03/03/2018

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Leiria, 16 de Fevereiro de 1940 É um casal de relógios de parede, dos que sempre foram feios.
Pela manhã, haja o que houver, à mesma hora, passa ele por esta rua para o escritório. Vai almoçar ao meio-dia. Volta à uma. E às seis em ponto sai outra vez.
Nem vale a pena dizer-lhe o nome. É só mais um dos milhões iguais que há por este mundo, que o quotidiano determina, como o sol os heliotrópicos. Não sei, é certo, o que se passa lá por dentro, onde às vezes os hábitos e a monotonia doem muito. É possível que tenha um sonho, que tenha um drama, que tenha consciência desta agonia universal de que ele próprio, queira ou não queira, compartilha. Mas é possível também que não saiba nada disto, que não sinta nada disto, que a sua vida interior seja um ir às nove para o escritório e um sair às seis do escritório. Há tempos apareceu casado. Mas viu-se logo que o casamento lhe acontecera, como acontece às vezes apanhar uma carga de água a caminho do emprego.
A mulher é uma pessoa baixa, pálida, com sobrancelhas muito carregadas. Uma pura máquina de cozinha, que acende o lume às dez, lava a loiça à uma e um quarto, limpa o fogão depois, esfrega a seguir, e acende novamente o lume às cinco e meia.
Não namoram. Ele lembrou-se dela no intervalo do escritório, ela já sabia que com alguém havia de ser, e um dia, sem saberem como, aí estavam de casa e pucarinho, a comer o almoço. Uma vizinha, a princípio, ainda tentou meter um bocadinho de graça naquilo. Mas terra assim não dá mais. O escritório às nove, o lume acesso às dez, e, fora disto, um vazio que seca tudo. Nem sequer uma cria!
– Filhos, para quê?!
Dizem isto, e nenhum deles estremece.
Tudo quanto a vida consegue exprimir ali, em beleza, graça e perfume, que se veja, está resumido num cravo enigmático e viçoso que ele usa perpètuamente na lapela.

Miguel Torga, “Diário I”, pp. 129-131, 1941, Coimbra.

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