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04/04/2012

Uma ceia original ou a malcozinhada fome de Camões…


“Damas de aluguer
são remédio santo
para o que ama tanto
a quem o não quer.
Deixe o seu cuidado
A pobre alma terna,
ame na taberna
do Malcozinhado.”

Afonso Lopes Vieira


Taberna essa onde, abancado à comprida mesa de pinho áspero, em oscilante banco corrido, sob a luz frouxa do azeite ou da cera, visiono Camões enxugando um canjirão de vinho acre temperado com água, e comendo algum peça de caça assada no espeto, ou de pescado fresquíssimo, vindo da ribeira das naus, tudo acompanhado com um naco de pão moreno e espesso.

Creio que por esses tempos de Quinhentos, galinha era manjar de príncipe, se recheada de apetite, nome este que rendeu ao vate um belo trocadilho, quando “D. António, senhor de Cascais, tendo-lhe prometido seis galinhas recheadas por uma copla que lhe fizera, lhe mandou por princípio de paga meia galinha recheada.”

O poeta, malicioso e esfomeado, ripostou-lhe, então, com a graciosidade da seguinte quadra:

“Cinco galinhas e meia
Deve o Senhor de Cascais;
E a meia vinha cheia
De apetite para as mais.”

Também a propósito de uma promessa de galinha, feita pelo duque de Aveiro, que redundou na oferta de uma ração de carneiro, Camões Protesta noutro epigrama:

“Eu já vi a taberneiro
Vender vaca por carneiro.
Mas não vi por vida minha,
Dar carneiro por galinha
Senão ao duque de Aveiro.”

A galinha, ao que parece, era, no século XVI, prato apreciado pela gula, e de valor superior à costeleta de carneiro. E os fidalgos desta época com hábitos de caloteiro. (Dois séculos mais tarde é Filinto Elísio quem se queixa ao senhor Doutor Manuel Tomás de Azevedo e Sousa, “o (seu) Sousa Pachorrento”, no Tempo da Reforma da Universidade de Coimbra:

“… E como o bom Salmão que me mandaste
E lugar das Lampreias prometidas
Há mais de três Quaresmas”.)

Camões, na Índia, onde serviu a pátria como soldado e onde sofreu alguns dissabores, mas onde deixou fundas amizades, às quais devemos talvez o seu retrato mais vivo, por testemunho dos fiéis e humildes amigos Lúcio de Ascensão, João Penquinho, Henrique e Francisco Mascarenhas; “o retrato que mostra em toda a parte/ o grande coração de Portugal” (e volto a evocar a musa de Lopes Vieira); Camões, um certo dia, resolveu oferecer um banquete a “fidalgos seus amigos”: Vasco de Ataíde, D. Francisco de Almeida, Heitor da Silveira, João Lopes Leitão e Francisco de Melo.

Porém nada de iguarias que enchessem o estômago voraz dos convidados! Somente, para satisfação do espírito, algumas trovas, postas nos pratos de cada um!

Engenhoso lance originalíssimo!

Porque essa poesia menciona meia dúzia de vitualhas… que lá não estão, numa soberba ementa, e porque o resultado poético tem o dedo camoniano, há que reproduzi-la na íntegra:


A primeira iguaria foi posta a Vasco de Ataíde, e dizia:

“Se não quereis padecer
Uma ou duas horas tristes,
Sabeis que haveis de fazer?
Volveros por dó venistes,
Que aqui não há que comer.
E, posto que aqui leais
Trovinha que vos enleia,
Comido não estejais;
Porque, por mais que corrais,
Não heis-de alcançar a ceia.”


A segunda, a D. Francisco de Almeida:

“Heliogábalo zombava
Das pessoas convidadas,
E de sorte as enganava
Que as iguarias que dava
Vinham nos pratos pintadas.
Não temais tal travessura,
Pois já não pode ser nova;
Porque a ceia está segura
De vos não vir em pintura,
Mas há-de vir toda em trova.


A terceira, a Heitor da Silveira:

“Ceia não a papareis;
Contudo, por que não minta,
Para beber achareis,
Não Caparica, mas tinta,
E mil cousas que papéis.
E vós torceis o focinho
Com esta anfilologia?
Pois sabei que a Poesia
Vos dá aqui tinta por vinho! E papéis por iguaria.”


A quarta, a João Lopes Leitão, a quem o Autor fez uns versos que vão adiante, sobre uma peça de cacha que deu a uma Dama:

“Porque os que vos convidaram
Vosso estômago não danem,
Por justa causa ordenaram,
Se trovas vos enganaram
Que trovas vos desenganem.
Vós tereis isto por tacha,
Converter tudo em trovas;
Pois se me vindes zombar,
Não cudeis, Senhor, que é cacha,
Que aqui não há que cachar.”


Responde João Lopes Leitão:

“Pesar ora não de são!
Eu juro pelo Céu bento,
Se de comer me não dão,
Que eu não sou camaleão,
Que me hei-de manter de vento.”


Responde o Autor:

“Senhor, não vos agasteis,
Porque Deus vos proverá;
E, se mais saber quereis,
Nas costas deste lereis
As iguarias que há.”


Virando o papel, dizia assim:

“Tendes nem migalha assada,
Cousa nenhuma de molho,
E nada feito em empada,
E vento de tijelada,
Picar no dente em remolho;
De fumo tendes taçalhos;
Ave de pena que sente
Quem da fome anda doente;
Bocejar de vinho e de alhos,
Manjar em branco excelente.


A derradeira iguaria a Francisco de Melo:

Dum homem que teve o ceptro
Da veia maravilhosa,
Não foi cousa duvidosa
Que se lhe tornava em metro
O que ia dizer em prosa.
De mim vos quero afirmar
Que faça cousas mais novas
De quanto podeis cuidar;
E esta ceia, que é manjar,
Vos faça na boca em trovas.”

Diogo do Couto avistou Camões, em Moçambique, no seu regresso de Goa, tão minguado de fortuna que “comia de amigos”.

Julgo que nenhum deles teve a ideia infeliz de lhe acudir à fome com um banquete de trovas.

Porque não há que zombar da necessidade alheia, nem haverá mais uma inspiração capaz de rivalizar com o génio de Camões (“Os mais são colinas/ Ele é a montanha!” João de Deus dixit!)

Janeiro de 1991

António Manuel Couto Viana in “A Musa à Mesa – a gastronomia na cena e na poesia portuguesa, Universitária Editora, Lda., pp. 201-204, Lisboa, 1994.