Leiria,
16 de Fevereiro de 1940
– É
um casal de relógios de parede, dos que sempre foram feios.
Pela manhã, haja o que houver, à mesma hora, passa ele por esta
rua para o escritório. Vai almoçar ao meio-dia. Volta à uma. E às
seis em ponto sai outra vez.
Nem
vale a pena dizer-lhe o nome. É só mais um dos milhões iguais que
há por este mundo, que o quotidiano determina, como o sol os
heliotrópicos. Não sei, é certo, o que se passa lá por dentro,
onde às vezes os hábitos e a monotonia doem muito. É possível que
tenha um sonho, que tenha um drama, que
tenha consciência
desta agonia universal de que ele próprio, queira ou não queira,
compartilha. Mas é possível também que não saiba nada disto, que
não sinta nada disto, que a sua vida interior seja um ir às nove
para o escritório e um sair às seis do escritório. Há tempos
apareceu casado. Mas viu-se logo que o casamento lhe acontecera,
como acontece às vezes apanhar
uma carga de água a caminho do emprego.
A mulher é uma pessoa baixa, pálida, com sobrancelhas muito
carregadas. Uma pura máquina de cozinha, que acende o lume às dez,
lava a loiça à uma e um quarto, limpa o fogão depois, esfrega a
seguir, e acende novamente o lume às cinco e meia.
Não namoram. Ele lembrou-se dela no intervalo do escritório, ela
já sabia que com alguém havia de ser, e um dia, sem saberem como,
aí estavam de casa e pucarinho, a comer o almoço. Uma vizinha, a
princípio, ainda tentou meter um bocadinho de graça naquilo. Mas
terra assim não dá mais. O escritório às nove, o lume acesso às
dez, e, fora disto, um vazio que seca tudo. Nem sequer uma cria!
– Filhos, para quê?!
Dizem isto, e nenhum deles estremece.
Tudo
quanto a vida consegue exprimir ali, em beleza, graça e perfume, que
se veja, está resumido num cravo enigmático e viçoso que ele usa
perpètuamente na lapela.
Miguel
Torga, “Diário I”, pp. 129-131, 1941, Coimbra.
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