Tunes, 14-3-26.
Querido
amigo:
Tenho-lhe
mandado vários bilhetes postais, e, de Argel, uma longa carta, que
não encontro notada no meu livro de lembranças e a cuja data me não
posso referir. Tudo lhe tem sido endereçado para o Museu. Entretanto
recebi (em Argel) a sua estimada de 10 de Janeiro, dirigida para
Oran, que muito agradeço.
A
minha viagem, tão auspiciosamente começada, transtornou-se um
pouco, mercê de uns antrazes que me apareceram no peito, e de que
ainda não estou inteiramente livre. O sofrimento tem sido grande,
mas nem por isso amaldiçoo a Providência, pois sem tal empacho a
minha felicidade seria completa, absoluta, paradisíaca, o que não é
próprio deste mundo. Acresce que as tremendas lancetadas com que os
médicos me têm mimoseado me estão arranjando um peito de herói,
cheio de gloriosas cicatrizes, o que talvez algum cronista ainda
aprovite para me atribuir feitos guerreiros durante a minha
pachorrenta presidência. E assim poderei passar à posteridade mais
bem enfeitado!
Embora
eu não tivesse plano definido de viagem, nem itinerário certo,
estava longe dos meus cálculos esta grande demora no Norte de
África, a que me obrigaram os tais antrazes. Porém com essa demora
tenho aproveitado em ver repousadamente e repetidamente monumentos e
sítios que visitados de passagem só deixam na memória impressões
confusas, mas que merecem contemplação repetida, para lhes
entrarmos um pouco na intimidade, de modo que nos fiquem de lembrança
como perpétuos elementos de beleza e de sonho. Nesse sentido a
Tunísia é talvez ainda mais variada e rica do que a Argélia, e as
três semanas que aqui tenho passado, apesar dos bichocos, marcam um
período luminoso, de magnífico prestígio estético, na minha vida
– mesmo entre os melhores períodos que ela conta.
Com
esta carta vão alguns cartões, reproduzindo obras de arte grega, da
melhor época, que estão no Museu Bardo (antiga e faustosa
residência do Bei, cercada de extensos jardins) e foram encontradas
no fundo do mar. Provinham elas, supõe-se, de um navio que Sila
carregara no Pireu, com o produto da sua rapina em Atenas, e eram
destinadas a ornar o seu palácio em Roma. Como todas as reproduções
que se encontram em postais no Norte da África francesa, estas são
péssimas, e indignas dos admiráveis originais, entre os quais
figuram umas estatuetas grotescas, de anões ou anoas dançarinas,
extraordinárias de carácter e originalidade. Tudo isto é de
aquisição recente e portanto posterior à época das minhas juvenis
peregrinações por estes sítios.
E
ponto, que a obrigação de escrever na cama, sobre uma pasta apoiada
nos joelhos – efeito dos antrazes – não me permite ser tão
extenso como me propunha ao começar esta carta.
Respeitos
e cumprimentos para sua mulher.
Do C.
M.
Teixeira-Gomes, “Cartas a Columbano”, pp.11-13, Portugália
Editora, 1957, Lisboa.