10/06/2018

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Tunes, 14-3-26.

Querido amigo:

Tenho-lhe mandado vários bilhetes postais, e, de Argel, uma longa carta, que não encontro notada no meu livro de lembranças e a cuja data me não posso referir. Tudo lhe tem sido endereçado para o Museu. Entretanto recebi (em Argel) a sua estimada de 10 de Janeiro, dirigida para Oran, que muito agradeço.
A minha viagem, tão auspiciosamente começada, transtornou-se um pouco, mercê de uns antrazes que me apareceram no peito, e de que ainda não estou inteiramente livre. O sofrimento tem sido grande, mas nem por isso amaldiçoo a Providência, pois sem tal empacho a minha felicidade seria completa, absoluta, paradisíaca, o que não é próprio deste mundo. Acresce que as tremendas lancetadas com que os médicos me têm mimoseado me estão arranjando um peito de herói, cheio de gloriosas cicatrizes, o que talvez algum cronista ainda aprovite para me atribuir feitos guerreiros durante a minha pachorrenta presidência. E assim poderei passar à posteridade mais bem enfeitado!
Embora eu não tivesse plano definido de viagem, nem itinerário certo, estava longe dos meus cálculos esta grande demora no Norte de África, a que me obrigaram os tais antrazes. Porém com essa demora tenho aproveitado em ver repousadamente e repetidamente monumentos e sítios que visitados de passagem só deixam na memória impressões confusas, mas que merecem contemplação repetida, para lhes entrarmos um pouco na intimidade, de modo que nos fiquem de lembrança como perpétuos elementos de beleza e de sonho. Nesse sentido a Tunísia é talvez ainda mais variada e rica do que a Argélia, e as três semanas que aqui tenho passado, apesar dos bichocos, marcam um período luminoso, de magnífico prestígio estético, na minha vida – mesmo entre os melhores períodos que ela conta.
Com esta carta vão alguns cartões, reproduzindo obras de arte grega, da melhor época, que estão no Museu Bardo (antiga e faustosa residência do Bei, cercada de extensos jardins) e foram encontradas no fundo do mar. Provinham elas, supõe-se, de um navio que Sila carregara no Pireu, com o produto da sua rapina em Atenas, e eram destinadas a ornar o seu palácio em Roma. Como todas as reproduções que se encontram em postais no Norte da África francesa, estas são péssimas, e indignas dos admiráveis originais, entre os quais figuram umas estatuetas grotescas, de anões ou anoas dançarinas, extraordinárias de carácter e originalidade. Tudo isto é de aquisição recente e portanto posterior à época das minhas juvenis peregrinações por estes sítios.
E ponto, que a obrigação de escrever na cama, sobre uma pasta apoiada nos joelhos – efeito dos antrazes – não me permite ser tão extenso como me propunha ao começar esta carta.
Respeitos e cumprimentos para sua mulher.

Do C.

M. Teixeira-Gomes, “Cartas a Columbano”, pp.11-13, Portugália Editora, 1957, Lisboa.

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