20/07/2018
15/07/2018
11/07/2018
Kehre, khere... Querias?...
Coimbra,
11 de Julho de 1944
– É
preciso dar uma volta a esta
minha poesia ou desanda tudo numa choradeira de funeral. A depuração
lírica que tentei não bastou, como se viu. Os motivos foram-se
diluindo no regato da emoção, e qualquer expressão pura, que será
o êxtase dado numa palavra. Na rua tudo a desfazer-se em água, por
exemplo, e eu por dentro da janela a escrever – Chove! A exaltação
foi dando lugar em mim a uma morrinha subjectiva, e os grandes
motivos de inspiração olham-me de soslaio, desconfiados. Parece que
nem o sol me aquece, nem o frio me regela, nem as flores me entram
nos olhos. Sem falar nos semelhantes, que devem ler estes versos como
eu leio os Haikai japoneses.
Se eu ao menos tivesse paz neste lirismo doméstico, vá que não
vá. Mas não tenho. Acabo o poema, e fica-me o coração cheio de
fome. Os meus braços nasceram para abranger fraternidades largas,
sentimentos profundos, emoções fortes e naturais. Em certos
momentos apetece-me, realmente, o sorriso dicreto e ecreto de uma
violeta. Mas são pequenos desvios ou distracções na rota aberta
dos meus passos.
Bem
sei que esta carnificina que me rodeia concorreu largamente para a
repressão dos meus sentimentos universais e cósmicos. O choque foi
tão brutal, morreram-me tantas esperanças à nascença que. Como um
caracol acossado, naturalmente fui fazendo da minha concha o meu
mundo. Foram muitas derrotas junta, muitas desilusões seguidas. A
minha sensibilidade não estava preparada para enfrentar uma
catástrofe tão dura. Criado
literàriamente à sombra e Prousts e de Joyces, a arte era para mim
um descampado lúdico e pessoal de quermesse. Embora todo o meu ser
tivesse protestado desde o início contra esta visão, paradisíaca e
privativa, da beleza, a verdade é que nunca tive forças para rever
inteiramente a minha posição. Ia cantando as minhas dores e as
minhas alegrias, sobretudo as
primeiras, às vezes a pensar
nas dos outros, mas
sem fazer finca-pé nessa solidariedade. Todos os Gides me tinham
ensinado que os homens se dividiam em artistas e não artistas, e que
os dois grupos não se podiam encontrar na vida. Nem o facto de eu
ter certas ideias política me valeu. A lição era peremptória.
Tanto quanto possível, o homem e o artista deviam viver dentro de
mim em compartimentos estanques. Veio então a guerra. Não a que se
contempla agora com os olhos esbugalhados, mas a que ninguém quis
ver, e que começou por levar latinidade e cultura dentro de bombas
incendiárias às palhotas selvagens da Abissínia… E o sofrimento
de milhões de irmãos poderia ser a redenção, se não fosse o peso
excessivo de ódio e crueldade que trazia. Espontâneamente, todo eu
fui chamado para o campo da
comunhão humana, para o terreno chão onde se encontram todos os que
sabem que viver é sobretudo amar e ser amado. Mas o cântigo de
fraternidade cobriu-se de lágrimas e manchou-se de nódoas de
sarcasmo. Escrevi uma Lamentação,
quando queria escrever uma libertação. Mas na alma de um poeta
nunca se apaga de todo a luz duma esperança. A onda de sangue não
foi capaz de submergir em mim uma sede contínua de amor universal. E
eu sinto cada vez mais urgente a necessidade de pôr de acordo a
minha poesia com a minha razão e o meu instinto.
Rampa
e O outro livro de Job
eram ferozes de mais, havia neles uma espécie de maceração
desumana, de grelha em fogo onde a alma e o corpo se queimavam de
desespero, e onde só cabia um homem de cada vez. Tributo
e Abismo são
tentativas vãs para sair dessa polé de tortura.
Os
poemas líricos do Diário foram o primeiro vislumbre de uma beleza
objectiva e serena. Mas não chegaram. Perderam-se pelo caminho,
mudaram de sinal, e os grandes problemas, que continuavam à espera,
vão encontrar na Lamentação
uma terra carregada de desânimo e amargura.
E não é isso que eu quero, nem o que a vida quer. Basta de agonias
e de masturbações! O mundo luta pela sua redenção, que está
perto. Cantem os poetas esta nova manhã!
Miguel Torga, “Diário
III”, pp. 70-73, 1954, Coimbra.
09/07/2018
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Leiria,
9 de Julho de 1939 –
Berlengas o dia inteiro. Vide
Raul Brandão, página 195 de Os Pescadores.
(Para que raio há-de a gente estar para aqui a presumir).
Miguel
Torga, “Diário I”, pág. 99, 1941, Coimbra.
07/07/2018
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Roger Vailland |
“Nada
é mais oposto ao libertino
do que aquilo a que chamamos o femeeiro ou
pinga-amor.
Tal
como a
vítima do amor-paixão, o femeeiro
é escravo de uma obsessão. Qualquer que seja a «pessoa do sexo»,
a perspectiva vagamente entrevista de um consentimento basta para
provocar nele esta mobilidade dos humores, esta fermentação
glandular, esta subversão orgânica total que metamorfoseia a maior
parte das espécies animais em vésperas de acasalamento e que
arranca as enguias aos pântanos das estepes para as núpcias
fabulosas que decorrerão no mar dos Sargaços.
Mesmo
quando julga possuir, o femeeiro é possuído. Isto porque a sua
perpétua sofreguidão o inclina para o mais fácil. Os trabalhos de
aproximação que impõe o cerco da virtude
exasperam a sua impaciẽncia. Como aqueles conquistadores que só
atacam as nações minadas por lutas intestinas, ele toma apenas as
praças fortes que desejam ser conquistadas.
O
libertino, pelo contrário, escolhe. É a ele que convém o epíteto
difícil que a
linguagem corrente outorga às virtudes
obstinadas. Ele é tanto mais difícil
quanto o seu gosto está mais completamente educado. É na severidade
da sua escolha que reside a virtude
que lhe é própria.”
Roger
Vailland, “Esboço Para Um
Retrato do Verdadeiro Libertino”, pp. 16-17, &etc, Lx,
1976. trad. Vitor Silva Tavares.
Roger Gilbert-Leconte, Roger Vailland, René Daumal et Robert Meyrat |
06/07/2018
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Vila
Nova, 6 de Julho de 1936 – Aqui
tenho à mesa de
cabeceira o último livro ainda a cheirar à tinta da tipografia. Não
há dúvida nenhuma que o concebi, que o realizei, e que, depois
disso, com os magros vinténs que vou ganhando por estes montes,
consegui pô-lo em letra redonda – a forma material máxima que se
pode dar a um escrito. E, contudo, olho esta realidade que eu tirei
do nada, que bem ou mal arranquei de mim, com o mesmo desânimo com
que olho uma teia de aranha. E não é por saber de antemão que o
livro vai ser abocanhado ou ignorado. Não obstante a lei natural que
aconselha a que não haja homem sem homem, é preciso que a santa
cegueira do artista lhe dê a força bastante para, em última
análise, ficar só e confiante. Ora eu tenho, como artista, essa
cegueira. O meu desalento vem duma voz negativa que me acompanha
desde o berço e que nas piores horas diz isto: Nada, em absoluto,
vale nada.
Miguel
Torga, “Diário I”, pág. 24, 1941, Coimbra.
05/07/2018
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Leiria,
5 de Julho de 1940 –
Estes ingleses, quando fazem
uma das deles e depois a contam nos Comuns, parecem o Fernão Mendes
Pinto: «E
com muitas ave-marias e muito pelouro nos fomos a eles e em menos de
um credo os matámos a todos».
Miguel
Torga, “Diário I”, pág. 160, 1941, Coimbra.
02/07/2018
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Figueira
da Foz, 2 de Julho de 1944
– Tive
hoje a tentação de entrar pelo mar dentro, a pé, a ver até onde
ia o meu poder. O mito de Moisés – um dos mais belos criados pela
humanidade – apertou comigo, e foi por um tris que me não afoguei,
trágica e ridiculamente com dois pés de barro. Ou quereria eu,
realmente, suicidar-me?
Miguel Torga, “Diário
III”, pág. 68, 1954, Coimbra.
01/07/2018
29/06/2018
28/06/2018
27/06/2018
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“O
estudante é um ser partilhado entre um estatuto presente e um
estatuto futuro claramente distintos, cuja fronteira será
mecanicamente transposta. A sua consciência esquizofrénica
permite-lhe isolar-se numa «sociedade de iniciação»,
desconhecendo o seu futuro e encantando-se com a unidade mística que
lhe oferece um presente ao abrigo da história. (…) Embora a sua
tardia crise juvenil o oponha um tanto à família, aceita facilmente
ser tratado como criança nas diversas instituições que regem a sua
vida quotidiana.”
AAVV,
“Da Miséria no Meio
Estudantil”, pág.
27,
Antígona Editores Refractários, Lisboa, Maio 2018.
“O
estudante (…), na sua qualidade de ser ideológico, chega tarde
demais a tudo. Todos os valores
e ilusões que constituem o orgulho do seu mundo fechado estão já
condenados como ilusões insustentáveis, desde há muito
ridicularizadas pela história.
Recolhendo
um pouco dos sobejos de prestígio da Universidade, o estudante ainda
se sente satisfeito por ser estudante. Tarde demais! O especializado
ensino mecânico que recebe está tão profundamente degradado (em
relação ao antigo nível da cultura geral burguesa1)
quanto o seu próprio nível
intelectual no momento em que a tal ensino acede, e isto pelo simples
facto de a realidade que domina o conjunto destas coisas – o
sistema económico- reclamar uma fabricação maciça de estudantes
incultos e incapazes de pensar. Que a Universidade se tenha tornado
uma organização – institucional – da ignorância, que a própria
«alta cultura» se dissolva ao ritmo da produção em série dos
professores, que todos
estes professores sejam uns cretinos, de tal modo que a maior parte
de entre eles provocaria a algazarra de qualquer público de liceu
(...)”
AAVV,
“Da Miséria no Meio
Estudantil”, pp.29-30, Antígona Editores Refractários, Lisboa,
Maio 2018.
1Não
nos referimos à cultura da Escola Normal Superior nem à dos
Sorboniqueiros, mas à dos Enciclopedistas ou de Hegel.
26/06/2018
23/06/2018
21/06/2018
19/06/2018
E foi mais ou menos assim...
Lewis Mumford |
Foi uma excelente apresentação, da tão aguardada edição portuguesa, pelo Jorge Custódio. O livro é da Antígona Editores Refractários e foi apresentado no passado dia 15 de Junho No Museu da Electricidade em Lisboa.
da esquerda: Jorge Custódio, Luís Oliveira, Lurdes Afonso |
...
MEU
ILUSTRE AMIGO:
Venho
responder conformadamente à segunda rajada sentimental, romanesca,
dêsse tirânico Sebastianismo a que sacrificou o seu intelecto. A
sua réplica é (como não podia deixar de ser) um escuro labirinto
confusíssimo das mais ilógicas alegações, de palavras indefinidas
e de frases sem sentido. O estado de espírito em que se acha agora
torna-o sensível às sugestões de inteligências inferiores; e o
Sebastianismo, apanhando-o enfermo, trouxe ao seu espírito a
escuridão. Falo-lhe, portanto, como a um doente passageiro, que
tenho a certeza que se curará. O verdadeiro Malheiro Dias – o não
antero-de-figueiredista, – há de um dia reaparecer, para triunfo
(e alegria) de amigos sinceros e leais, Pudesse eu, na minha
modéstia, ver a justa recompensa de o ajudar a ressurgir!
E
vamos lá.
Recordemos,
para clarezas, como se originou esta questão.
Pediu-me Raúl Proença, um dia, uma pequena introdução histórica
para o seu Guia de Portugal. Comecei por me escusar a favor de
pessoa mais idónea, mal pensando que o meu escrito se tornaria tão
famoso. Mas êle insistiu, e obedeci.
António
Sérgio.
17/06/2018
16/06/2018
...
Coimbra,
16 de Junho de 1938 –
De quantos ofícios há no
mundo, o mais belo e o mais trágico é o de criar arte. É ele
o único onde um dia não pode ser igual ao que passou. O artista tem
a condenação e o dom de nunca poder automatizar a mão, o gosto, os
olhos, a enxada. Quando deixa de descobrir, de sofrer a dúvida, de
caminhar na incerteza e no desespero – está perdido.
Miguel
Torga, “Diário I”, pág. 69, 1941, Coimbra.
10/06/2018
...
Tunes, 14-3-26.
Querido
amigo:
Tenho-lhe
mandado vários bilhetes postais, e, de Argel, uma longa carta, que
não encontro notada no meu livro de lembranças e a cuja data me não
posso referir. Tudo lhe tem sido endereçado para o Museu. Entretanto
recebi (em Argel) a sua estimada de 10 de Janeiro, dirigida para
Oran, que muito agradeço.
A
minha viagem, tão auspiciosamente começada, transtornou-se um
pouco, mercê de uns antrazes que me apareceram no peito, e de que
ainda não estou inteiramente livre. O sofrimento tem sido grande,
mas nem por isso amaldiçoo a Providência, pois sem tal empacho a
minha felicidade seria completa, absoluta, paradisíaca, o que não é
próprio deste mundo. Acresce que as tremendas lancetadas com que os
médicos me têm mimoseado me estão arranjando um peito de herói,
cheio de gloriosas cicatrizes, o que talvez algum cronista ainda
aprovite para me atribuir feitos guerreiros durante a minha
pachorrenta presidência. E assim poderei passar à posteridade mais
bem enfeitado!
Embora
eu não tivesse plano definido de viagem, nem itinerário certo,
estava longe dos meus cálculos esta grande demora no Norte de
África, a que me obrigaram os tais antrazes. Porém com essa demora
tenho aproveitado em ver repousadamente e repetidamente monumentos e
sítios que visitados de passagem só deixam na memória impressões
confusas, mas que merecem contemplação repetida, para lhes
entrarmos um pouco na intimidade, de modo que nos fiquem de lembrança
como perpétuos elementos de beleza e de sonho. Nesse sentido a
Tunísia é talvez ainda mais variada e rica do que a Argélia, e as
três semanas que aqui tenho passado, apesar dos bichocos, marcam um
período luminoso, de magnífico prestígio estético, na minha vida
– mesmo entre os melhores períodos que ela conta.
Com
esta carta vão alguns cartões, reproduzindo obras de arte grega, da
melhor época, que estão no Museu Bardo (antiga e faustosa
residência do Bei, cercada de extensos jardins) e foram encontradas
no fundo do mar. Provinham elas, supõe-se, de um navio que Sila
carregara no Pireu, com o produto da sua rapina em Atenas, e eram
destinadas a ornar o seu palácio em Roma. Como todas as reproduções
que se encontram em postais no Norte da África francesa, estas são
péssimas, e indignas dos admiráveis originais, entre os quais
figuram umas estatuetas grotescas, de anões ou anoas dançarinas,
extraordinárias de carácter e originalidade. Tudo isto é de
aquisição recente e portanto posterior à época das minhas juvenis
peregrinações por estes sítios.
E
ponto, que a obrigação de escrever na cama, sobre uma pasta apoiada
nos joelhos – efeito dos antrazes – não me permite ser tão
extenso como me propunha ao começar esta carta.
Respeitos
e cumprimentos para sua mulher.
Do C.
M.
Teixeira-Gomes, “Cartas a Columbano”, pp.11-13, Portugália
Editora, 1957, Lisboa.
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