28/06/2019
24/06/2019
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Coimbra,
24 de Junho de 1947 –
Acabar com a ideia da morte.
Integrarmo-nos na natureza, para que, aos horrores das penas
temporais, não juntemos ainda o castigo das eternas. O homem é, ao
cabo e ao resto, um animal. Sofra pois como animal, e não como deus.
Miguel Torga,
“Diário IV”,
pág.
45,
1953,
Coimbra.
17/06/2019
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Coimbra,
17 de Junho de 1946
– A
leitura do último volume do Journal
de Gide fez-me pensar mais uma vez no conteúdo do meu Diário.
Por que razão profunda eu o escrevo e publico, e que interesse
confessional ele tem que possa atrair e lisonjear aquele público que
se masturba na ilusão de ser em certas horas o confessor do artista?
A ideia de um diário íntimo, de tripas na mão, é uma ideia
romântica. Só uma mentalidade Byroniana pode conceber o absurdo de
se julgar polo do mundo, fulcro de todos os conflitos que interessam o
homem. Daí que nas próprias dores cuide resumir todas as dores
possíveis, e descreva uma insónia sua como a catástrofe máxima da
noite que decorreu. O masoquismo de Rosseau tem esta base. Ora se,
apesar de tudo, um romantismo residual existe necessàriamente em
cada artista (e emprego o termo, não como chancela de escola, mas
como marca de qualidade), o certo é que ninguém responsável se
coloca hoje numa posição tão ridícula.
Neste jornal de Gide, por exemplo, há um doseamento quase
terapêutico do íntimo e do público, de maneira que nem o primeiro
seja um estendal doméstico, nem o segundo uma lisa mistificação.
Passadas pela oficina, as mazelas vestiram-se de uma túnica
literária que as transfigura em motivos de arte e curiosidade.
No
meu Diário creio que
há muita literatura, também. É certo que nem sempre escrevi que
sou intransigente, duro, obsecado, capaz de uma lógica que toca a
desumanidade. Sei que nem sempre admiti que estava irritado com este
camarada e com aquele amigo, e que há em mim uma manha de cavador
que se sobrepõe ao desbragamento da confissão. Preferi
às vezes pôr um poema onde devia estar um insulto, e em certas
ocasiões acreditei mais no meu instinto sem provas do que na minha
razão com argumentos. Enchi com frequência uma página de lamúrias,
quando na verdade estava cheio de força e alegria.
Mas
quem é que não conhece estas minhas misérias à saciedade, e sabe
tão-pouco de artista que ignora a falta de sintonização do estado
receptivo com o estado de criação? De resto, um diário não é
necessàriamente um perpétuo mea culpa.
Pode ser um simples memento,
um exercício espiritual,
um caderno de apontamentos, tudo que se queira. Que nele haja sempre
um derrame de pecados e maceração, parece-me absurdo. Pela minha
parte, não sou delator, nem meu, nem dos outros. Não tenho nada a
esconder do leitor, a quem nunca vendo gato por lebre, mas quero ter
mão em mim, evitando-lhe o espectáculo de uma exibição
confrangedora. Há recantos do ser e da vida que precisam de
silêncio. No diário de Amiel foi preciso mondar muito, e mesmo
assim o que escreveu ficará sempre como um documento clínico,
história patológica de um tímido, e não obra literária,
aspiração de todo o criador.
Da minha pena de artista quero que saia apenas aquela intimidade que
me parece ser suficiente para matar a justa curiosidade do leitor
devotado, e me deixe ao abrigo de todas as bisbilhotices doentias.
Miguel Torga,
“Diário III”, pp.
172-174,
1954, Coimbra.
15/06/2019
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Coimbra,
15 de Junho de 1945
– O
primeiro pedreiro que quebrou o arco, esse é que eu queria conhecer…
A conversa girava à volta do problema da criação, no seu aspecto
individual e colectivo.
– Então mas a catedral não é precisamente uma prova
irrefutável da arte por equipas? E Shakespeare e Camões e Goethe
não se fartaram de construir sobre materiais carreados por outros?
– Embora. Entro na Sé Velha ou na Batalha, e digo: Aqui, o
génio de tudo isto está na padieira da porta. Quem arredondou ou
ogivou, esse é que tem a glória. Quanto ao Camões e aos outros,
por cada cena que já estava imaginada antes deles, menos um valor. E
tanto se me dá que me chamem individualista, como não. Enquanto não
aparecer uma escola de ginástica que fabrique um Nijinski, em arte
sou pelo dom e pela predestinação.
Miguel Torga, “Diário
III”, pág. 101, 1954, Coimbra.
07/06/2019
01/06/2019
22/05/2019
19/05/2019
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Coimbra,
19 de Maio de 1946 –
É quase inacreditável que
eu tenha nascido aqui! – dizia-me
há tempos um artista amigo, diante dos casebres serranos da sua
terra. E acrescentava: – Como isto me é estranho, hostil e
incompatível com o hotel em que vivo!
E eu lembro-me de vez em quando daquelas palavras, mas para as
aplicar precisamente ao contrário. Sentado a certas mesas, no meio
de certa gente, e enrodilhado em certas situações, digo eu:
– É quase inacreditável que eu esteja aqui! Como me é estranho,
hostil e oposto à choupana onde queria e devia viiver!
Miguel Torga,
“Diário III”, pág. 168,
1954, Coimbra.
18/05/2019
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Coimbra,
18 de Maio de 1947 –
A maior desgraça que pode
acontecer a um artista é começar pela literatura, em vez de começar
pela vida. Cora-se de vergonha, depois, diante das ingenuidades
impressas, que são cueiros sujos e pretendem ser livros. Só a
experiência, a dor e o trabalho trazem a dignidade que uma obra
literária exige. Mesmo que não se tenha génio, pode-se, então,
ter compostura. E seja qual for a duração do que se escreve, uma
coisa ao menos os vindouros poderão respeitar: a nobreza do que vão
ler. Mas poucos sabem esperar pela hora da maturação. E antes desse
livro curado pelo fumo da vida, vêem-se quase sempre meia dúzia de
outros, infantis, imbecis, esquemáticos como o bê-á-bá. Penitet
me – creio que é a fórmula
do arrependimento.
Miguel Torga,
“Diário IV”,
pág.
41,
1953,
Coimbra.
15/05/2019
14/05/2019
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É bom ver "resgatado" de um certo esquecimento um dos elementos da tertúlia, ou "tortúria", do Café Gelo. Foi escritor e violinista em "orquestras" de navios cruzeiros. Ainda por cima com a fotografia dele (o que é raro!). A foto é do Eduardo Gageiro o livro é da editora Ponto de Fuga.
Mais aqui
12/05/2019
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“Toda
a nossa actividade literária é de uma mesquinhez atroz. Nós não
temos o direito de escrever.
Falo de nós todos. Postos de parte os Tónios e as Marias dos
imbecis, que nos fica? O romance de gabinete, essa porcaria
«inteligente», essa masturbaçãozinha de impotentes. Ou então, o
romancezinho «psicológico», em que se trata o homem com desprezo,
se vem contar, com petulância, como é feito por dentro e dá entre
nós um génio em cada cinco anos, esse romancezinho feminino que
Proust, como «mulher» que era, põs em moda. Sim, que só mesmo uma
mulher podia inventar essa coscuvilhice íntima, essas histórias, e
històriazinhas cheias de pequenininhas observações, esses períodos
longos e complicados como folhos e rendas de uma boneca. Contra mim
falo, meu amigo, ah, contra mim falo. Mas não há outra saída. E
todavia a hora é da ardência, do sangue!”
Vergílio
Ferreira, “Cântigo
Final”, pág. 22, Portugália Editora, Lx, s/d. (escrito em Évora
em 1956).
Da série as “traições” da Musa…
Coimbra,
12 de Maio de 1947
POEMA
Foi
um poema casto que eu pedi
à
minha Musa.
Um
poema com bibes e meninas,
e
ternura no meio.
Mas
quando a imagem veio,
e
eu, deslumbrado, a olhava,
a
menina mais velha namorava,
e
as outras, ao lado, aprendiam
a
instintiva lição…
–
Minha Musa, o poema?
–
Este é o mesmo poema,
numa outra versão.
Miguel Torga,
“Diário IV”,
pág.
36,
1953,
Coimbra.
05/05/2019
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Coimbra,
5 de Maio de 1947 –
Esta rapariguinha vem
transtornada de Fátima. Tudo a deslumbrou. A multidão, o
espectáculo e o lugar. Sobretudo o lugar. Sentiu verdadeiramente que
havia nele qualquer coisa de sobrenatural, de divino.
E eu, então, falei-lhe de Roma. Contei-lhe que tanta emoção se
sentia nas Catacumbas, como no Coliseu, como debaixo de um arco de
triunfo. E visse o despropósito: nas Catacumbas, tinham vivido
cristãos; no Coliseu tinham lutado gladiadores com feras; e sob o
arco do triunfo tinham passado tiranos.
–
Concebo a sua fé, e respeito-a, – acrescentei. – Mas para que um
sítio qualquer fique carregado de uma electricidade emotiva, não é
preciso que Deus ou a sua Mãe venham cá a baixo. O homem é muito
capaz de uma façanha destas. Basta que um pastor ou um bispo se
resolvam a criar um mito. Então, as pedras transformam-se em
altares, e uma mangedoira no berço mágico de um redentor.
Miguel Torga,
“Diário IV”,
pág.
35,
1953,
Coimbra.
02/05/2019
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“Mas com o desenvolvimento da sociedade de consumo e dos meios de comunicação a vida das pessoas na Europa ia ficando cada vez mais igual em todo o lado e alguns sociólogos e historiadores achavam que reflectir em conceitos nacionais era algo que estava ultrapassado e diziam que a característica mais saliente da sociedade ocidental desenvovida era o cosmopolitismo e que no fundo não existia nada como Alemães ou Romenos ou Suecos e que tudo isso não passava de autoprojecções sobre estereótipos e preconceitos sociais. Mas outros sociólogos não estavam pelos ajustes e diziam que com o desenvolvimento da sociedade de consumo e dos meios de comunicação as pessoas foram perdendo a maior parte dos pontos de orientação e que de um modo paradoxal a comunidade nacional se tinha tornado mais importante que nunca. E que os estereótipos eram imprescindíveis para a preservação da memória colectiva e histórica sem a qual a sociedade ocidental perderia a sua unidade porque a unidade não podia ser heterogénea. E que a memória colectiva era uma interacção de compromisso entre o passado e o futuro e que os estereótipos e preconceitos tinham a vantagem de envelhecer mais devagar que a história e as novidades tecnológicas etc. e que representavam a última área e ao mesmo tempo a mais activa em que se preservava a identidade social. Os etnólogos e os antropólogos diziam que a historicidade podia assumir duas formas e que uma era própria das sociedades que queriam manter-se na sua existẽncia simbólica e a outra das sociedades que vão buscar à história a acção e a energia. E que tradicionalmente a sociedade ocidental fizera parte do segundo grupo mas que no momento actual talvez estivesse a meio de uma transição para o primeiro. E os filósofos diziam que a aceleração da história que ocorreu no século XX conduzia à indiferença relativamente ao tempo e ao desaparecimento da historicidade na sua forma tradicional e se devesse aparecer uma nova forma de historicidade era preciso refrear a história e alguns deles exigiam que à Declaração Universal dos Direitos Humanos fosse acrescentado o direito do Homem ao tempo.”
Patrik
Ouředník,
“Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 138-9 ,
Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.
30/04/2019
20/04/2019
19/04/2019
16/04/2019
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Uma das relações mais famosas entre escritores e gatos, provavelmente a mais famosa, é a de Samuel Johnson e o seu gato Hodge... No século XVIII... Há uma estátua em Londres (Gough Square), onde não faltam sequer as ostras sobre a capa do livro... Pois, segundo James Boswell's Life Of Dr. Samuel Johnson, o gato Hodge de Samuel Johnson era mimado e alimentado a ostras...
14/04/2019
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Coimbra, 14 de Abril de 1939 – (…) Crio em volta de mim um tal gelo, um vazio de tal modo hostil, que só quem é do meu meridiano me estende a mão. Os outros, rosnam, rosnam, mas vão passando de largo.
Não presta, nunca deu nada esta Coimbra, mas só aqui pude até hoje ser poeta à minha rica vontade.
Miguel
Torga, “Diário I”, pág. 95, 1941, Coimbra.
13/04/2019
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