Gerez,
6 de Abril de 1944 –
Ainda a leitura destes frades
nacionais, e a convicção cada vez mais provada de que a vida mental
portuguesa não tem crescimento. Parece que cada escritor, cada
artista, aqui, começa sempre de novo. Camilo é tão primário como
Fernão Lopes, e João de Deus tão ingénuo como D. Dinís. Nenhuma
geração, desde que Portugal é Portugal, pegou na herança que lhe
deixaram, e aumentou o capital. À gente de setenta, por exemplo,
clara, luminosa, racionalista, seguiu-se uma outra sebastianista
e brumosa. Onde se entronca Antero? Quem ergue hoje o facho que
brilhou nas mãos de Garrett? Perdem-se as raras mensagens que de
tempos a tempos aparecem, e cada alfobre literário é composto por
uns pobre pacóvios que vêm de Trás-os-Montes ou do Algarve, e que
entram a gatinhar nas letras ou no pensamento como se a arte e as
ideias estivessem ainda no Condado Portucalense. A cultura não chega
ao povo, e quem vem dele não a pode trazer, evidentemente. Isto não
é falta de respeito nem de carinho pelo que temos. Deus sabe a
ternura que me desperta uma das nossas páginas gordurosas de
prosa! É apenas uma verificação imparcial. Se pegamos numa
história da nossa literatura, lá temos o sábio Fr. Amador Arrais,
o inefável Heitor Pinto, o velho Manuel Bernardes, o nunca assaz
padre Vieira. Mas se tratarmos
duma história do nosso pensamento, é a mesma gente que nos aparece,
a ser pau para toda a colher. O mesmo nome serve para representar a
poesia, a novela, o teatro, a filosofia, a mística, a retórica,
tudo quanto Marta fiou. O pior é que Marta fiou uns tormentos que
arranham a alma de quem os veste! Já o romance fez todas as
experiências, tentou todos os caminhos, e o nosso ainda a choutar em
Fornos de Algodres! A coisa começou menos mal com Bernardim Ribeiro,
mas quem deu continuidade àquele nosso esmoer saudoso dos
sentimentos? Fazemos uma arte de impulsos, desarticulada dum todo,
anárquica e fragmentária. Também não queria um imbricamento tão
apertado como existe em certas terras, onde se está a ler Gide e a
entender Montaigne. Mas pedia uma linha de propósitos, uma
ramificação constante da mesma cepa comum, dando cada ramo as suas
flores e os seus frutos. Mas não. Por mais que a gente se esforce, o
que é certo é que em toda a nossa literatura não há
verdadeiramente uma obra que seja um facho a arder na grande noite da
humanidade. Onde temos nós coisa
que se compare a um D. Quixote, essa gigantesca coluna do génio mais
estremado que se viu? Camões? Muito bom, evidentemente, mas é
preciso mais. Ainda foi a nossa limitação que cantou ali. Os
Lusíadas! Logo no
título a nossa tacanhez se manifestou. Os outros chamaram às
epopeias deles Odisseias, Paraísos Perdidos, Divinas
Comédias, etc. Nomes que
agarram mundos. Nós ficámo-nos pelos lusíadas desta pobre
Lusitânia. Bem se sabe que o nacional português era na ocasião o
universal. Mas está justamente aí o limitado da visão. Nunca o
relato grandíloquo das façanhas dum povo podia constituir em si
matéria de eternidade. A isso era preciso juntar-lhe qualquer coisa
de mais simbólico e geral, uma síntese que ficasse para sempre a
ser um marco de imaginação e de poder criador. Quase tão ilegível
como os Lusíadas, a
Divina Comédia tem
contudo a visão assombrosa e apocalíptica do Inferno.
E sempre a humanidade há-de encontrar ali a concretização dum
terror, dum enigma que lhe devorou a fantasia. Nas piores páginas do
Quixote permanece vivo
o diálogo infindável e universal do espírito e
da matéria, e é isso que nele importa fundamentalmente. Ora Camões
não levantou o pano a nenhum mistério. Deu a volta ao mundo, como
Fernão de Magalhães, a cantar as nossas glórias. E as nossas
glórias passaram…
Mas
está bem, aceitemos Camões. E a seguir? A seguir vêm dois séculos
em que ninguém sabia o que era um verso! Lá aparece Garrett por fim
a estudar o romanceiro, a aprender de novo a magia das coisas, e
consegue escrever as Asas Brancas.
Mas, ao lado, Castilho continua a rimar arcàdicamente, e Herculano
permanece granítico, a fazer cruzes quebradas como um mau pedreiro.
Ora a arte e o pensamento implicam um afinamento contínuo
de processos, um saber cada vez mais sólido e desanuviado.
Perdendo-se a experiência passada, é natural que tenha de se
recomeçar com meios simples e primários. E o progresso é
impossível. De resto, esse crescer contínuo, além doutras
vantagens, evitava-nos o dissabor de certas adptações ou imitações
serem tão grosseiras e calvas. Aflitos, os nossos artistas e
pensadores, em certos momentos, começam a correr
para apanhar o comboio de uma actualização universal. E como vão
sem bagagem, nus e ingénuos, o resultado é no fim a roupa que
vestem em Paris tapar-lhes o melhor da personalidade.
É
claro que uma verificação
destas só é possível se puder servir o futuro. Mas é exactamente
no futuro que eu penso.
Só
há grandes literaturas onde o povo é permeável à cultura. Onde se
leu a Bíblia à
lareira durante centenas de anos, e onde as Mil e uma
Noites não destoam ao lado de
uma charrua. O nosso povo, que é donde sairam os nossos maiores,
precisa dum banho lustral de pão e de beleza. E então, sim! Então
cada escritor português que vier não terá apenas para descrever, e
grossamente, as pitorescas romarias da sua aldeia.
Miguel Torga, “Diário
III”, pp. 26-30, 1954, Coimbra.
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