11/07/2018

Kehre, khere... Querias?...


Coimbra, 11 de Julho de 1944 É preciso dar uma volta a esta minha poesia ou desanda tudo numa choradeira de funeral. A depuração lírica que tentei não bastou, como se viu. Os motivos foram-se diluindo no regato da emoção, e qualquer expressão pura, que será o êxtase dado numa palavra. Na rua tudo a desfazer-se em água, por exemplo, e eu por dentro da janela a escrever – Chove! A exaltação foi dando lugar em mim a uma morrinha subjectiva, e os grandes motivos de inspiração olham-me de soslaio, desconfiados. Parece que nem o sol me aquece, nem o frio me regela, nem as flores me entram nos olhos. Sem falar nos semelhantes, que devem ler estes versos como eu leio os Haikai japoneses.
Se eu ao menos tivesse paz neste lirismo doméstico, vá que não vá. Mas não tenho. Acabo o poema, e fica-me o coração cheio de fome. Os meus braços nasceram para abranger fraternidades largas, sentimentos profundos, emoções fortes e naturais. Em certos momentos apetece-me, realmente, o sorriso dicreto e ecreto de uma violeta. Mas são pequenos desvios ou distracções na rota aberta dos meus passos.
Bem sei que esta carnificina que me rodeia concorreu largamente para a repressão dos meus sentimentos universais e cósmicos. O choque foi tão brutal, morreram-me tantas esperanças à nascença que. Como um caracol acossado, naturalmente fui fazendo da minha concha o meu mundo. Foram muitas derrotas junta, muitas desilusões seguidas. A minha sensibilidade não estava preparada para enfrentar uma catástrofe tão dura. Criado literàriamente à sombra e Prousts e de Joyces, a arte era para mim um descampado lúdico e pessoal de quermesse. Embora todo o meu ser tivesse protestado desde o início contra esta visão, paradisíaca e privativa, da beleza, a verdade é que nunca tive forças para rever inteiramente a minha posição. Ia cantando as minhas dores e as minhas alegrias, sobretudo as primeiras, às vezes a pensar nas dos outros, mas sem fazer finca-pé nessa solidariedade. Todos os Gides me tinham ensinado que os homens se dividiam em artistas e não artistas, e que os dois grupos não se podiam encontrar na vida. Nem o facto de eu ter certas ideias política me valeu. A lição era peremptória. Tanto quanto possível, o homem e o artista deviam viver dentro de mim em compartimentos estanques. Veio então a guerra. Não a que se contempla agora com os olhos esbugalhados, mas a que ninguém quis ver, e que começou por levar latinidade e cultura dentro de bombas incendiárias às palhotas selvagens da Abissínia… E o sofrimento de milhões de irmãos poderia ser a redenção, se não fosse o peso excessivo de ódio e crueldade que trazia. Espontâneamente, todo eu fui chamado para o campo da comunhão humana, para o terreno chão onde se encontram todos os que sabem que viver é sobretudo amar e ser amado. Mas o cântigo de fraternidade cobriu-se de lágrimas e manchou-se de nódoas de sarcasmo. Escrevi uma Lamentação, quando queria escrever uma libertação. Mas na alma de um poeta nunca se apaga de todo a luz duma esperança. A onda de sangue não foi capaz de submergir em mim uma sede contínua de amor universal. E eu sinto cada vez mais urgente a necessidade de pôr de acordo a minha poesia com a minha razão e o meu instinto.
Rampa e O outro livro de Job eram ferozes de mais, havia neles uma espécie de maceração desumana, de grelha em fogo onde a alma e o corpo se queimavam de desespero, e onde só cabia um homem de cada vez. Tributo e Abismo são tentativas vãs para sair dessa polé de tortura.
Os poemas líricos do Diário foram o primeiro vislumbre de uma beleza objectiva e serena. Mas não chegaram. Perderam-se pelo caminho, mudaram de sinal, e os grandes problemas, que continuavam à espera, vão encontrar na Lamentação uma terra carregada de desânimo e amargura.
E não é isso que eu quero, nem o que a vida quer. Basta de agonias e de masturbações! O mundo luta pela sua redenção, que está perto. Cantem os poetas esta nova manhã!

Miguel Torga, “Diário III”, pp. 70-73, 1954, Coimbra.

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