07/08/2018

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Desmontagem e limpeza dos cadernos...




Após a desmontagem existem cadernos, que colados à lombada e uns aos outros, têm de ser removidos com mais cuidado. São o esqueleto do livro. E quase sempre necessitam de pequenos restauros de reforço.















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Monte Real, Agosto de 1938, Terça Que tristeza isto de a gente escrever! Secos como paus na vida, e sai-nos depois a ternura pelo bico da pena! Comigo é assim. E como ninguém me lê – ninguém dos que eu mais desejava que recebessem ternura de mim (minha Mãe, meu Pai, minha Irmã, uns pobres amigos rudes que tenho na minha terra e uns infelizes que encontro por este mundo) –, fica tudo em letra morta. Hoje todo eu fui uma sede ardente de abraçar um infeliz que calcorreava às apalpadelas as ruas escaroladas da Nazaré. Um dia como uma estrela, aquela maravilha ali para se ver, e o desgraçado cego de nascença! Mas o abraço saiu-me aqui, a tinta.

Miguel Torga, “Diário I”, pp. 71-72, 1941, Coimbra.

05/08/2018

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Monte Real, Agosto de 1938, Domingo Quatro horas num destes comboios portugueses que parecem arcas de Noé. Quatro horas arrumado entre uma canastra de sardinhas e a sua dona, a ouvir o que nunca cudei de ouvir. Quando cheguei ao fim, por fora, era pescador. Por dentro é que fui verificar. Mas não: – Olhei-me bem e, infelizmente, era o mesmo pobre-diabo de sempre, poeta, etc e tal, amarfanhado, mas com ares de Traga-Moiros, quase a pedir desculpa por não ser realmente o homem daquela Maria Cação.

Miguel Torga, “Diário I”, pp. 70-71, 1941, Coimbra.

04/08/2018

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Sete-Pedras, 4 de Agosto de 1942 – (…) Hoje, numa das minhas peregrinações por esta terra portuguesa, que eu amo como um namorado, fui descobrir numa quinta perdida entre milharais e ramadas uma mulherzinha que me fez saltar o coração no peito. A criatura tinha estrume nas mãos, uma rima de netos à volta, os dentes podres, e tudo quanto era preciso para ser dali; mas havia nela um nada indefinido e suspeito que me arrebitou a orelha. Reparei melhor. Penteava o cabelo sem risca, puxado ao alto, andava duma maneira particular, brilhava-lhe nos olhos um sorriso fino, irónico, e falava do Porto como do único sítio do mundo onde a gente se podia lavar à vontade. Com jeito, lá cheguei ao fim – a um cartão que dizia isto:

Carolina Michaëlis de Vasconcelos

Declara que M.R. a serviu durante anos,
É limpa, fiel, e sabe do seu ofício.


Miguel Torga, “Diário II” 3ª ed. Revista, pp. 48-49, Coimbra Editora, 1960.

03/08/2018

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Este livro que supostamente abordaria uma ética do caçador... Não tem nada a ver com isso! Não é sobre caça, não é sobre caçadores, cães ou espingardas... Não é sobre peças... Tirando a peça que é o autor...







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Coimbra, 3 de Agosto de 1939 Se lhe pudesse dizer o que a sua dispersão me aflige, me desanima…
Para mim o artista é uma espécie de animal obstinado, com antolhos, que anda a gemer a vida inteira à roda de um poço, sem ver mais nada, sem acreditar em mais nada, sem lhe doer mais nada.

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 100, 1941, Coimbra.

Western Spaghetti...


29/07/2018

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Coimbra, 29 de Julho de 1942 – Cada vez mais doente e mais só, a lutar contra este Portugal como um insecto contra a parede do frasco onde foi encerrado. Encho-me de coragem, faço das tripas coração, e subo um centímetro pelo muro acima. Mas escorrego e caio. Não há esforço nem garras que vençam isto. O frasco é de vidro grosso, e absolutamente liso.”
Miguel Torga, “Diário II” 3ª ed. Revista, pág. 36, Coimbra Editora, 1960.

26/07/2018

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Gerez, 26 de Julho de 1943 A máxima desilusão destas curas senti-a eu hoje ao ouvir um velhote dizer isto:
– Quando aqui vim pela primeira vez, as moscas mordiam-me nas pernas; agora mordem-me na careca.

Miguel Torga, “Diário III”, pág. 13, 1954, Coimbra.

22/07/2018

Domingo...



Fotografia de Ramón Gomez de la Serna quando editou cinco livros seus. Revista Buen Humor, 1922.
     
     “Ozori era o mais elegante entre todos, e recorria à elegância para seduzir Luma.
      Pôs o traje dos domingos. Quanto mais incivilizado for um povo, mais existe o traje dos domingos, a bengala dos domingos, a alma dos domingos.”

Ramón Gómez de la Serna, “Seis Novelas Falsas, Antígona-Editores Refractários, p.103, 2002. Trad. José Colaço Barreiros.