Coimbra,
11 de Julho de 1944
– É
preciso dar uma volta a esta
minha poesia ou desanda tudo numa choradeira de funeral. A depuração
lírica que tentei não bastou, como se viu. Os motivos foram-se
diluindo no regato da emoção, e qualquer expressão pura, que será
o êxtase dado numa palavra. Na rua tudo a desfazer-se em água, por
exemplo, e eu por dentro da janela a escrever – Chove! A exaltação
foi dando lugar em mim a uma morrinha subjectiva, e os grandes
motivos de inspiração olham-me de soslaio, desconfiados. Parece que
nem o sol me aquece, nem o frio me regela, nem as flores me entram
nos olhos. Sem falar nos semelhantes, que devem ler estes versos como
eu leio os Haikai japoneses.
Se eu ao menos tivesse paz neste lirismo doméstico, vá que não
vá. Mas não tenho. Acabo o poema, e fica-me o coração cheio de
fome. Os meus braços nasceram para abranger fraternidades largas,
sentimentos profundos, emoções fortes e naturais. Em certos
momentos apetece-me, realmente, o sorriso dicreto e ecreto de uma
violeta. Mas são pequenos desvios ou distracções na rota aberta
dos meus passos.
Bem
sei que esta carnificina que me rodeia concorreu largamente para a
repressão dos meus sentimentos universais e cósmicos. O choque foi
tão brutal, morreram-me tantas esperanças à nascença que. Como um
caracol acossado, naturalmente fui fazendo da minha concha o meu
mundo. Foram muitas derrotas junta, muitas desilusões seguidas. A
minha sensibilidade não estava preparada para enfrentar uma
catástrofe tão dura. Criado
literàriamente à sombra e Prousts e de Joyces, a arte era para mim
um descampado lúdico e pessoal de quermesse. Embora todo o meu ser
tivesse protestado desde o início contra esta visão, paradisíaca e
privativa, da beleza, a verdade é que nunca tive forças para rever
inteiramente a minha posição. Ia cantando as minhas dores e as
minhas alegrias, sobretudo as
primeiras, às vezes a pensar
nas dos outros, mas
sem fazer finca-pé nessa solidariedade. Todos os Gides me tinham
ensinado que os homens se dividiam em artistas e não artistas, e que
os dois grupos não se podiam encontrar na vida. Nem o facto de eu
ter certas ideias política me valeu. A lição era peremptória.
Tanto quanto possível, o homem e o artista deviam viver dentro de
mim em compartimentos estanques. Veio então a guerra. Não a que se
contempla agora com os olhos esbugalhados, mas a que ninguém quis
ver, e que começou por levar latinidade e cultura dentro de bombas
incendiárias às palhotas selvagens da Abissínia… E o sofrimento
de milhões de irmãos poderia ser a redenção, se não fosse o peso
excessivo de ódio e crueldade que trazia. Espontâneamente, todo eu
fui chamado para o campo da
comunhão humana, para o terreno chão onde se encontram todos os que
sabem que viver é sobretudo amar e ser amado. Mas o cântigo de
fraternidade cobriu-se de lágrimas e manchou-se de nódoas de
sarcasmo. Escrevi uma Lamentação,
quando queria escrever uma libertação. Mas na alma de um poeta
nunca se apaga de todo a luz duma esperança. A onda de sangue não
foi capaz de submergir em mim uma sede contínua de amor universal. E
eu sinto cada vez mais urgente a necessidade de pôr de acordo a
minha poesia com a minha razão e o meu instinto.
Rampa
e O outro livro de Job
eram ferozes de mais, havia neles uma espécie de maceração
desumana, de grelha em fogo onde a alma e o corpo se queimavam de
desespero, e onde só cabia um homem de cada vez. Tributo
e Abismo são
tentativas vãs para sair dessa polé de tortura.
Os
poemas líricos do Diário foram o primeiro vislumbre de uma beleza
objectiva e serena. Mas não chegaram. Perderam-se pelo caminho,
mudaram de sinal, e os grandes problemas, que continuavam à espera,
vão encontrar na Lamentação
uma terra carregada de desânimo e amargura.
E não é isso que eu quero, nem o que a vida quer. Basta de agonias
e de masturbações! O mundo luta pela sua redenção, que está
perto. Cantem os poetas esta nova manhã!
Miguel Torga, “Diário
III”, pp. 70-73, 1954, Coimbra.
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