25/04/2018
20/04/2018
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S.
Martinho de Anta, 20 de Abril
de 1938 – Tirei
leite à cabra. Mas a minha mão já
não é a mão justa do lavrador que conhece a medida da sua fome.
Tirei tudo. Sequei tudo.
Deixei o cabrito sem ração. Meu pai olhou-me desanimado, e a cabra
também.
Miguel
Torga, “Diário I”, pág. 68, 1941, Coimbra.
12/04/2018
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Coimbra, 12 de Abril de 1939 – Riam-se lá, se quiserem, mas hoje, depois de reler Huxley, conclui que um dos maiores escritores que tenho lido é… o Júlio Dinis. Pondo de parte aquela santa Selma Lagerlöf, que até parece mentira, poucos como ele souberam até hoje encher a minha alma de paz e de ternura. Bem sei que ser escritor não é fazer a entronização do Sagrado Coração de Jesus pela província. Mas também não é fazer morrer desvairados à sombra dum quarteto de Beethoven.
Miguel
Torga, “Diário I”, pág. 94, 1941, Coimbra.
10/04/2018
06/04/2018
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Gerez,
6 de Abril de 1944 –
Ainda a leitura destes frades
nacionais, e a convicção cada vez mais provada de que a vida mental
portuguesa não tem crescimento. Parece que cada escritor, cada
artista, aqui, começa sempre de novo. Camilo é tão primário como
Fernão Lopes, e João de Deus tão ingénuo como D. Dinís. Nenhuma
geração, desde que Portugal é Portugal, pegou na herança que lhe
deixaram, e aumentou o capital. À gente de setenta, por exemplo,
clara, luminosa, racionalista, seguiu-se uma outra sebastianista
e brumosa. Onde se entronca Antero? Quem ergue hoje o facho que
brilhou nas mãos de Garrett? Perdem-se as raras mensagens que de
tempos a tempos aparecem, e cada alfobre literário é composto por
uns pobre pacóvios que vêm de Trás-os-Montes ou do Algarve, e que
entram a gatinhar nas letras ou no pensamento como se a arte e as
ideias estivessem ainda no Condado Portucalense. A cultura não chega
ao povo, e quem vem dele não a pode trazer, evidentemente. Isto não
é falta de respeito nem de carinho pelo que temos. Deus sabe a
ternura que me desperta uma das nossas páginas gordurosas de
prosa! É apenas uma verificação imparcial. Se pegamos numa
história da nossa literatura, lá temos o sábio Fr. Amador Arrais,
o inefável Heitor Pinto, o velho Manuel Bernardes, o nunca assaz
padre Vieira. Mas se tratarmos
duma história do nosso pensamento, é a mesma gente que nos aparece,
a ser pau para toda a colher. O mesmo nome serve para representar a
poesia, a novela, o teatro, a filosofia, a mística, a retórica,
tudo quanto Marta fiou. O pior é que Marta fiou uns tormentos que
arranham a alma de quem os veste! Já o romance fez todas as
experiências, tentou todos os caminhos, e o nosso ainda a choutar em
Fornos de Algodres! A coisa começou menos mal com Bernardim Ribeiro,
mas quem deu continuidade àquele nosso esmoer saudoso dos
sentimentos? Fazemos uma arte de impulsos, desarticulada dum todo,
anárquica e fragmentária. Também não queria um imbricamento tão
apertado como existe em certas terras, onde se está a ler Gide e a
entender Montaigne. Mas pedia uma linha de propósitos, uma
ramificação constante da mesma cepa comum, dando cada ramo as suas
flores e os seus frutos. Mas não. Por mais que a gente se esforce, o
que é certo é que em toda a nossa literatura não há
verdadeiramente uma obra que seja um facho a arder na grande noite da
humanidade. Onde temos nós coisa
que se compare a um D. Quixote, essa gigantesca coluna do génio mais
estremado que se viu? Camões? Muito bom, evidentemente, mas é
preciso mais. Ainda foi a nossa limitação que cantou ali. Os
Lusíadas! Logo no
título a nossa tacanhez se manifestou. Os outros chamaram às
epopeias deles Odisseias, Paraísos Perdidos, Divinas
Comédias, etc. Nomes que
agarram mundos. Nós ficámo-nos pelos lusíadas desta pobre
Lusitânia. Bem se sabe que o nacional português era na ocasião o
universal. Mas está justamente aí o limitado da visão. Nunca o
relato grandíloquo das façanhas dum povo podia constituir em si
matéria de eternidade. A isso era preciso juntar-lhe qualquer coisa
de mais simbólico e geral, uma síntese que ficasse para sempre a
ser um marco de imaginação e de poder criador. Quase tão ilegível
como os Lusíadas, a
Divina Comédia tem
contudo a visão assombrosa e apocalíptica do Inferno.
E sempre a humanidade há-de encontrar ali a concretização dum
terror, dum enigma que lhe devorou a fantasia. Nas piores páginas do
Quixote permanece vivo
o diálogo infindável e universal do espírito e
da matéria, e é isso que nele importa fundamentalmente. Ora Camões
não levantou o pano a nenhum mistério. Deu a volta ao mundo, como
Fernão de Magalhães, a cantar as nossas glórias. E as nossas
glórias passaram…
Mas
está bem, aceitemos Camões. E a seguir? A seguir vêm dois séculos
em que ninguém sabia o que era um verso! Lá aparece Garrett por fim
a estudar o romanceiro, a aprender de novo a magia das coisas, e
consegue escrever as Asas Brancas.
Mas, ao lado, Castilho continua a rimar arcàdicamente, e Herculano
permanece granítico, a fazer cruzes quebradas como um mau pedreiro.
Ora a arte e o pensamento implicam um afinamento contínuo
de processos, um saber cada vez mais sólido e desanuviado.
Perdendo-se a experiência passada, é natural que tenha de se
recomeçar com meios simples e primários. E o progresso é
impossível. De resto, esse crescer contínuo, além doutras
vantagens, evitava-nos o dissabor de certas adptações ou imitações
serem tão grosseiras e calvas. Aflitos, os nossos artistas e
pensadores, em certos momentos, começam a correr
para apanhar o comboio de uma actualização universal. E como vão
sem bagagem, nus e ingénuos, o resultado é no fim a roupa que
vestem em Paris tapar-lhes o melhor da personalidade.
É
claro que uma verificação
destas só é possível se puder servir o futuro. Mas é exactamente
no futuro que eu penso.
Só
há grandes literaturas onde o povo é permeável à cultura. Onde se
leu a Bíblia à
lareira durante centenas de anos, e onde as Mil e uma
Noites não destoam ao lado de
uma charrua. O nosso povo, que é donde sairam os nossos maiores,
precisa dum banho lustral de pão e de beleza. E então, sim! Então
cada escritor português que vier não terá apenas para descrever, e
grossamente, as pitorescas romarias da sua aldeia.
Miguel Torga, “Diário
III”, pp. 26-30, 1954, Coimbra.
05/04/2018
02/04/2018
30/03/2018
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(...)
Estes homens de São
Paulo,
todos iguais e
desiguais,
quando vivem dentro
dos meus olhos tão ricos,
parecem-me uns
macacos, uns macacos.
Mário
de Andrade, op cit “Paulicéia Desvairada”, Poesias
Completas / MárIo de Andrade. Edição Crítica de Diléa Zanotto
Manfio, Editora da Universidade de São Paulo. 1987.
28/03/2018
24/03/2018
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São
Martinho de Anta, 24 de Março
de 1940 –
Tentativa fustrada para ir às
Terras do Preste Baçal. Bragança é longe. Além disso, o
carro, apenas atravessou o distrito de Vila Real, pôs-se a refilar,
a refilar, até que parou de todo.
E
aí vou eu por aqueles ermos, doido, aos gritos, sob um sol africano,
a pedir gasolina às fragas e aos sobreiros. De regresso, com um
regador dela, ordenhada a seis quilómetros de distância
do fundo dum bidão providencial, alagado em água, dou de caras com
o motor esventrado pelo companheiro.
E aquela miséria mecânica, ali ao sol como os figos, tirou-me
quantas ilusões em nome da humanidade eu tinha posto nos cilindros e
nas rodas. Evidentemente que uma dedada singular imprimira no aço e
no latão a marca do primeiro arfar da vida. Mas a coisa era cosida
com parafusos a mais. Não havia naqueles ferros a interpenetração
de tudo, a mágica ligação de tudo, que faz dum corpo humano um
milagre de resistência e adaptação.Lá estavam realmente as causas
da paragem inesperada: a bóia solta, a gasolina entornada, e o
coração do carro sem alento. Mas um homem, mesmo estendido e aberto
numa mesa de pedra, era outra coisa. Não tinha nunca aquele ar
mesquinho e ridículo de brinquedo estragado.
Miguel
Torga, “Diário I”, pp. 139-140, 1941, Coimbra.
...
"Cacei-me com a boca na botija a pensar numa tristeza minha como se fosse um poeta. Mais um perigo a evitar, este de considerar a tristeza um tesouro particular de que se fala com respeito e ternura, Se não tomo cuidado perco-me completamente. Fico para aí escrever versos sobre os meus furunculozinhos mentais e a impingi-los aos outros como sendo obras duma importância fundamental."
Luis de Sttau Monteiro, “Um Homem Não Chora”, pp. 53-4, Ática, Lisboa, 1963.
21/03/2018
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“(…)
Eu feito homem da
gravata às riscas – Pois
invejo-lhe a sua posição. Também gostava de ser independente.
O Sr. Pomposo
– Pelo que lhe ouvi dizer pareceu-me que já o era.
Eu feito homem da
gravata às riscas – Sim…
dentro da medida do impossível…
O Sr. Pomposo
– Dentro da medida do possível, quer V. Ex.ª dizer…
Eu feito homem da
gravata às riscas – If you
say so.
O Sr. Pomposo
– Peço-lhe o especial favor de se não usar palavras estrangeiras.
Considero tal hábito antipatriótico. Uma pessoa esclarecida como V.
Ex.ª deve auxiliar-me nesta minha campanha em favor do
aportuguesamento da língua.
(…)
Felizmente
o elevador chegou ao fim da viagem. Saímos todos para a rua. Um
«chauffeur» bem fardado abre a porta do carro do sr. Pomposo e este
pergunta se nos pode ser útil ou se desejamos que nos leve de carro
a qualquer sítio.
– Por
amor de Deus, meu amigo. Moramos aqui mesmo. De qualquer forma nunca
entro num automóvel.
– Porquê?
– Porque
o automóvel não é uma invenção portuguesa. Trata-se dum
autêntico estrangeirismo. Pessoalmente sou pelos meios de transporte
tradicionais portugueses: a mula, o coche e a cadeirinha. V. Ex.ª,
que é uma pessoa esclarecida, deveria auxiliar-me na minha campanha
pelo aportuguesamento dos meios de transporte, pelo regresso às
velhas tradições que tão bem serviram os nossos avós. Não acha?
Luis
de Sttau Monteiro, “Um
Homem Não Chora”, pp. 32-35,
Ática, Lisboa, 1963.
17/03/2018
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Leiria,
17 de Março de 1941 –
Outro dia de cartas e
críticas do José Agostinho de Macedo, o melhor que saíu da mãos
do frade. Muito aprendeu o Camilo com este homem!
Pois
é verdade: o dito padre Lagosta tem missivas a uma freira trina e
pareceres sobre certos livros que são obras primas de prosa humoral.
Como coisa sanguínea, grossa, de ferroadas e arrotos, pouco se
escreveu em Portugal tão vivo e tão lapidar.
16/03/2018
15/03/2018
13/03/2018
INSCRIÇÕES ABERTAS...
INSCRIÇÕES ABERTAS
Informo que a partir de hoje dou um curso de “literatura” para
vitrinistas – designers com Windows em inglês.
Sabendo que livros em montras, de qualquer coisa, ficam sempre bem
(excepto de livrarias). No meu curso encorajo os alunos a serem mais
audazes. A colocarem livros, por exemplo, em montras de talhos. O
Duplo do Dostoievsky inserido numa unha de vaca é uma
ideia... E não me alongo mais porque abordar-se-á esta e outras
ideias no curso.
O que é importante salientar é que mesmo sendo possível comprar
livros a 1 euro o quilo é preciso saber o que trazer. Para depois
não se ir gastar dois ou três euros naqueles sacos super
resistentes, que aguentam vários quilos, só porque não existe
nenhuma certeza que trazem os livros certos para a execução da
montra. É um desperdício…
Àqueles que compram “monos” com dourados porque acham chique.
Eu ensino a distinguir por épocas e estilos.
Com
os melhores cumprimentos,
RAR, Porto, 13 de Março de 2018.
p.s. as inscriçṍes terminam
no final do mês.
12/03/2018
...
Soube
que V. vem por hábito aqui às 2 menos quarto. Não poderei estar.
Despeço-me de si até breve. Agradecido. Tenho pena de não ter
encontrado segunda vez com Mznuel de Oliveira.
Interessa-me
encontrá-lo na volta. Ele é indispensável no Cinema Novo
(português). Será na minha volta aqui a continuação da nossa
conversa. Peço-lhe me despeça dele. Um abraço. Vou contente com
tudo quanto aqui se passou comigo no Porto. A primeira semente está
posta na terra boa. Levo boas notícias da gente nova daqui para a
gente nova de lá.
Dois
sítios diferentes para gente igual é excelente. […]
Ainda
tenho este quarto de guardanapo para lhe pôr o meu serviço ao que
lhe preste lá ou onde seja. Não foi novidade absolutamente nenhuma
para mim que o Alberto Serpa é um fixe e que o é também para o
almada
Porto
15-11-50
“Desenho,
escrevo, esculpo, vitralizo, danço, teatralizo, cinematografizo e,
se a minha arte não falar por qualquer destas vozes, que havemos nós
de fazer? Façam de conta que eu já morri – e que deixei essas
obras póstumas…”
Almada
entrevistado por Luís de Oliveira
A Engomadeira |
10/03/2018
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“Coimbra,
10 de Março de 1943 – Dois
chineses na sua algaraviada, e esta ideia que me ocorreu:
Que,
apesar da dificuldade aparente, aprender a língua de Confúcio não
deve ser coisa de atrapalhar ninguém. O homem, embora às vezes
pareça o contrário, é modesto. Inventa dois mil caracteres, e
serve-se apenas de vinte ou trinta. Descobre a metafísica, o cálculo
diferencial, a lógica formal, a botânica, mas fala cotidianamente
de coisas triviais. De pão, de vinho e de pantufas.”
Miguel
Torga, "Diário II", pág. 136, Coimbra.
03/03/2018
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Leiria,
16 de Fevereiro de 1940
– É
um casal de relógios de parede, dos que sempre foram feios.
Pela manhã, haja o que houver, à mesma hora, passa ele por esta
rua para o escritório. Vai almoçar ao meio-dia. Volta à uma. E às
seis em ponto sai outra vez.
Nem
vale a pena dizer-lhe o nome. É só mais um dos milhões iguais que
há por este mundo, que o quotidiano determina, como o sol os
heliotrópicos. Não sei, é certo, o que se passa lá por dentro,
onde às vezes os hábitos e a monotonia doem muito. É possível que
tenha um sonho, que tenha um drama, que
tenha consciência
desta agonia universal de que ele próprio, queira ou não queira,
compartilha. Mas é possível também que não saiba nada disto, que
não sinta nada disto, que a sua vida interior seja um ir às nove
para o escritório e um sair às seis do escritório. Há tempos
apareceu casado. Mas viu-se logo que o casamento lhe acontecera,
como acontece às vezes apanhar
uma carga de água a caminho do emprego.
A mulher é uma pessoa baixa, pálida, com sobrancelhas muito
carregadas. Uma pura máquina de cozinha, que acende o lume às dez,
lava a loiça à uma e um quarto, limpa o fogão depois, esfrega a
seguir, e acende novamente o lume às cinco e meia.
Não namoram. Ele lembrou-se dela no intervalo do escritório, ela
já sabia que com alguém havia de ser, e um dia, sem saberem como,
aí estavam de casa e pucarinho, a comer o almoço. Uma vizinha, a
princípio, ainda tentou meter um bocadinho de graça naquilo. Mas
terra assim não dá mais. O escritório às nove, o lume acesso às
dez, e, fora disto, um vazio que seca tudo. Nem sequer uma cria!
– Filhos, para quê?!
Dizem isto, e nenhum deles estremece.
Tudo
quanto a vida consegue exprimir ali, em beleza, graça e perfume, que
se veja, está resumido num cravo enigmático e viçoso que ele usa
perpètuamente na lapela.
Miguel
Torga, “Diário I”, pp. 129-131, 1941, Coimbra.
28/02/2018
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“Coimbra,
28 de Fevereiro de 1942 – Fala-se da geração de 70. E logo
toda a gente recita o velho estribilho: Antero e Eça. De Oliveira
Martins, nada, claro está. Mas era de esperar. Numa terra de
patrioteiros e de maus leitores, uma obra assim tinha fatalmente de
ser esquecida. Antero e Eça, cada qual ao seu modo, lisonjearam este
complicado orgulho que nos mata. As abstracções e a poesia dum, os
romances e as ironias do outro caíram como sopa no mel dentro do
saco sem fundo da nossa ignorância e da nossa estultícia. Um
pensador-poeta, que só meia dúzia de lunáticos lê e medita, e um
romancista que faz sobretudo caricaturas – que não são,
evidentemente, parecidas com nenhum de nós, mas sim com o nosso
vizinho –, é claro que eram oiro sobre azul. Que diabo!, sempre
faz falta numa sociedade que se dá ares um filosofo-poeta e um
romancista! Mas um Oliveira Martins? Sim, um homem a verrumar-nos, a
analisar-nos colectivamente, sem poder fugir nenhum, a mostrar-nos à
Europa com a alma ainda a escorrer sangue e façanhas, intolerância
e fado?
O
caso era na verdade muito mais duro. E por isso, aquele que dos três
melhor nos conheceu, nos desfibrou, nos deu sínteses duma beleza que
não tem confronto com nada que se escreveu até hoje sobre esta
terra, fica apagado na escuridão da nossa cobardia.
Mas
façam aquilo que quiserem, que a verdade é só uma: o grande, o
eterno, o que sabia em termos lógicos e seguros quem nós éramos, e
teve a coragem de o dizer duma maneira maravilhosa e com as letras
todas – foi ele.
Miguel
Torga, “Diário
II” 3ª ed. Revista, pp. 30-31, Coimbra Editora, 1960.
27/02/2018
24/02/2018
...
Reportagem
5 novembro 2017
Texto de Irina Fernandes Fotografia de Pedro Loureiro
Trabalha como encadernador desde jovem. Vencer obstáculos tornou-se motivador.
Quinze livros de Eça de Queirós empilhados no balcão aguardam a vez. Ilídio olha para as obras do escritor português com tranquilidade. Poderia ser homem para desconfortos e nervosismos, mas não é. «A minha cliente ofereceu a colecção toda à filha e sou eu quem a está a encadernar».
Proprietário de um espaço especializado em encadernações, no Bairro Alto, Lisboa, Ilídio António, 65 anos, tem os olhos numa outra tarefa: o restauro de um livro com insígnia real. «Esta obra pertence à “Colecção dos Documentos, Estatutos e Memórias da Academia Real da História Portuguesa”. O meu cliente quer a encadernação fiel à época».
O peso e o número de folhas da obra são dignos de respeito, mas nem isso intimida Ilídio. «Isto é trabalho para durar uma semana», atira bem-disposto o profissional, enquanto vira o livro auxiliando-se do próprio peito.
Portador de uma doença física congénita – nasceu sem antebraço esquerdo – escolheu ser encadernador, diz, por amor à arte. «Faço todo o género de encadernações de livros, pastas de processos. O que me dá mais gozo é fazer encadernação em pele e restauros. Tem de se ter muita paciência, mas eu gosto muito».
Natural da Chamusca, distrito de Santarém, tinha 13 anos quando em 1966 se mudou para Lisboa para ingressar na Associação para Recuperação dos Deficientes de Mobilidade. «Uma pessoa conhecida dos patrões dos meus pais falou-lhes da escola e recomendou que eu fosse estudar para Alfama».
Em menino, e já homem, Ilídio António nunca permitiu que a deficiência tivesse voz ou lhe moldasse os sonhos. «A minha deficiência é de nascença. Sempre me conheci assim e, portanto, não estranho... No meu íntimo não sinto limitação». Ilídio sempre foi rapaz destemido com vontade de vencer na vida. «Eu corto um bife, descasco batatas, conduzo, jogo às cartas. Faço tudo o que faz uma pessoa vulgar», explica o encadernador profissional que, desde 1980, tem portas abertas na Rua da Vinha, N.º 13A, em Lisboa.
Na estrada e na vida a deficiência física nunca o perturbou. Foi, desde sempre, uma criança activa e um jovem optimista. «Quando era novo até costumava cavar a terra, sempre fiz de tudo! No meu interior e no meu pensamento, não me sinto diminuído em nada. Não me sinto inferiorizado».
Aos 19 anos viu ser-lhe oferecida uma prótese, mas acabou por colocá-la de parte. «Nem para conduzir me ajeito com aquilo. Foi o Estado português que me deu. Ainda cheguei a usá-la, mas só até certa idade… Para mim é um estorvo».
Tactear, recortar ou aparafusar são tarefas que poderiam ser impraticáveis, mas Ilídio fá-las com perfeição técnica, rigor e brio. «O que acontece é que tenho sempre de pensar antes da execução em si. E quando sinto alguma dificuldade a fazer alguma coisa sou ainda mais teimoso. Não desisto facilmente».
Exibindo um sorriso maroto, dá um exemplo prático. «Como é que espeto um prego numa tábua? É fácil. Agarro num furador, faço um ligeiro encosto para obter um buraco, meto lá o prego e depois é só martelar».
Com uma larga carteira de clientes, é reconhecido como profissional de excelência. «Tenho só um ou dois clientes de porta, a maioria aparece por recomendação de alguém. Por exemplo, o embaixador do Luxemburgo é meu cliente. Veio ter aqui comigo por indicação de outra pessoa quando ainda era assessor do Dr. Jorge Sampaio».
«De uma maneira ou de outra, consegue-se sempre fazer as coisas. Sempre. Quem não tem deficiência não tem de criar alternativas para desempenhar tarefas porque é capaz de as executar no imediato. Pessoas como eu têm sempre de pensar em primeiro lugar e encontrar a melhor solução. Mas a dificuldade aguça o engenho».
Garante que, ao longo da vida, nunca se sentiu discriminado. «Em termos do ofício não dou razão para isso. E o vasto leque de amigos que tenho… nunca me demonstrou isso, sempre me trataram com muito carinho», conta.
Homem de vitalidade ímpar e espírito empreendedor, Ilídio António, pai de um rapaz, Daniel Filipe, de 35 anos, não soma apenas sucessos como encadernador.
É também um homem bem-sucedido na área dos negócios. Ao longo dos anos foi investindo na compra e arrendamento de imóveis. «Inclinei-me para o cimento (risos). Comprei uma casa, depois outra e mais outra. Em vez de comprar acções meti-me nisto. Enfim, sou um homem das letras, mas também dos números», diz a rir-se.
Atento ao mundo que o rodeia, brilha igualmente no campo político. «Fui arrastado, há uns bons anos, para a politiquice. Desde 1994 que faço parte dos órgãos da junta de freguesia da Pontinha».
No passado teve também papel activo na área do desporto. «Sempre tive o hobby de conviver e isso levou-me a ser dirigente do clube da Pontinha, que é muito conhecido pelo torneio internacional de futebol infantil que que organiza. Exerci vários cargos, nomeadamente presidente da direcção e vice-presidente».
Firme nas palavras e na postura, Ilídio António deixa uma mensagem, em especial aos portadores de deficiência: «Exerçam as profissões que bem entendam, adequadas à vossa própria deficiência, porque com vontade e, acima de tudo, com gosto, tudo se consegue na vida».
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