amigo.
Teu pae e unico amigo.
Teu pae muito extremoso.
Ou tua mãe, etc.

Os filhos, porém, deverão usar de fórmulas respeitosas, como por exemplo:
D’este seu filho
Muito obediente e respeitoso.

Sou com a mais profunda veneração, meu querido pae (ou mãe)
Seu filho (ou filha) muito affectuoso (ou affectuosa)

Nas cartas que forem dirigidas a pessoas de respeito e consideração, nunca se accrescentarão post-scriptos.
Como nas correspondencias das confrarias e associações se costuma usar das mesmas formulas, que nas publicas ou officiaes, diremos qual é a praxe seguida n’estas, afim de se poderem empregar quando fôr necessario.
No alto do officio põe-se o tratamento devido á pessoa; por exemplo: Ill.mo e Ex.mo Sr., e no fim escreve-se em regra separada:
Deus guarde a V… (Segue-se a data); logo em seguimento, e n’outra linha, começando da extrema esquerda do papel, pôr-se-ha:
Ill.mo Ex.mo Sr. (o nome ou titulo): e bem no fim do papel a assignatura.
N. B. É signal de respeito pôr n’uma só regra o nome todo da pessoa a quem se officia; bem como deixar um grande espaço entre este e a assignatura.”

M.A.S. (org), “Novo Secretario Universal Comercial Portuguez – ou methodo de escrever toda a especie de cartas”, pp. 16-25, Livraria J. J. Bordalo, Lisboa, 1874.

1Não é erro escrever infante ou infanta, porque temos boas auctoridades tanto para uma como para outra palavra.

20/04/2018

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S. Martinho de Anta, 20 de Abril de 1938 Tirei leite à cabra. Mas a minha mão já não é a mão justa do lavrador que conhece a medida da sua fome. Tirei tudo. Sequei tudo. Deixei o cabrito sem ração. Meu pai olhou-me desanimado, e a cabra também.

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 68, 1941, Coimbra.

12/04/2018

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Coimbra, 12 de Abril de 1939 – Riam-se lá, se quiserem, mas hoje, depois de reler Huxley, conclui que um dos maiores escritores que tenho lido é… o Júlio Dinis. Pondo de parte aquela santa Selma Lagerlöf, que até parece mentira, poucos como ele souberam até hoje encher a minha alma de paz e de ternura. Bem sei que ser escritor não é fazer a entronização do Sagrado Coração de Jesus pela província. Mas também não é fazer morrer desvairados à sombra dum quarteto de Beethoven.

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 94, 1941, Coimbra.


06/04/2018

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Gerez, 6 de Abril de 1944 Ainda a leitura destes frades nacionais, e a convicção cada vez mais provada de que a vida mental portuguesa não tem crescimento. Parece que cada escritor, cada artista, aqui, começa sempre de novo. Camilo é tão primário como Fernão Lopes, e João de Deus tão ingénuo como D. Dinís. Nenhuma geração, desde que Portugal é Portugal, pegou na herança que lhe deixaram, e aumentou o capital. À gente de setenta, por exemplo, clara, luminosa, racionalista, seguiu-se uma outra sebastianista e brumosa. Onde se entronca Antero? Quem ergue hoje o facho que brilhou nas mãos de Garrett? Perdem-se as raras mensagens que de tempos a tempos aparecem, e cada alfobre literário é composto por uns pobre pacóvios que vêm de Trás-os-Montes ou do Algarve, e que entram a gatinhar nas letras ou no pensamento como se a arte e as ideias estivessem ainda no Condado Portucalense. A cultura não chega ao povo, e quem vem dele não a pode trazer, evidentemente. Isto não é falta de respeito nem de carinho pelo que temos. Deus sabe a ternura que me desperta uma das nossas páginas gordurosas de prosa! É apenas uma verificação imparcial. Se pegamos numa história da nossa literatura, lá temos o sábio Fr. Amador Arrais, o inefável Heitor Pinto, o velho Manuel Bernardes, o nunca assaz padre Vieira. Mas se tratarmos duma história do nosso pensamento, é a mesma gente que nos aparece, a ser pau para toda a colher. O mesmo nome serve para representar a poesia, a novela, o teatro, a filosofia, a mística, a retórica, tudo quanto Marta fiou. O pior é que Marta fiou uns tormentos que arranham a alma de quem os veste! Já o romance fez todas as experiências, tentou todos os caminhos, e o nosso ainda a choutar em Fornos de Algodres! A coisa começou menos mal com Bernardim Ribeiro, mas quem deu continuidade àquele nosso esmoer saudoso dos sentimentos? Fazemos uma arte de impulsos, desarticulada dum todo, anárquica e fragmentária. Também não queria um imbricamento tão apertado como existe em certas terras, onde se está a ler Gide e a entender Montaigne. Mas pedia uma linha de propósitos, uma ramificação constante da mesma cepa comum, dando cada ramo as suas flores e os seus frutos. Mas não. Por mais que a gente se esforce, o que é certo é que em toda a nossa literatura não há verdadeiramente uma obra que seja um facho a arder na grande noite da humanidade. Onde temos nós coisa que se compare a um D. Quixote, essa gigantesca coluna do génio mais estremado que se viu? Camões? Muito bom, evidentemente, mas é preciso mais. Ainda foi a nossa limitação que cantou ali. Os Lusíadas! Logo no título a nossa tacanhez se manifestou. Os outros chamaram às epopeias deles Odisseias, Paraísos Perdidos, Divinas Comédias, etc. Nomes que agarram mundos. Nós ficámo-nos pelos lusíadas desta pobre Lusitânia. Bem se sabe que o nacional português era na ocasião o universal. Mas está justamente aí o limitado da visão. Nunca o relato grandíloquo das façanhas dum povo podia constituir em si matéria de eternidade. A isso era preciso juntar-lhe qualquer coisa de mais simbólico e geral, uma síntese que ficasse para sempre a ser um marco de imaginação e de poder criador. Quase tão ilegível como os Lusíadas, a Divina Comédia tem contudo a visão assombrosa e apocalíptica do Inferno. E sempre a humanidade há-de encontrar ali a concretização dum terror, dum enigma que lhe devorou a fantasia. Nas piores páginas do Quixote permanece vivo o diálogo infindável e universal do espírito e da matéria, e é isso que nele importa fundamentalmente. Ora Camões não levantou o pano a nenhum mistério. Deu a volta ao mundo, como Fernão de Magalhães, a cantar as nossas glórias. E as nossas glórias passaram…
Mas está bem, aceitemos Camões. E a seguir? A seguir vêm dois séculos em que ninguém sabia o que era um verso! Lá aparece Garrett por fim a estudar o romanceiro, a aprender de novo a magia das coisas, e consegue escrever as Asas Brancas. Mas, ao lado, Castilho continua a rimar arcàdicamente, e Herculano permanece granítico, a fazer cruzes quebradas como um mau pedreiro. Ora a arte e o pensamento implicam um afinamento contínuo de processos, um saber cada vez mais sólido e desanuviado. Perdendo-se a experiência passada, é natural que tenha de se recomeçar com meios simples e primários. E o progresso é impossível. De resto, esse crescer contínuo, além doutras vantagens, evitava-nos o dissabor de certas adptações ou imitações serem tão grosseiras e calvas. Aflitos, os nossos artistas e pensadores, em certos momentos, começam a correr para apanhar o comboio de uma actualização universal. E como vão sem bagagem, nus e ingénuos, o resultado é no fim a roupa que vestem em Paris tapar-lhes o melhor da personalidade.
É claro que uma verificação destas só é possível se puder servir o futuro. Mas é exactamente no futuro que eu penso.
Só há grandes literaturas onde o povo é permeável à cultura. Onde se leu a Bíblia à lareira durante centenas de anos, e onde as Mil e uma Noites não destoam ao lado de uma charrua. O nosso povo, que é donde sairam os nossos maiores, precisa dum banho lustral de pão e de beleza. E então, sim! Então cada escritor português que vier não terá apenas para descrever, e grossamente, as pitorescas romarias da sua aldeia.

Miguel Torga, “Diário III”, pp. 26-30, 1954, Coimbra.

30/03/2018

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(...)
Estes homens de São Paulo,
todos iguais e desiguais,
quando vivem dentro dos meus olhos tão ricos,
parecem-me uns macacos, uns macacos.

Mário de Andrade, op cit “Paulicéia Desvairada”, Poesias Completas / MárIo de Andrade. Edição Crítica de Diléa Zanotto Manfio, Editora da Universidade de São Paulo. 1987.

24/03/2018

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São Martinho de Anta, 24 de Março de 1940 Tentativa fustrada para ir às Terras do Preste Baçal. Bragança é longe. Além disso, o carro, apenas atravessou o distrito de Vila Real, pôs-se a refilar, a refilar, até que parou de todo.
E aí vou eu por aqueles ermos, doido, aos gritos, sob um sol africano, a pedir gasolina às fragas e aos sobreiros. De regresso, com um regador dela, ordenhada a seis quilómetros de distância do fundo dum bidão providencial, alagado em água, dou de caras com o motor esventrado pelo companheiro.
E aquela miséria mecânica, ali ao sol como os figos, tirou-me quantas ilusões em nome da humanidade eu tinha posto nos cilindros e nas rodas. Evidentemente que uma dedada singular imprimira no aço e no latão a marca do primeiro arfar da vida. Mas a coisa era cosida com parafusos a mais. Não havia naqueles ferros a interpenetração de tudo, a mágica ligação de tudo, que faz dum corpo humano um milagre de resistência e adaptação.Lá estavam realmente as causas da paragem inesperada: a bóia solta, a gasolina entornada, e o coração do carro sem alento. Mas um homem, mesmo estendido e aberto numa mesa de pedra, era outra coisa. Não tinha nunca aquele ar mesquinho e ridículo de brinquedo estragado.

Miguel Torga, “Diário I”, pp. 139-140, 1941, Coimbra.

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"Cacei-me com a boca na botija a pensar numa tristeza minha como se fosse um poeta. Mais um perigo a evitar, este de considerar a tristeza um tesouro particular de que se fala com respeito e ternura, Se não tomo cuidado perco-me completamente. Fico para aí  escrever versos sobre os meus furunculozinhos mentais e a impingi-los aos outros como sendo obras duma importância fundamental."

Luis de Sttau Monteiro, “Um Homem Não Chora”, pp. 53-4, Ática, Lisboa, 1963.

21/03/2018

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“(…)
Eu feito homem da gravata às riscas – Pois invejo-lhe a sua posição. Também gostava de ser independente.
O Sr. Pomposo – Pelo que lhe ouvi dizer pareceu-me que já o era.
Eu feito homem da gravata às riscas – Sim… dentro da medida do impossível…
O Sr. Pomposo – Dentro da medida do possível, quer V. Ex.ª dizer…
Eu feito homem da gravata às riscas – If you say so.
O Sr. Pomposo – Peço-lhe o especial favor de se não usar palavras estrangeiras. Considero tal hábito antipatriótico. Uma pessoa esclarecida como V. Ex.ª deve auxiliar-me nesta minha campanha em favor do aportuguesamento da língua.
(…)
Felizmente o elevador chegou ao fim da viagem. Saímos todos para a rua. Um «chauffeur» bem fardado abre a porta do carro do sr. Pomposo e este pergunta se nos pode ser útil ou se desejamos que nos leve de carro a qualquer sítio.
Por amor de Deus, meu amigo. Moramos aqui mesmo. De qualquer forma nunca entro num automóvel.
Porquê?
Porque o automóvel não é uma invenção portuguesa. Trata-se dum autêntico estrangeirismo. Pessoalmente sou pelos meios de transporte tradicionais portugueses: a mula, o coche e a cadeirinha. V. Ex.ª, que é uma pessoa esclarecida, deveria auxiliar-me na minha campanha pelo aportuguesamento dos meios de transporte, pelo regresso às velhas tradições que tão bem serviram os nossos avós. Não acha?

Luis de Sttau Monteiro, “Um Homem Não Chora”, pp. 32-35, Ática, Lisboa, 1963.

17/03/2018

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Leiria, 17 de Março de 1941 Outro dia de cartas e críticas do José Agostinho de Macedo, o melhor que saíu da mãos do frade. Muito aprendeu o Camilo com este homem!
Pois é verdade: o dito padre Lagosta tem missivas a uma freira trina e pareceres sobre certos livros que são obras primas de prosa humoral. Como coisa sanguínea, grossa, de ferroadas e arrotos, pouco se escreveu em Portugal tão vivo e tão lapidar.

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 183, 1941, Coimbra.


13/03/2018

INSCRIÇÕES ABERTAS...


INSCRIÇÕES ABERTAS
Informo que a partir de hoje dou um curso de “literatura” para vitrinistas – designers com Windows em inglês. Sabendo que livros em montras, de qualquer coisa, ficam sempre bem (excepto de livrarias). No meu curso encorajo os alunos a serem mais audazes. A colocarem livros, por exemplo, em montras de talhos. O Duplo do Dostoievsky inserido numa unha de vaca é uma ideia... E não me alongo mais porque abordar-se-á esta e outras ideias no curso.
O que é importante salientar é que mesmo sendo possível comprar livros a 1 euro o quilo é preciso saber o que trazer. Para depois não se ir gastar dois ou três euros naqueles sacos super resistentes, que aguentam vários quilos, só porque não existe nenhuma certeza que trazem os livros certos para a execução da montra. É um desperdício…
Àqueles que compram “monos” com dourados porque acham chique. Eu ensino a distinguir por épocas e estilos.
Com os melhores cumprimentos,
RAR, Porto, 13 de Março de 2018.

p.s. as inscriçṍes terminam no final do mês. 
 
Livros em montras de artigos sanitários. Outra boa ideia. Quem é que nunca leu na casa de banho?!...

Livros em montra de joalharias e pechisbeques...

Livros em montra de óculista...

Livros em montra de especiarias gourmé

Livros em montra de garrafeira...

12/03/2018

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Soube que V. vem por hábito aqui às 2 menos quarto. Não poderei estar. Despeço-me de si até breve. Agradecido. Tenho pena de não ter encontrado segunda vez com Mznuel de Oliveira.
Interessa-me encontrá-lo na volta. Ele é indispensável no Cinema Novo (português). Será na minha volta aqui a continuação da nossa conversa. Peço-lhe me despeça dele. Um abraço. Vou contente com tudo quanto aqui se passou comigo no Porto. A primeira semente está posta na terra boa. Levo boas notícias da gente nova daqui para a gente nova de lá.
Dois sítios diferentes para gente igual é excelente. […]
Ainda tenho este quarto de guardanapo para lhe pôr o meu serviço ao que lhe preste lá ou onde seja. Não foi novidade absolutamente nenhuma para mim que o Alberto Serpa é um fixe e que o é também para o
almada

Porto 15-11-50







Desenho, escrevo, esculpo, vitralizo, danço, teatralizo, cinematografizo e, se a minha arte não falar por qualquer destas vozes, que havemos nós de fazer? Façam de conta que eu já morri – e que deixei essas obras póstumas…”

Almada entrevistado por Luís de Oliveira

A Engomadeira




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10/03/2018

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Coimbra, 10 de Março de 1943 – Dois chineses na sua algaraviada, e esta ideia que me ocorreu:
Que, apesar da dificuldade aparente, aprender a língua de Confúcio não deve ser coisa de atrapalhar ninguém. O homem, embora às vezes pareça o contrário, é modesto. Inventa dois mil caracteres, e serve-se apenas de vinte ou trinta. Descobre a metafísica, o cálculo diferencial, a lógica formal, a botânica, mas fala cotidianamente de coisas triviais. De pão, de vinho e de pantufas.”

Miguel Torga, "Diário II", pág. 136, Coimbra.

03/03/2018

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Leiria, 16 de Fevereiro de 1940 É um casal de relógios de parede, dos que sempre foram feios.
Pela manhã, haja o que houver, à mesma hora, passa ele por esta rua para o escritório. Vai almoçar ao meio-dia. Volta à uma. E às seis em ponto sai outra vez.
Nem vale a pena dizer-lhe o nome. É só mais um dos milhões iguais que há por este mundo, que o quotidiano determina, como o sol os heliotrópicos. Não sei, é certo, o que se passa lá por dentro, onde às vezes os hábitos e a monotonia doem muito. É possível que tenha um sonho, que tenha um drama, que tenha consciência desta agonia universal de que ele próprio, queira ou não queira, compartilha. Mas é possível também que não saiba nada disto, que não sinta nada disto, que a sua vida interior seja um ir às nove para o escritório e um sair às seis do escritório. Há tempos apareceu casado. Mas viu-se logo que o casamento lhe acontecera, como acontece às vezes apanhar uma carga de água a caminho do emprego.
A mulher é uma pessoa baixa, pálida, com sobrancelhas muito carregadas. Uma pura máquina de cozinha, que acende o lume às dez, lava a loiça à uma e um quarto, limpa o fogão depois, esfrega a seguir, e acende novamente o lume às cinco e meia.
Não namoram. Ele lembrou-se dela no intervalo do escritório, ela já sabia que com alguém havia de ser, e um dia, sem saberem como, aí estavam de casa e pucarinho, a comer o almoço. Uma vizinha, a princípio, ainda tentou meter um bocadinho de graça naquilo. Mas terra assim não dá mais. O escritório às nove, o lume acesso às dez, e, fora disto, um vazio que seca tudo. Nem sequer uma cria!
– Filhos, para quê?!
Dizem isto, e nenhum deles estremece.
Tudo quanto a vida consegue exprimir ali, em beleza, graça e perfume, que se veja, está resumido num cravo enigmático e viçoso que ele usa perpètuamente na lapela.

Miguel Torga, “Diário I”, pp. 129-131, 1941, Coimbra.

28/02/2018

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Coimbra, 28 de Fevereiro de 1942 – Fala-se da geração de 70. E logo toda a gente recita o velho estribilho: Antero e Eça. De Oliveira Martins, nada, claro está. Mas era de esperar. Numa terra de patrioteiros e de maus leitores, uma obra assim tinha fatalmente de ser esquecida. Antero e Eça, cada qual ao seu modo, lisonjearam este complicado orgulho que nos mata. As abstracções e a poesia dum, os romances e as ironias do outro caíram como sopa no mel dentro do saco sem fundo da nossa ignorância e da nossa estultícia. Um pensador-poeta, que só meia dúzia de lunáticos lê e medita, e um romancista que faz sobretudo caricaturas – que não são, evidentemente, parecidas com nenhum de nós, mas sim com o nosso vizinho –, é claro que eram oiro sobre azul. Que diabo!, sempre faz falta numa sociedade que se dá ares um filosofo-poeta e um romancista! Mas um Oliveira Martins? Sim, um homem a verrumar-nos, a analisar-nos colectivamente, sem poder fugir nenhum, a mostrar-nos à Europa com a alma ainda a escorrer sangue e façanhas, intolerância e fado?
O caso era na verdade muito mais duro. E por isso, aquele que dos três melhor nos conheceu, nos desfibrou, nos deu sínteses duma beleza que não tem confronto com nada que se escreveu até hoje sobre esta terra, fica apagado na escuridão da nossa cobardia.
Mas façam aquilo que quiserem, que a verdade é só uma: o grande, o eterno, o que sabia em termos lógicos e seguros quem nós éramos, e teve a coragem de o dizer duma maneira maravilhosa e com as letras todas – foi ele.
Miguel Torga, “Diário II” 3ª ed. Revista, pp. 30-31, Coimbra Editora, 1960.