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13/03/2012

«Ex pulsão da poesia...»

Óleo de Rufino Tamayo (1899-1991)

EXPULSÃO DA POESIA

Neste crepúsculo dos deuses que incendeia serenamente de púrpura
os massacres sem conta, e em que nada
é já significativo, porque tudo sempre significou alguma coisa
e não ressuscita ninguém (a ressurreição é
negócio individual, requerendo vítima, sepulcro emprestado,
alguns guardas, dedicadas mulheres, e vários fiéis
desinteressadamente interessados nela – enfim,
a ignomínia tratada com exemplar dignidade,
sem improvisos de última hora, nem excessivos
planejamentos ou ensaios, por modo a que
as imaginações possam com ela despersonalizar-se inteiramente
da sordidez sordidamente sórdida, etc.),
um fenómeno se verifica, observa, e que, ele, sim,
é altamente significativo.

Com efeito: ela cantou os tiranos, as revoluções proletárias,
as guerras todas de libertação nacional. Em séculos
e séculos, cantou ou chorou sempre nas
grandes horas. Ás vezes com atraso. Outras,
com adiantamento desagradável, sobretudo,
se era o caso de choro. Muitas outras vezes,
para dar-se importância, reles importância, inventou mesmo
as grandes horas. Quantas outras vezes,
se deixou matar de fome, de miséria e solidão,
para repetir com alegria infrene que
a imortalidade existe, que o céu existe,
e que a terra, só ela, a pobre terra, não existe.
Fizeram-se por esta letrada ciência os maiores sacrifícios
de vidas e papel impresso. Não comparáveis,
é certo, aos massacres habituais, em que
se molhava delicadamente a pena.

E, agora, neste delicioso crepúsculo que devia inspirá-la,
porque se cala, porque não canta nem chora?
Porque se limita a coçar o cu tranquilamente,
como prostituta honesta que se retirou da vida?
Com que então, a brincadeira acabou?
S. Excia já não serve? Já não é livre? Já não é
nem deixa de ser coisa nenhuma?
Então não era eterna, a voz da justiça,
a voz da liberdade, do mais profundamente humano,
não era imortal, mais que divina, mais
que o raio que a parta? Então
não era tudo isso e o céu também?

É que, meus amigos, a coisa está difícil.
A agonia chegou. O vómito que se não vomita.
Porque não se descobriu maneira de sair do beco:
a salvação é só de cada um, e diz respeito
a cada um, mas ninguém se salva sozinho,
nem se perde por própria culpa. E não é possível,
sem fazer cair as cotações da bolsa, ou a produção
que é necessário elevar para bater as potências capitalistas
na coexistência pacífica, que seja dado a cada um
o direito de arrastar os outros para
a sua pequena salvação pessoal.

A coisa está difícil, não é verdade, velha prostituta?
Como é difícil a paz! Como é difícil… –
Quanto veneno, quanta raiva, quanta miséria,
Quanta ignomínia, quanta falta de ressurreição
 – sobretudo isso dói muito… – é preciso engolir!
E o ódio de que se tem vivido ou morrido?
Que fazer dele? Transferi-lo aos pedantes,
aos cretinos, calinos, alarves, bestas, cavalos,
safardanas, que se ocupam dos teus piolhos?
E valerá a pena? Os teus piolhos chegaram
às universidades, são classificados lá por outros que,
conscienciosamente, fazem o seu currículo de aracnídeos
ensinando aos outros insectos como evitar o DDT
e continuar comendo em paz folhas de livros.

Vai, puta! Já não enganas ninguém!
Leva contigo a tua corte de semis de tudo,
o homem macaco, a mulher eléctrica, o que voltou
da Abíssinia, o que se enforcou na
Vielle Lanterne (não confundir o lampião
com  a rua), o que hipotecava casas
em Blackfriars, os que eram cegos
de um olho ou dois, o barbaças
das profecias, o soneteiro
suicida, o da picada
do espinho da rosa, ali!
(tecnicamente, um acúleo),
toda essa canalha solitária
de todas as cores e feitios,
tomando banho ou não,
fazendo a barba ou não.
Vai! Vai! Espoja-te no chão,
e pede humildemente que as crianças do mundo,
todas as crianças do mundo,
te mijem em cima.

Jorge de Sena em 26/5/1962

Óleo de Rufino Tamayo (1899-1991)