São
Martinho de Anta, 24 de Março
de 1940 –
Tentativa fustrada para ir às
Terras do Preste Baçal. Bragança é longe. Além disso, o
carro, apenas atravessou o distrito de Vila Real, pôs-se a refilar,
a refilar, até que parou de todo.
E
aí vou eu por aqueles ermos, doido, aos gritos, sob um sol africano,
a pedir gasolina às fragas e aos sobreiros. De regresso, com um
regador dela, ordenhada a seis quilómetros de distância
do fundo dum bidão providencial, alagado em água, dou de caras com
o motor esventrado pelo companheiro.
E aquela miséria mecânica, ali ao sol como os figos, tirou-me
quantas ilusões em nome da humanidade eu tinha posto nos cilindros e
nas rodas. Evidentemente que uma dedada singular imprimira no aço e
no latão a marca do primeiro arfar da vida. Mas a coisa era cosida
com parafusos a mais. Não havia naqueles ferros a interpenetração
de tudo, a mágica ligação de tudo, que faz dum corpo humano um
milagre de resistência e adaptação.Lá estavam realmente as causas
da paragem inesperada: a bóia solta, a gasolina entornada, e o
coração do carro sem alento. Mas um homem, mesmo estendido e aberto
numa mesa de pedra, era outra coisa. Não tinha nunca aquele ar
mesquinho e ridículo de brinquedo estragado.
Miguel
Torga, “Diário I”, pp. 139-140, 1941, Coimbra.
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