05/04/2012

SERRAÇÃO DA VELHA

"Entre as várias manifestações populares do período quaresmal, a Serração da Velha teve, durante vários séculos, um lugar de destaque não só junto do povo português mas também além fronteiras. Há registos desta manifestação popular em Espanha, França (aqui conhecida como a festa da Mi-Carême), Itália, Brasil, Suíça,…A sua origem é incerta. Autores há que defendem ter surgido em meados da Idade Média, ideia não de todo despropositada dado a Igreja Católica ter instituído, entre os séculos IV e VI, a Quaresma como período de abstinência, jejum, mortificação, em que os cristão se deveriam penitenciar pelas faltas cometidas ao longo do ano. Por outro lado, Ernesto Veiga de Oliveira diz-nos que “O nome da velha aparece … numa expressão meteorológica, que … designa um período que vai dos fins de Fevereiro aos princípios de Março… e que se encontra pela primeira vez em escritores árabes do século XIII, que lhe atribuem uma origem grega.”[1] Já Teófilo Braga diz-nos que “… essa salsada ou charivari de chocalhos, buzinas e campainhas com que percorre as ruas, era um acto do culto primitivo do politeísmo indo-europeu.”[2] e mais à frente no mesmo artigo, acrescenta referindo-se à Velha “…hoje é uma entidade vaga, sem sentido, que o povo vai serrar, isto é, que vai passar a serra, como quem repele para longe as brumas e as neves do inverno.”[3] Sendo assim, a velha estava conotada com a morte, com as trevas da noite, o frio e as agruras do inverno; ao expulsá-la a meio da Quaresma o povo abria o caminho para a vinda da primavera, para a chegada da luz, do calor que trazem alegria e desenvolvem a vegetação, que fecundam e procriam. É ainda neste sentido que Adolfo Coelho nos diz que a Serração da Velha, o Enterro do Bacalhau e os Judas de Sábado de Aleluia mais não são do que a expulsão da morte, do longo período de inverno letárgico e redutor, ideia que Alberto Pimentel também defende quando afirma que “O costume da Serração da Velha parece conservar a tradição mítica da expulsão do inverno pela sua personificação numa Velha…”[4]. Esta mesma ideia surge já na obra de Gil Vicente, famoso dramaturgo quinhentista, no seu “Auto do Triunfo do Inverno”, de 1529.[5]



Aurélio Lopes, mais recentemente, acrescenta que “O escuro e famélico inverno, tempo de fome e frio, personalizar-se-á assim na Quaresma que, pelo seu carácter de abstinência, torna ainda mais austero um tempo pela austeridade já marcado.”[6] Não esqueçamos que o dia assinalado pelo povo para praticar este acto de Serração da Velha foi a noite da quarta-feira da terceira semana da Quaresma, isto é, mais ao menos a meio de um período de quarenta longos dias que a Igreja consagrou à penitência, ao jejum, ao sacrifício, à mortificação. As próprias representações artísticas da Quaresma apresentavam, regra geral, uma senhora trajando de negro, em sinal de luto profundo e era “…tomada por uma velha pálida, magra e seca tal qual um peixe.”[7]

Seja qual for a sua origem, a Serração da Velha marcou, durante longos anos, a cultura tradicional do povo português.




Fig. 1 – Imagem do serrar da velha dos finais do séc. XIX, retirada da revista “Ilustração Portuguesa” de 1924



De norte a sul do país, a chinfrineira, o barulho ensurdecedor, os chistes, a crítica social, o ajuste de contas juntamente com o cortiço, o serrote, o funil, o chifre, as sarroncas, as latas, a gaita de foles, e ainda a velha, os cortejos, os palanques destinados a ser o cadafalso da dita, os testamenteiros, as velhas personificadas em bonecas de palha deitadas em esquifes ou espetadas em paus, (conforme se pode verificar na figura 2)… imperavam nesta noite. O alvo, como se vê, era a velha. Geralmente escolhia-se a pessoa do sexo feminino de mais idade do lugar e que desse mais luta aos foliões. No entanto, havia zonas onde se serrava quer a velha quer o velho como nos diz Carlos Lopes Cardoso no seu artigo “O Serrar da Velha”. Segundo ele, em Póvoa de Varzim “A data é a já conhecida, e manda a tradição que num ano se sarre a velha e, no seguinte, o velho… os grupos sarram os dois. Velho ou velha que apareça ou more no trajecto é sarrado.”[8]




Fig.2 A serração da velha conforme Luiz Augusto de Oliveira, “Azulejos do Convento de Stº António de Frades Capuchos”, Almanaque de Ponte de Lima, 5.º ano,1923.



Como já foi dito, o alvo era, regra geral, a velha. E estas, salvo raras exceções, reagiam com azedume à brincadeira, vinham à janela insultar os parodiantes, atiravam com ovos chocos, dejetos de dias guardados para o efeito, pedras, penicadas, tudo o que viesse à mão, postigo fora para gáudio de todos quantos às esquinas ou às portas das suas casas ou em cortejo atrás do rapazio, assistiam à brincadeira. Era o caos total a quebrar, por uma noite, as sete semanas de profundo recolhimento e penitência que medeiam entre a Quarta-Feira de Cinzas e o Sábado de Aleluia.

A título de curiosidade, aqui fica uma pequena amostra das muitas quadras que a rapaziada criou para este efeito um pouco por todo o país.

Em terras minhotas, o rapazio dizia:



Pobre velha vais morrer,

Teus dias estão acabados,

Pede a Deus que te perdoe

As culpas dos teus pecados.



Um pouco mais a sul, mais precisamente em Póvoa de Varzim, serrava-se como já dissemos, quer a velha quer o velho. Assim,

Sarra-se a velha

Em cima de uma masseira

Quem vai a sarrar

É a tia Valseira

ou

Sarra-se o velho

Em cima de um ó;

Quem vai a sarrar

É o tio Dibó.



Também no Porto este costume se praticou por vários anos. Versos como,

Serra a velha, deixa a nova!

Serra a velha até à cova!

e

Serra a velha no cortiço…

Minha avó, não queira isso.



eram ouvidos por toda a cidade nesta noite de folia. Aqui havia também a tradição de enganar os mais ingénuos fazendo-os ir a determinado sítio, geralmente carregados com pedras e escadas, e dando-lhes uma sova.

Em Vinhais, concelho do distrito de Bragança, “Numeroso grupo de rapazes, munidos de um pedaço de cortiça e afiado serrote, vai à porta das velhas, … e, em alta grita…”[9]vai dizendo,

Estamos no meio da Quaresma,

Já a Páscoa vai chegada;

Uns dizem serre-se a velha,

E outros a velha serrada.

Na Beira Alta, em meio a choros e lamentações, os netinhos lá iam manifestando a sua dor, noite fora, à porta das avozinhas,

Chorai netinhos, chorai,

Que a nossa avó vai morrer;

Lágrimas de quatro a quatro

Não a deixeis esquecer.



e o serrote gemia por sobre o velho cortiço enquanto da casa vinham impropérios e frases hilariantes que provocavam o riso em quem escutava.

Na Beira Baixa, diz-nos o Dr. Jaime Lopes Dias, os rapazes junto às casas das pobres velhas colocavam um pau na porta e com outro em travessa, em jeito de rabeca, iam proferindo

Sarra-se a velha que se acaba a velha;

Sarra-se a velha que se acaba a Quaresma;

Sarra, serrote, que se acaba o pote;

Sarra, serrão, que se acaba o pão.



Na região de Lisboa, cantava-se à porta da escolhida,



Tiço, tiço, tiço,

Venha a velha p’ró cortiço!



Deus lhe dê anos de vida

E também à rapaziada,

Para a virmos cá serrar

Muitos anos de enfiada.



Tiço, tiço, tiço,

Venha a velha p’ró cortiço!



e o serrote serrum… serrum… serrum… por sobre o pobre e velho cortiço também, já de si, escaqueirado.



No Alentejo, diz-nos Carlos Lopes Cardoso, “Depois de percorridas, uma a uma, todas as casas das pobres velhotas, aparecem alguns rapazes vestidos de velha, outros transportam as serras e as barricas ou caixotes e começa então a cerimónia da serração da velha.”[10]



Serra, serra, serra a velha,

Puxa a serra serrador,

Que esta velha deu na neta

Por lhe ouvir falas de amor.



Em terras algarvias decerto também se realizava algo semelhante ao resto do país, no período quaresmal. Infelizmente, não encontrámos registo algum nas investigações que realizámos.



O Caso Brasileiro



Levada pelos portugueses, esta tradição atravessou o oceano e instalou-se em terras de Vera Cruz. Também aqui o serrar da velha se assemelhava aos charivaris do velho mundo e o seu principal objetivo era “julgar” todos aqueles que houvessem desagradado ou transgredido os preceitos e valores morais da comunidade.

Há registos da sua presença desde os inícios do século XVIII. Aí designada de Serração das Velhas ou Serramento de Velhos, conforme a região ou estado, a cerimónia não diferia da realizada em Portugal e o dia escolhido era também o mesmo. Estudiosos brasileiros há que defendem que a escolha da data poderá conter um pouco de vingança dos jovens ao controlo excessivo da alimentação no período quaresmal, refém de uma tradição de jejum acerrimamente defendido pelas velhas senhoras, pelas avós, mães, tias e madrinhas. Sendo assim, podemos entender esta manifestação popular como uma revolta geracional; os jovens que se revoltam com uma tradição que não entendem mas que têm de cumprir ano após ano, porque assim está escrito no “código” geracional.

Segundo Câmara Cascudo[11], um grupo de foliões “serrava uma tábua aos gritos estridentes e prantos intermináveis, fingindo serrar uma velha, que representada ou não por algum dos vadios da banda lamentava-se num berreiro ensurdecedor…”[12]. E por se sentirem constrangidos com a brincadeira, neste dia as senhoras e os senhores de idade ficavam em casa, temendo pela sua própria integridade física, recusando-se a saírem à rua enquanto não passasse o cortejo que ao longe se fazia ouvir de “pipote” em carro tosco de madeira e serrote na mão



Serre-se a velha,

Força no serrote,

Serre-se a velha,

Dentro do pipote.

ou

Esta velha tem malícia,

Esta velha vai morrer;

Venha ver serrar a velha,

Minha gente venha ver.

Os visados, regra geral, irritavam-se com a brincadeira pois, segundo eles, todo aquele que fosse serrado, não chegaria à Quaresma seguinte. Por vezes os seus familiares saíam em sua defesa e despejavam sobre os “serradores” panelas de água a ferver provocando verdadeiras tragédias. Os tiros e as lutas também eram uma constante. Esta tradição manifestava um tal desagrado nos indivíduos alvo que em certas localidades foi mesmo proibida. Exemplo disso é, como nos diz Câmara Cascudo, a antiga localidade de Papari, hoje Nísia da Floresta, no Rio Grande do Norte, em que o Código de Posturas a proibiu em finais do século XIX.

Há ainda quem defenda que esta tradição estava intimamente ligada à falta de liberdade de que as jovens casadoiras eram vítimas. Regra geral, as “avós” eram as guardiães das netas, dos bons usos e costumes, da defesa da honra. E os jovens ao serrarem a velha manifestavam o seu desagrado à violência exercida por esta “avó” tirana que os repelia de qualquer tentativa de se chegarem às suas amadas. As quadras que berravam à porta de certas senhoras denunciam exactamente este propósito:

Serra, serra, serra a velha,

Puxa a serra serrador,

Que esta velha deu na neta,

Por lhe ouvir falar de amor.


Acrescentando logo de seguida,



Serra, ai serra! Serra a velha,

Puxa, puxa, ai serrador!

Serra a velha, ai, viva a neta

Que falou falas de amor.



 




Fig. 3 A serração da velha no Brasil, em imagem dos finais do séc. XIX



Em traços gerais, vemos que a serração da velha cá e lá pouco diferia. Contudo, no Brasil o quebrar da penitência quaresmal não se ficava por este dia de gozo e folia. Também na gastronomia se quebrava o jejum conventual próprio da Quaresma e se preparavam“opíparos repastos em que figuravam as mais raras e saborosas iguarias, ceias estupendas... sempre regadas em melhores vinhos ...”[13]. Assim se fazia a crítica às restrições alimentares que se arrastavam por quarenta dias, período em que só o peixe fazia parte das refeições. Só no Domingo de Páscoa a carne voltava à mesa.

E assim terminamos este pequeno registo de uma tradição há muito desaparecida mas que, graças ao esforço de muitos grupos etnográficos e associações culturais, tem vindo a ser recriada em muitas zonas de Portugal."





Maria Odete Nunes Madeira

Passos de Silgueiros, Janeiro de 2011



Bibliografia



- A Tradição, 2.ª ed. Em Fac-Simile da Revista Mensal de Etnografia Portuguesa, Câmara Municipal de Serpa, 1997

- Lima, Henrique C. Ferreira, A Serração da Velha, Ilustração Portugueza. - Lisboa. - S. 2, vol. 37, nº 945, 29 Mar. 1924

- Cardoso, Carlos Lopes, O Serrar da Velha, separata de Douro Litoral, 7.ª série – V/VI, Porto, 1956

- Pires, António Lopes, Zé Bisnau e Outras Histórias, edição da Câmara Municipal de Viseu, 1989

Lopes, Aurélio, A Face do Caos, ed. Conjunta do autor e Garrido artes gráficas, 2000

- Dias, Jaime Lopes, Etnografia da Beira, Câmara Municipal de Idanha-a-Nova, Vol. VI, 1991

- Rodrigues, David, Serração da Velha, separata de “Cadernos Vianenses”, Câmara Municipal de Viana do Castelo, 1990.




[1] Oliveira, Ernesto Veiga de, Festividades Cíclicas em Portugal, Publicações Dom Quixote, 2.ª edição, 1995, pág. 353


[2] A Tradição, 2.ª ed. Em Fac-Simile da Revista Mensal de Etnografia Portuguesa, Câmara Municipal de Serpa, 1997, pág. 49, 1,º ano.


[3] Idem, idem


[4] Lima, Henrique C. Ferreira, A Serração da Velha, Ilustração Portugueza. - Lisboa. - S. 2, vol. 37, nº 945, 29 Mar. 1924


[5] Obra representada ao rei D. João III aquando do nascimento da Infanta Isabel.


[6] Lopes, Aurélio, A Face do Caos, ed. Conjunta do autor e Garrido artes gráficas, 2000, pág. 190


[7] Araújo, Rita de Cássia Barbosa de, Micareme, pesquisa escolar on-line, fundação Joaquim Nabuco, Recife.


[8] Cardoso, Carlos Lopes, O Serrar da Velha, separata de Douro Litoral, 7.ª série – V / VI, Porto, 1956, pág. 9


[9] Martins, P. Firmino A., Folklore do Concelho de Vinhais, edição da Câmara Municipal de Vinhais, 1997, pág. 174


[10] Cardoso, Carlos Lopes, Ob. Cit., pág. 34


[11] Luís da Câmara Cascudo foi historiador, folclorista, antropólogo, advogado e jornalista brasileiro. Grande parte da sua vida foi dedicada ao estudo da Cultura Brasileira. Nasceu em Natal a 30 de Dezembro de1898 e faleceu na mesma cidade a 30 de Julho de 1986.


[12] Cascudo, Luís da Câmara, Dicionário do Folclore Brasileiro, 2.ª edição. Rio de Janeiro, INL, 1962, pág. 696 e 697




[13] Edmundo, Luiz, O Rio de Janeiro no Tempo dos Vice-Reis. 3.ª edição, Rio de Janeiro, Ed. Aurora, 1.ºvolume, 1951.


RETIRADO DAQUI

04/04/2012

Lá p'ro fim acabaram juntos...


Fermoso Tejo meu, quão diferente
Te vejo e vi, me vês agora e viste:
Turvo te vejo a ti, tu a mim triste,
Claro te vi eu já, tu a mim contente.

A ti foi-te trocando a grossa enchente
A quem teu largo campo não resiste
A mim trocou-me a vista em que consiste
O meu viver contente ou descontente.

Já que somos no mal participantes,
Sejamo-lo no bem. Oh! quem me dera
Que fôramos em tudo semelhantes !

Mas lá virá a fresca primavera:
Tu tornarás a ser quem eras dantes,
Eu não sei se serei quem dantes era.

In «Poesia de Rodrigues Lobo», Editorial Comunicação, col. «Textos Literários», Org. Luís Miguel Nava, p.308, Lisboa, 1985.

LOBO, Francisco Rodrigues
[N. Leiria, 1573-1574? – m. rio Tejo, 1621]

         "Poeta lírico, épico e grande prosador seiscentista, a sua biografia contém ainda muitas lacunas que é impossível preencher no estado actual dos nossos conhecimentos. Não se encontrou até hoje registo fidedigno da data do seu nascimento. Ricardo Jorge, fundamentando-se na informação dada pelo poeta na dedicatória da Corte na Aldeia, onde diz ter nascido «em idade em que já a de Portugal era acabada», sustenta que ela não poderá situar-se antes de 1580, quando já não havia corte portuguesa (ob. cit, p.22). Selma Pousão-Smith, por outro lado, sugere a data de 1573 ou 1574, e não a de 1580. Baseia-se para isso noutra dedicatória, a que é dirigida a D. Francisco Mascarenhas, conde de Santa Cruz, na Primavera e Segunda Parte dos Romances de Francisco Roĩz Lobo, de Leiria (Coimbra, 1596). Aí Rodrigues Lobo afirma ter vinte e um anos por altura da composição da obra. O problema está em saber em qual das dedicatórias teria sido o escritor mais exacto ou menos dado a lapsos de memória. Como, porém, na primeira asserção é genérica e na segunda ele indica os anos que então teria, posto que contraditórias sejam as informações prestadas, regista-se aqui como mais provável a segunda, embora debaixo de caução. Por outro lado a data da morte foi definitivamente fixada por Carlos Alberto Ferreira, como sendo a de 24 de Novembro de 1621.
              
  Oriundo de uma família abastada, que tudo indica fosse de cristãos-novos, matriculou-se na Universidade de Coimbra (1593-1594), onde se bacharelou em Leis (13 de Maio de 1602), não exercendo qualquer profissão, porque tinha decerto independência de meios que lhe permitiu dedicar-se às letras. A sua vida foi pouco movimentada, porque residiu quase sempre em Leiria ou arredores, cuja paisagem exalçou frequentemente nos seus poemas, fazendo visitas ocasionais a Coimbra, Lisboa, Vila Viçosa, e a solares de fidalgos da sua amizade. Em condições algo misteriosas, morreu afogado no Tejo, em dia de temporal (R. Jorge, ob. cit, p.9).
         
       A sua obra poética é constituída por um volume de Romances (1596), pela trilogia pastoral – A Primavera (1601), O Pastor Peregrino (1608) e O Desenganado (1614) –, O Condestabre de Portugal, poema heróico, celebrando os feitos de Nun’Álvares Pereira (1610), Jornada de D. Filipe III hizo a Portugal, em verso castelhano (1623), e Éclogas (1605). O seu bucolismo desenvolve-se na linha de Bernardim Ribeiro e ressuma uma profunda tristeza de amores ausentes. Cultiva também com grande finura e mestria a melhor tradição camoniana e retém a moralização conceituosa de veia mirandina. Em prosa publicou a Corte na Aldeia e Noites de Inverno (1619), constituída por dezasseis diálogos, onde aborda com fina ironia temas de natureza cultural e sociológica: a conduta do «discreto» ou cortesão; a excelência da língua portuguesa; os géneros literários; a arte de contar; a importância da história nacional e do tempo em que havia corte em Portugal; as carreiras profissionais e a sua função na vida social do reino. A beleza e a maturidade do estilo fazem desta obra um clássico da língua portuguesa."

in ‘Dicionário Cronológico de Autores Portugueses – Volume I’, Publicações Europa América, Mem Martins, pp. 326-328, 1991.

E porque o golpe de asa é um grãozinho no bico...



OUTRA COISA

Apresentar-te aos deuses e deixar-te
entre sombra de pedra e golpe de asa.
Exaltar-te          perder-te desconfiar-te
Seguir-te de helicóptero até casa

dizer-te que te amo amo amo
que por ti passo raias e fronteiras
que não me chamo Mário que me chamo
uma coisa que tens nas algibeiras

lançar a bomba onde vens no retrato
de dez anos de anjinho nacional
e nove de colégio          terceiro acto

pôr-te na posição sexual
tirar-te todo o bem e todo o mal
esquecer-me de ti como do gato

(Londres, 1965)


Mário Cesariny, in «Antologia de Poesia Erótica e Satírica» (Natália Correia org. ), 5ªed. Antígona & Frenesi, Lisboa, 2008.

Queixu-me...

A conspiração ortográfica

Publicado em 2012-04-02

Ainda não vi ninguém queixar-se (e, que diabo!, não acredito que seja só eu o eleito e o escolhido): fui atacado por um "hacker" anónimo ao serviço da Kultura e do dr. Malaca Casteleiro e, em silêncio, sem aviso, o meu Word adoptou o celerado Acordo Ortográfico. Mesmo agora acaba de sublinhar a vermelho a palavra "adoptou" (e voltou a fazê-lo!)
Não tenho conhecimentos de informática nem tempo para tentar desactivar (outra vez!) no corrector (de novo!) ortográfico o cavalo de Troia nele alojado não sei por que sinistro Torquemada linguístico, e irrita-me saber que alguém vigia o modo como escrevo pois, a seguir a isso, há-de vir também a vigilância sobre aquilo que escrevo. (O biltre sublinhou o "há-de" a vermelho; só falta notificar-me, como nas cartas de condução, de que já cometi x ou y infracções (outra vez!) ortográficas graves e de que ficarei impedido de escrever durante um mês ou, sabe-se lá, para sempre). Que fazer? A quem pedir satisfações? Ao Windows Update? Ao dr. Miguel Relvas? Ao SIS? À Loja Mozart?
Por que obscura porta se terá infiltrado a Coisa no meu computador? Poderá entrar igualmente pela minha consciência e pela minha vontade dentro, censurando a vermelho o que penso e o que quero como censura o que escrevo? Já pensei voltar a escrever à mão, mas temo que até esferográficas e lápis tenham já sido programados pelo dr. Casteleiro para não me deixarem escrever consoantes mudas.

Uma ceia original ou a malcozinhada fome de Camões…


“Damas de aluguer
são remédio santo
para o que ama tanto
a quem o não quer.
Deixe o seu cuidado
A pobre alma terna,
ame na taberna
do Malcozinhado.”

Afonso Lopes Vieira


Taberna essa onde, abancado à comprida mesa de pinho áspero, em oscilante banco corrido, sob a luz frouxa do azeite ou da cera, visiono Camões enxugando um canjirão de vinho acre temperado com água, e comendo algum peça de caça assada no espeto, ou de pescado fresquíssimo, vindo da ribeira das naus, tudo acompanhado com um naco de pão moreno e espesso.

Creio que por esses tempos de Quinhentos, galinha era manjar de príncipe, se recheada de apetite, nome este que rendeu ao vate um belo trocadilho, quando “D. António, senhor de Cascais, tendo-lhe prometido seis galinhas recheadas por uma copla que lhe fizera, lhe mandou por princípio de paga meia galinha recheada.”

O poeta, malicioso e esfomeado, ripostou-lhe, então, com a graciosidade da seguinte quadra:

“Cinco galinhas e meia
Deve o Senhor de Cascais;
E a meia vinha cheia
De apetite para as mais.”

Também a propósito de uma promessa de galinha, feita pelo duque de Aveiro, que redundou na oferta de uma ração de carneiro, Camões Protesta noutro epigrama:

“Eu já vi a taberneiro
Vender vaca por carneiro.
Mas não vi por vida minha,
Dar carneiro por galinha
Senão ao duque de Aveiro.”

A galinha, ao que parece, era, no século XVI, prato apreciado pela gula, e de valor superior à costeleta de carneiro. E os fidalgos desta época com hábitos de caloteiro. (Dois séculos mais tarde é Filinto Elísio quem se queixa ao senhor Doutor Manuel Tomás de Azevedo e Sousa, “o (seu) Sousa Pachorrento”, no Tempo da Reforma da Universidade de Coimbra:

“… E como o bom Salmão que me mandaste
E lugar das Lampreias prometidas
Há mais de três Quaresmas”.)

Camões, na Índia, onde serviu a pátria como soldado e onde sofreu alguns dissabores, mas onde deixou fundas amizades, às quais devemos talvez o seu retrato mais vivo, por testemunho dos fiéis e humildes amigos Lúcio de Ascensão, João Penquinho, Henrique e Francisco Mascarenhas; “o retrato que mostra em toda a parte/ o grande coração de Portugal” (e volto a evocar a musa de Lopes Vieira); Camões, um certo dia, resolveu oferecer um banquete a “fidalgos seus amigos”: Vasco de Ataíde, D. Francisco de Almeida, Heitor da Silveira, João Lopes Leitão e Francisco de Melo.

Porém nada de iguarias que enchessem o estômago voraz dos convidados! Somente, para satisfação do espírito, algumas trovas, postas nos pratos de cada um!

Engenhoso lance originalíssimo!

Porque essa poesia menciona meia dúzia de vitualhas… que lá não estão, numa soberba ementa, e porque o resultado poético tem o dedo camoniano, há que reproduzi-la na íntegra:


A primeira iguaria foi posta a Vasco de Ataíde, e dizia:

“Se não quereis padecer
Uma ou duas horas tristes,
Sabeis que haveis de fazer?
Volveros por dó venistes,
Que aqui não há que comer.
E, posto que aqui leais
Trovinha que vos enleia,
Comido não estejais;
Porque, por mais que corrais,
Não heis-de alcançar a ceia.”


A segunda, a D. Francisco de Almeida:

“Heliogábalo zombava
Das pessoas convidadas,
E de sorte as enganava
Que as iguarias que dava
Vinham nos pratos pintadas.
Não temais tal travessura,
Pois já não pode ser nova;
Porque a ceia está segura
De vos não vir em pintura,
Mas há-de vir toda em trova.


A terceira, a Heitor da Silveira:

“Ceia não a papareis;
Contudo, por que não minta,
Para beber achareis,
Não Caparica, mas tinta,
E mil cousas que papéis.
E vós torceis o focinho
Com esta anfilologia?
Pois sabei que a Poesia
Vos dá aqui tinta por vinho! E papéis por iguaria.”


A quarta, a João Lopes Leitão, a quem o Autor fez uns versos que vão adiante, sobre uma peça de cacha que deu a uma Dama:

“Porque os que vos convidaram
Vosso estômago não danem,
Por justa causa ordenaram,
Se trovas vos enganaram
Que trovas vos desenganem.
Vós tereis isto por tacha,
Converter tudo em trovas;
Pois se me vindes zombar,
Não cudeis, Senhor, que é cacha,
Que aqui não há que cachar.”


Responde João Lopes Leitão:

“Pesar ora não de são!
Eu juro pelo Céu bento,
Se de comer me não dão,
Que eu não sou camaleão,
Que me hei-de manter de vento.”


Responde o Autor:

“Senhor, não vos agasteis,
Porque Deus vos proverá;
E, se mais saber quereis,
Nas costas deste lereis
As iguarias que há.”


Virando o papel, dizia assim:

“Tendes nem migalha assada,
Cousa nenhuma de molho,
E nada feito em empada,
E vento de tijelada,
Picar no dente em remolho;
De fumo tendes taçalhos;
Ave de pena que sente
Quem da fome anda doente;
Bocejar de vinho e de alhos,
Manjar em branco excelente.


A derradeira iguaria a Francisco de Melo:

Dum homem que teve o ceptro
Da veia maravilhosa,
Não foi cousa duvidosa
Que se lhe tornava em metro
O que ia dizer em prosa.
De mim vos quero afirmar
Que faça cousas mais novas
De quanto podeis cuidar;
E esta ceia, que é manjar,
Vos faça na boca em trovas.”

Diogo do Couto avistou Camões, em Moçambique, no seu regresso de Goa, tão minguado de fortuna que “comia de amigos”.

Julgo que nenhum deles teve a ideia infeliz de lhe acudir à fome com um banquete de trovas.

Porque não há que zombar da necessidade alheia, nem haverá mais uma inspiração capaz de rivalizar com o génio de Camões (“Os mais são colinas/ Ele é a montanha!” João de Deus dixit!)

Janeiro de 1991

António Manuel Couto Viana in “A Musa à Mesa – a gastronomia na cena e na poesia portuguesa, Universitária Editora, Lda., pp. 201-204, Lisboa, 1994.


Fernando Esteves Pinto

Fernando Esteves Pinto
"Foi a enterrar no cemitério da Guia.
Fizemos uma pedincha para as flores do costume,
e com cartão que dizia saudades das tuas manas da vida.
O padre veio com as sagradas banalidades
num discurso apressado e tosco
que uma pá de terra enterrou.

Agora que estás a salvo,
protegida das bestas como uma princesa,
a festa continua azeda para o nosso lado.
O luto é coisa de um abrir e fechar de pernas,
e aos poucos a tua memória é vela escura.

Assim voltamos ao mesmo com este corpo
que é o nosso estabelecimento,
para cumprir o horário do sacrifício e da necessidade.
Tudo obrigações que se pagam com urina, herpes e diarreia.

Mas tu sabias, meu anjo, desde o princípio,
que a factura já vinha discriminada
."


Fernando Esteves Pinto, in O Tempo que Falta, Temas Originais, Coimbra, 2011, p. 18



21/03/2012

Próximo Sábado (24 de Março) pelas 17h...


Lançamento do número 8 da Revista de Poesia Piolho no Espaço-livraria Estratégias Criativas na Rua das Oliveiras, Vitória 155-159 Porto (Junto ao Teatro Carlos Alberto ver mapa). A las cinco de la tarde!...


 neste número:



Ana Ulisses(ilustrações), António Ramos Rosa, Ricardo Álvaro, Alexandra Antunes, Catarina Ulisses, José Luís Bértolo, Luís Serra, Miguel Sá Marques, Pedro Águas, Marta Peixoto, Oliveira Martins Roxo, Ricardo Marques, José Guardado Moreira, Raul Simões Pinto, Manuel Filipe, Pedro Calcoen, Sylvia Beirute, Cristina Aguiar, Sandra Filipe , rosa azevedo, Luís Pedroso, Rui Almeida, Luís Ferreira, José Emílio-Nelson, António Salvador, Teixeira Moita, Hugo Pinto Santos, A. Dasilva O.,Pedro S. Martins, António S. Oliveira e 
John Berryman



fazem mais ou menos por esta desordem este
número

o oitavo fevereiro 2012
Coordenado por Sílvia C. Silva, Ricardo Álvaro, Meireles de Pinho (capa e arranjo gráfico),Fernando Guerreiro e A. Dasilva O.




Pormenor das "Meninas" de Diego Velázquez (1599-1660)


EL PRADO

Os quadros são coisas completas
na engrenagem das salas
e nós vamos no rasto que eles deixam.

Comemos uma salada reles no buffet do Prado
e os “novos artistas de Espanha”
fumam-nos o tabaco todo com os cotovelos
fincados no mapa.

A beleza tem peso e consequência, as salas
parecem tão cheias que não sobra no espaço
um lugar para nós.

Velhas como as árvores,
as  Meninas.

Rui Pires Cabral in «A Super-Realidade», ed. Língua Morta, p.27, 2011.

E porque também tem ‘menina’, ‘árvores’ e ‘prado’ segue o seguinte soneto de Rilke:

II

E era menina quase, e eis se ergueu
desta ventura una de canção e lira
e clara brilhou através do seu véu
a Primavera e fez no meu ouvido a cama.

E em mim dormiu. E tudo foi seu sono.
As árvores, que de sempre admirei, esta
lonjura de sentir, o prado já sentido
e todo o espanto que me veio ferir.

Ela dormiu o mundo. Deus cantor, como é que
tu a completaste, que ela não te pedisse
pra acordar primeiro? Vê – surgiu e adormeceu.

E a sua morte, aonde? Oh, inventarás inda
este motivo, antes que o teu canto se consuma? –
Pra onde é que ela cai, de mim caída?... Menina quase…

Rainer Maria Rilke, in «Sonetos a Orfeu», ed. Inova, versão de Paulo Quintela, p.90.

Periclitam...

15/03/2012

À caça de borboletas e mari'esposas...

 Sousândrade 
Joaquim Sousa Andrade (Maranhão, 1832-1902)
"A última rosa desfolhava 
do ar sobre mim; e eu via então 
No tronco o nome iluminava 
E a imagem tua era a visão; 
No anagrama de Dog, God estava 
Do amor em que há nenhum se não. 

Sacrifício da espr'ança o inseto 
Entre os florões do roseiral 
Co'o alfinete "I am busy" penetro 
O verde-brando dorso, e qual 
Dela os cabelos no ombro abertos 
Tremem as asas do mortal" 

13/03/2012

«Ex pulsão da poesia...»

Óleo de Rufino Tamayo (1899-1991)

EXPULSÃO DA POESIA

Neste crepúsculo dos deuses que incendeia serenamente de púrpura
os massacres sem conta, e em que nada
é já significativo, porque tudo sempre significou alguma coisa
e não ressuscita ninguém (a ressurreição é
negócio individual, requerendo vítima, sepulcro emprestado,
alguns guardas, dedicadas mulheres, e vários fiéis
desinteressadamente interessados nela – enfim,
a ignomínia tratada com exemplar dignidade,
sem improvisos de última hora, nem excessivos
planejamentos ou ensaios, por modo a que
as imaginações possam com ela despersonalizar-se inteiramente
da sordidez sordidamente sórdida, etc.),
um fenómeno se verifica, observa, e que, ele, sim,
é altamente significativo.

Com efeito: ela cantou os tiranos, as revoluções proletárias,
as guerras todas de libertação nacional. Em séculos
e séculos, cantou ou chorou sempre nas
grandes horas. Ás vezes com atraso. Outras,
com adiantamento desagradável, sobretudo,
se era o caso de choro. Muitas outras vezes,
para dar-se importância, reles importância, inventou mesmo
as grandes horas. Quantas outras vezes,
se deixou matar de fome, de miséria e solidão,
para repetir com alegria infrene que
a imortalidade existe, que o céu existe,
e que a terra, só ela, a pobre terra, não existe.
Fizeram-se por esta letrada ciência os maiores sacrifícios
de vidas e papel impresso. Não comparáveis,
é certo, aos massacres habituais, em que
se molhava delicadamente a pena.

E, agora, neste delicioso crepúsculo que devia inspirá-la,
porque se cala, porque não canta nem chora?
Porque se limita a coçar o cu tranquilamente,
como prostituta honesta que se retirou da vida?
Com que então, a brincadeira acabou?
S. Excia já não serve? Já não é livre? Já não é
nem deixa de ser coisa nenhuma?
Então não era eterna, a voz da justiça,
a voz da liberdade, do mais profundamente humano,
não era imortal, mais que divina, mais
que o raio que a parta? Então
não era tudo isso e o céu também?

É que, meus amigos, a coisa está difícil.
A agonia chegou. O vómito que se não vomita.
Porque não se descobriu maneira de sair do beco:
a salvação é só de cada um, e diz respeito
a cada um, mas ninguém se salva sozinho,
nem se perde por própria culpa. E não é possível,
sem fazer cair as cotações da bolsa, ou a produção
que é necessário elevar para bater as potências capitalistas
na coexistência pacífica, que seja dado a cada um
o direito de arrastar os outros para
a sua pequena salvação pessoal.

A coisa está difícil, não é verdade, velha prostituta?
Como é difícil a paz! Como é difícil… –
Quanto veneno, quanta raiva, quanta miséria,
Quanta ignomínia, quanta falta de ressurreição
 – sobretudo isso dói muito… – é preciso engolir!
E o ódio de que se tem vivido ou morrido?
Que fazer dele? Transferi-lo aos pedantes,
aos cretinos, calinos, alarves, bestas, cavalos,
safardanas, que se ocupam dos teus piolhos?
E valerá a pena? Os teus piolhos chegaram
às universidades, são classificados lá por outros que,
conscienciosamente, fazem o seu currículo de aracnídeos
ensinando aos outros insectos como evitar o DDT
e continuar comendo em paz folhas de livros.

Vai, puta! Já não enganas ninguém!
Leva contigo a tua corte de semis de tudo,
o homem macaco, a mulher eléctrica, o que voltou
da Abíssinia, o que se enforcou na
Vielle Lanterne (não confundir o lampião
com  a rua), o que hipotecava casas
em Blackfriars, os que eram cegos
de um olho ou dois, o barbaças
das profecias, o soneteiro
suicida, o da picada
do espinho da rosa, ali!
(tecnicamente, um acúleo),
toda essa canalha solitária
de todas as cores e feitios,
tomando banho ou não,
fazendo a barba ou não.
Vai! Vai! Espoja-te no chão,
e pede humildemente que as crianças do mundo,
todas as crianças do mundo,
te mijem em cima.

Jorge de Sena em 26/5/1962

Óleo de Rufino Tamayo (1899-1991) 

06/03/2012

Chamada do Gregório...

Gregório de Matos (?-1695)


Carregado de mim ando no mundo,
E o grande peso embarga-me as passadas,
Que como ando por vias desusadas,
Faço o peso crescer, e vou-me ao fundo.


O remédio será seguir o imundo
Caminho, onde dos mais vejo as pisadas,
Que as bestas andam juntas mais ornadas,
Do que anda só o engenho mais profundo.


Não é fácil viver entre os insanos,
Erra, quem presumir, que sabe tudo,
Se o atalho não soube dos seus danos.


O prudente varão há de ser mudo,
Que é melhor neste mundo o mar de enganos
Ser louco cos demais, que ser sisudo.


Gregório de Matos

03/03/2012

Hein?

Heinrich Heine (Alemanha, 1797 - Paris, 1856)

Legado

A minha vida chega ao fim,
Escrevo pois meu testamento;
Cristão, eu lego aos inimigos
Dádivas de agradecimento.

Aos meus fiéis opositores
Eu deixo as pragas e doenças,
A minha coleção de dores,
Moléstias e deficiências.

Recebam ainda aquela cólica,
Mordendo feito uma torquês,
Pedras no rim e as hemorroidas,
Que inflamam no final do mês.

As minhas cãimbras e gastrite,
Hérnias de disco e convulsões –
Darei de herança tudo aquilo
Que usufruí em diversões.

Adendo à última vontade:
Que Deus caído em esquecimento
Lembre de vós e vos apague
Toda a memória e sentimento.


tradução de André Vallias



02/03/2012

L's...



“Ana, salvé! Salvé, mas mesmo aí em Londres
não sei se você estará a salvo, porque aí também os
deve haver com certeza. Onde é que os não há? An-
dam no meio de nós, e acho que já são tantos que
nem sei se não seria melhor dizer que nós é que an-
damos no meio deles!”

                “Ah, Alberto, como você tem razão! Elles estão
de facto em toda a parte e por aqui também os há só
que, com o frio, e sobretudo com a chuva, elles retra-
em-se mais. Quer dizer, elles retraem mais os apên-
dices, e os caudais, esses, então nunca se vêem, a não ser
num excepcional dia de sol ou nalgum surto de
exibicionismo de parque.”



Tablets...



A NIONIO NOR...



Landarte...

s/t, watercolour on wood, 2012

01/03/2012

Este é o meu sangue...



Hoje, 1 de Março, pelas 22.30h, no Bartleby (R. Imprensa Nacional, 116B, cave do restaurante BS) será lançado o livro "Este é o meu sangue".



Mais informações aqui e aqui

17/02/2012

Impressões...

Montagem fotográfica obtida segundo indicações de Álvaro Lapa, a partir da sua fotografia realizada por Luís Palma, 1994.


ÁLVARO LAPA IMPRESSÕES DA LUSITÂNIA

ENDOVELICO (deus do fogo?) (incerto). Deus dos curas (quase). Deus das curas. Esculápios dos celtas? Em pleno Alentejo em plena Mesopotâmia o Santuário de Endovelico ficava alto. Des Deus Endovellicus! Um deus alentejano. Onde está, antigamente estava / Aquele templo sumptuoso e rico / Do Deus Cupido, e que então chamava / O romance vulgar Endovellico[1]. Corresponda a Apolon ou não corresponda.

                S’Miguel da Mota. Alandroal 1890 ido. Homens animais etc. Pedras escavadas em forma de pia. Restos dum deus. Restos dos cultos. Era um E. Muito muito bom. Very very Gwell. Um monte santo.

                (Entrava o porco. Ou a porca. São deuses ctónicos. São deuses médicos.) Baudelaire não aproveitou. Um outro hemiplégico veio a curar-se. Que parece cão. Via nos sonhos. Sonhos da Terra. A Tenríssima curandeira. Segundo determinação avernal. Com inscrições versificadas. E todo o outeiro era sagrado. Misturas de arqueologia e de história. Que significa «segundo o que se Prometeu». Segundo o Yi-King. Espírito da música.

                Há uma encantadora historieta acerca de Confuncio. Uma vez o seu discípulo preferido ouvia-o tocar e ficara cheio de medo e disse-lhe: «O mestre hoje tem pensamentos de assassino.» Isto sucedia enquanto Confuncio observava uma aranha a tecer a teia à volta duma mosca, e por isso ele expressava o que via por movimento das cordas. A habilidade de seguir a música do mestre era tão grande que lhe entendia a emoção; mas não conseguia compreender a causa e apenas percebia que havia pensamentos de assassino misturados. Não era capaz de determinar era se esses pensamentos eram do assassino de homens ou de moscas. Música da terra. Música das transformações. Ocos dum órgão numa sala gigante sob o outeiro ouve-se os martelos. Soa por indigível. Ouvia-se nos sonhos. A voz própria boca de ninguém lábios de Yin ave de arribação. Ou uma pombinha ofertada a Endovellicus. Brûle san satyre. Que Gauguin leu «Mais depuis mon arrivée à Paris la vie que je mène est si peu gaie!» Vivam os canibais. De outro hemisfério. Leite de Vasconcelos. Olhando o Paraíso. Eu ouvi dizer – disse o galego Zoar – que é preciso cruzar os braços sobre o peito e as costas do doente, não sei se isso adianta para as crianças. Um paraíso barroco com o Minho. Floresta de folhas verdes como luz. Lago de Sol. Carne de papel.

Álvaro Lapa
In ‘A Phala’, n.º 39, Setembro, Assírio & Alvim, Lx, 1994.



[1] Braz Garcia Mascarenhas

15/02/2012

Fra-dique...

NOITES DE PRIMAVERA NO BOULEVARD

Quando em tardes d'Abril, à luz crepuscular,
Saio de casa e vou buscando um apouco d'ar,
Que tumulto na rua! e que inferno de gente,
Que levam mil paixıes, confusa, douda, ardente!
É um mundo que sai, parece, das visões
De Dante ou S. João, ruindo entre baldıes
Dum círculo infernal para outro mais profundo,
E outro, e dez, e mil, buscando sempre o fundo!,
E, em volta; a luz vibrante e vívida do gás
Inunda a multidão, inimiga da paz!
Sai desta confusão uma horrível poesia,
Uma volúpia atroz, uma estranha magia,
Que irrita, acende e -faz os sentidos arder.
Exalação magnética, aromas de mulher,
O contacto que excita, um fluido de desejos,
E como que no ar um trocar-se de beijos,
Sem destino e sem dono, ardentes e cruéis ...
É o povo, outra vez, das antigas Babéis, É Gomorra, outra vez, e o lago de Sodoma,
E as Bacantes febris da desgrenhada Roma,
Com mais força somente, e essa nova paixão
Que sai do foco a arder da Civilização!
Sim, há paixão ali, e vida, intensa vida
Por, mil caminhos vãos espalhada e perdida,
Mas magnética, activa e enchendo todo o ar
Dum fluido de delírio, em vórtice a girar ...
Em volta da cidade È como uma cintura
De loucura e d'amor, sobre a extensão escura ...
É outro o mundo ali! outra ideia! outro ser!
O Bem, o Mal, não têm o aspecto que usam ter ...
O vício é formosura.- o vício é poesia -,
Parece a criação ter por lei a folia,
E sentidos, e alma, e tudo, em confusão,
Bradam: – “O Universo, é filho da paixão!
Amai, vivei, clamai! rugi, se nos rugidos
Há uma força mais, que levante sentidos!
Se o VÌcio n„o bastar, no Crime pode haver
Magia e atracção e fonte de prazer!
Em nós habita Deus!,- o mais, matéria morta!
Que o mundo caia em volta e se alua, que importa?”
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E lá de cima o céu,  imenso e fundo, está
Olhando, com olhar d'estrelas, para cá...
Mas o mais triste, ó céu! ó astros! é que o abismo,
Que tenho em torno a mim, é no que penso e cismo!
A vertigem também minha alma me tomou ...
Sinto o terrível fluido ... e vou, e vou, e vou ...
E desejo e estremeço ... e o delírio parece
Que me enche o coração, e a vida me endoidece!
Sim! a Paixão governa e o Prazer é rei!
O mundo é artifício! - e, incerto, nem já sei
Se estes bicos de gás são realmente estrelas,
Ou só bicos de gás essas esferas belas!
   
 Paris: Abril de 1867. 
      [Antero de Quental]

AIR.