05/08/2013



Revista Pé de Cabra nº 9


em júbilo pela oportunidade que nos deram,
estamos reconhecidos aos donos da vida.
E em romaria lhes beijaremos os anéis.
nos altares onde estiverem

nós, os que adoramos viver,
sentimo-nos na obrigação de agradecer.

aos patrocinadores, colaboradores,
a todos quantos nos emprestaram o riso e o ranho
aos que nos entusiasmaram encorajaram enrabaram e
aos que ainda estão para vir                      agradecemos,


, a colaboração
ao haxixe de Marrocos
à febre de malta
ao vinho da casa
à heroína

que casa c’o cowboy
lá para o fim do filme

agradecemos
     ao fim do filme
     por ter acabado
     às sombras da tarde
     por fazerem sombra à tarde
     aos caminhos d’aldeia

     por cheirarem a merda de vaca
     ao senhor padre por ser virgem
     nem ele sabe a importância que isso tem
     nós também não

agradecemos
     ao white horse
     royal label
     aos pudins flan
     aos maravilhosos momentos proporcionados

     à nossa namorada
     as incontáveis fodas
     e as que demos sem contar

     à mulher-a-dias
     pela religiosidade com que nos lavou as cuecas
     pela afeição com que nos viu crescer
     pela idiotice de nunca querer ter sido mais nada

agradecemos
     ao presidente da câmara
     ter perdido as autárquicas
     ao partidos no poder
     e aos que ainda nos hão-de vir foder
     às sogras tios e primas
     a paciência de serem há tantos anos da família

agradecemos
     ao sol à praia aos pardais ao ar lavado
     e a todos os outros heróis mortos em combate
     e imortalizados amortalhados em grandiosas
     estátuas muros de betão

agradecemos
     aos morcões e aos estúpidos
     trissómicos e outros produtos das aberrações cromossómicas
     a beleza com que são horríveis
     é aí que vemos a infelicidade de que escapámos
     é aí que temos a noção do tamanho bonito de existirmos assim

agradecemos
     à dor aos sofrimentos inú
     meros com que bordamos os nossos dias
     porque nosso será o reino dos céus
     aos ladrões e às putas
     aos corcundas aos paralíticos
     pela sensação de imprevisto quando caminhamos na rua
     por florearem o quotidiano
     por exibirem conceitos tão próprios de vida

e juramos
     passar a cumprimentar toda a gente
     estar infinitamente gratos
     infinitamente gatos
     piolhos porcos morcegos
     infinitamente coisos despidos ao frio
     vestidos ao sol
     saias casacos camisas gabardines de vénus tanta
     roupa tanta por sobre chãos corpos galácticos

juramos
     estar infinitamente gratos
     a todos os casais felizes
     uniões duradouras bodas de prata
     por demonstrarem o conceito de felicidade emparedada
     o valor da paciência
     o infinito do esforço

agradecemos
     à arte à ciência
     à história à sociologia à política
     à religião
     darem emprego a tanta gente

agradecemos
     à tecnologia aos motores
     pelo mesmo motivo
     às fábricas aos computadores
     idem
     e a tudo quanto faça barulho cheire
     mal foda a vegetação os
     rios
     os sóis a aragem
     porque inevitavelmente somos a favor
     duma poluição avançada,
     não dessa como nos países do terceiro mundo
     que é feita de gente magrinha feia
     de ver.
     Defendemos uma verdadeira poluição
     pesada d’acordo com os padrões europeus

agradecemos
     à tropa,
     verdadeira escola d’homens
     e à escola
     tropa de meninos

agradecemos
     a cristo     marx     reich
     pela inutilidade prática das suas demonstrações
     e agradecemos a todos os quantos
     fizeram demonstrações cheias de inutilidade prática
     terem tido tanto êxito

     não nos esqueceremos igualmente dos nossos teóricos
     já lhes basta a infelicidade de serem
     teóricos
     de se esquecerem de comer
     tudo a bem dos teoremas teóricos
     explanações metafísicas
     conceitos epistemológicos
     não podemos claro deixar de
     sentir ternura pelos nossos teóricos

agradecemos
     às entidades divinas
     a força que nos dão a garra
     o querer e o tesão

     e agora não agradecemos a mais ninguém
     porque vamos comer um bom bife
     talvez ainda assim devêssemos agradecer
     à defunta vaca
     porque sempre em tudo o que façamos sem dúvida contraímos
     obrigação comer um bom
     bife
     e foder uma garrafa de verde
     o que é um acto poético

     de incomensurável estética


João Habitualmente
in Revista Pé de Cabra nº. 9,
Porto/Bairro da Pasteleira, pp.5-9,
Junho de 1989




Revista Pé de Cabra nº 1

Diz aquele poema do 'mancho as noites e troco os dias'!...


Nada na mão
algo na v’rilha
remancho as noites

e troto os dias
entre tabaco
viris bebidas
fraco mas forte
de muitas vidas.

(Que eu já dormi
co’as duas mães
e as duas filhas
que vão à missa
com três mantilhas.)
Bebo contigo
cerveja, whisky
p’ra que se veja
mais rubra a crista.


                               Alexandre O’Neill

16/07/2013

«ERA O INVERNO DE 69»...


MIGUEL MARTINS


Era o Inverno de 69.
Havia notícias como há sempre,
e suponho que fizesse frio.


A parentela acorria,
acotovelava-se ao redor da cama,
fingia estar feliz, ou talvez estivesse,
sabe Deus porquê. (Ao mesmo tempo,
abrigava-se da chuva.)


Nunca fui tão pequeno, nem tão pouco
parvo. A partir de então, industriaram-me
nas artes e ciências de estar vivo,
excepto a respiração, que é oferecida:


comer, roubar, fugir,
ser intramuros e existir na gleba,
e desistir
silenciosamente.


Sim. Foi, para mim, o Inverno dos Invernos.


E não há meio de acabar.




Resumo: A poesia em 2012 [de A metafísica das t-shirts brancas], org. de Armando Silva Carvalho, José Alberto Oliveira, Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas, Documenta/Fnac, Lisboa, 2013.


07/07/2013

...


«BRAZIL NIHIL»

Vermelho
E negro
A camiseta do Flamengo
A secar no Stendhal.



RAR VIII/2012

22/06/2013

Baby alone...


Super Flumina Babylonis


É que os génios não têm, não precisam de ter biografia. (Latino Coelho — Luís de Camões, Lisboa, 1880)
 

A ascensão da estreita escada escura, e tão a pino, com os degraus muito altos e cambaios, era, sempre que voltava a casa, uma tortura. À força de equilíbrios, meio encostado à parede, cuja cal já se esvaíra havia muito e até nas suas costas, e apoiando em viés uma das muletas no extremo oposto do degrau de cima, ia subindo cuidadosamente, num resfolegar de raiva pela lentidão. Toda a unção adquirida na conversa com os frades de S. Domingos, a cujas prelecções regularmente assistia, ficando depois a discretear com eles, se perdia naquele regresso a casa, ao fim da tarde, e mal se recompunha no repouso à janela, sentado no banquinho baixo, comido o caldo, e ruminando memórias e tristezas, enquanto a velha mãe prosseguia intermináveis arrumos pontuados de começos de conversa, a que respondia com sorrisos e distraídos monossílabos ou com frases secas em que ripostava mais a si próprio que a ela mesma. Às vezes, ela insistia, repetindo um comentário, por uma resposta sua. Mas mesmo essa insistência não significava comunicação efectiva: ela apenas pretendia tranquilizar a própria consciência e o seu dó do filho envelhecido e doente, que a vida destruíra, com algumas palavras que lhe dirigisse, simulando uma conversa que não o deixasse entregue, perigosamente, aos solitários pensamentos, onde é sabido que o Inimigo especialmente se insinua. E não era dos pensamentos que ele tinha medo, mas dos vazios cada vez maiores que, entre os pensamentos, se faziam. Quando ela lhe falava, e sobretudo quando ela insistia, precisava não se deixar distrair pelas palavras que ouvia: ou logo, no fio interrompido das ideias que continuamente deslizavam como um rio revolto, se abria um vácuo tenebroso, um vórtice sombrio em que flutuavam farrapos de versos e de coisas vistas, e, mais no fundo, como que uma pequenina porta iluminada, ou um vidro posto sobre estranhas águas em que nadavam esquisitos seres, e que parecia um olho fito nele, pestanejando ou palpitando, não sabia bem, talvez que, sim, nem mesmo um olho, mas uma transparência marinha como os reflexos das ondas ao luar. A pequenina porta, que lhe fazia vertigens, nem sempre se mostrava. Na maior parte das vezes não havia mais que o poço em que se debruçava, ansioso de que a portinha se abrisse e tremente até ao arrepio pela frialdade que dela vinha. Fechando os olhos, cerrando-os com bastante força, conseguia então afugentar aquelas visões» ou aquela visão, sempre a mesma, que sonhava acordado. Porque dos sonhos tinha ódio. Pensar, devanear, lembrar, imaginar, mesmo supor como tudo poderia ter sido numa vida triunfante e num outro mundo, não era sonho, mas a certeza de que existia, de que as coisas se arrumavam por sua vontade, que a ordem delas e do Mundo era um desconcerto que ele organizava mentalmente. Quando dormia, não sonhava nunca. Não eram sonhos as coisas que então via, mas a continuação do mesmo poder e da mesma certeza, ou então tentações do demónio, como diziam os padres. Mas as tentações ele conhecia bem. Não eram tentações da sua alma que Deus não deixaria que se perdesse nunca, a não ser naquele vórtice estranho onde parecia que Ele não penetrava. Como tentações? Que tentação era ter nos braços uma mulher que lhe escapara? Que tentação era matar, dormindo, um inimigo poderoso e inacessível? Que tentação era ver-se feliz num palácio, rico, respeitado, rodeado de servos e de admiradores, com uma mesa farta de bons petiscos e de bons vinhos, e com saúde e vigor para uns jogos de armas ou para uma bela amante pescada na rua, todos os dias uma diferente? Que tentação ver-se na Corte, com bom gibão de veludo e a gola de finas rendas, ouvindo os elogios dos seus pares, e recitando ou lendo o último poema escrito? Não eram tentações estas coisas, não, mas consolações piedosas da sua alma, a satisfação do que lhe fugira, a plenitude do que não tivera, a saciedade do que não bastara, a conquista do que jamais pudera ter sido seu. Pecado é sonhar com o futuro: desejar a mulher que se viu neste instante, querer com fúria o que é dado a outros, invejar furiosamente, como coisa que nos foi roubada, a felicidade alheia que está dançando, sem vergonha e sem respeito pela nossa miséria, diante dos nossos olhos que param a vê-la. Mas imaginar-se feliz no passado, com aquilo que fugidiamente o perpassara, e não fora nunca do tamanho da sua fome, não era tentação, não era um pecado, era, sim, a sua única riqueza, a sua única razão de esperar a morte, seco de amor, exangue de entusiasmos, descrente da pátria, destituído até da alegria de fazer versos. Os seus versos, agora, haviam-no abandonado. Haviam-se desfeito, como açúcar, no rio ininterrupto do pensamento, aonde antigamente flutuavam de súbito, como pedaços de ardente gelo, que um a um se atrelavam para dar um poema. E não tinha deles saudade alguma. Não fora nunca para si próprio que os escrevera. Para os outros, sim. Para que o ouvissem, para que o admirassem, para que o entendessem, para que vissem como tudo, na vida, tinha um sentido exacto que só ele era capaz de achar, uma arquitectura que não teria tido sem ele, uma beleza que não existe senão como a ideia que primeiro é pensada por quem é digno dela.
Empurrou a porta, e entrou. Contra o costume, a mãe não lhe apareceu, nem ele sentiu na casa ruído algum. Fechou a porta, foi até à mesa, e sentou-se na cadeira, encostando as muletas. Sentar-se era um alívio do cansaço, e uma nova tortura também. Mas a ausência da mãe, tão inabitual, tornou menos tortura a tortura de sentar-se ajeitando as partes inchadas e doloridas, acto que, com uma vergonha infinita, era obrigado a fazer diante dela, e que por isso não ajeitava bem, sentindo os olhos da velhinha fitos nele, horrorizados com a monstruosidade dos castigos reservados a quem se entrega aos pecados da carne, sem se manter puro como veio ao mundo. Ela, que, quando o marido voltava de uma viagem, só deixava que ele a beijasse depois de ter a certeza que não havia desembarcado em porto algum, desde muitos meses… Suspirando, sorriu para si mesmo. Na primeira viagem que fizera, ao embarcar-se para a Índia, ainda derrancado das orgias de noites consecutivas, destinadas a prevenir-se para tanto tempo de céu e mar e de conversa de homens, ele… Benzeu-se. Estas memórias eram tentações da carne. E nisso estava a diferença da poesia que escrevera na vida. Umas vezes escrevera na verdade para saber o que pensava. Mas outras vezes escrevera para possuir efectivamente, como, quando era moço, repetia de seguida o acto do amor, não porque desejasse, mas para sentir melhor que possuía, para ter a certeza de que possuía mesmo a marafona de que se esquecera durante a primeira vez. Agora, assim alquebrado e impotente, tudo o que pensava, se o escrevesse, lhe parecia que era só desta poesia que pecava contra o Santo Espírito, e que não era uma dádiva, uma oferta do seu corpo ao corpo em que entrava, mas uma rapina, uma avareza, uma maneira de devorar o próximo. E mesmo de tudo o que escrevera lhe parecia incerto que o tivesse sido abnegadamente, já que sempre ansiara pelo reconhecimento alheio, pelo triunfo, pela glória, pelos prémios, a ponto de contentar-se com o sorriso constrangido dos ignorantes a quem lia os poemas.
Levantou o olhar para a janela. No prédio fronteiro, viu o calafate sentado à mesa, que o observava amigavelmente por cima da escudela fumegante. Acenou-lhe de cabeça, e o outro fez com a mão um gesto largo, que terminou apontando o caldo numa oferta gentil. Correspondeu com um gesto como que de adeus, e desviou a vista. À varanda vieram encostar-se as duas crianças; não precisava de fitar Para saber. Nunca gostara de crianças, nunca pensara em tomar estado para tê-las suas. Talvez por isso mesmo é que tanto ou tudo da sua poesia ficara como aqueles filhos que não quisemos ter, e que depois se despegam de nós adivinhando um desapego de que nos arrependemos, mas que não deixa de ser um desapego mesmo arrependido. O amor para ele fora carne e espírito, tão carne, que nenhum espírito podia estar presente, e tão espírito, que nem toda a carne do mundo, usada dia e noite, chegava para contentá-lo. Até o fastio, que às vezes o afastava longamente de contactos carnais, era uma ardência insatisfeita, que se continha, suspensa e ameaçadora, à espera de esquecer que a carne era sempre igual, e os gestos do amor tão poucos que os sabia já de cor. Mas depois, ao fazê-los, era sempre, como na primeira vez, uma surpresa, uma ignorância curiosa, um receio tímido, uma insegurança doce, um pasmo juvenil, uma alegria nova, um encantamento frenético; era como na primeira iniciação, mas sem a perplexidade e a decepção de o amor não ser mais do que isso, quando a virtude do amor não está em ser mais do que é, mas em ser o prazer de não ser isso mesmo.
Novamente ergueu os olhos para a varanda fronteira. As crianças não estavam lá, e o homem, curvado para a escudela, comia o seu caldo. Aquele mistério da Encarnação, o frade hoje falara muito bem, explicando com eloquência o seu sentido. Mas o sentido da Encarnação não precisava ele que lho explicassem. Quem amara com a carne e com o pensamento como ele, quem escrevera do Amor como ele escrevera, e quem não gostara nunca de crianças, como ele, tinha da Encarnação uma experiência que o frade não tinha. Precisamente porque tudo se encarnara nele sem encarnar-se, e lhe devorara a própria carne, deixando-o aquele farrapo imundo que era agora, quem melhor sabia o que era a Encarnação? Ou, pelo menos, tanto quanto um homem pode sabê-lo? Sentir-se grávido de um poema, sentir-se fecundado por um relâmpago entrevisto, e ser um homem — é o mais que pode saber-se. Não o sabe a mulher que dá à luz, porque é delas dar à luz, às vezes sem ter amado. Não o sabe o homem que quer ter filhos, porque os pode fazer sem amor. Mas o poeta que praticou o amor até à destruição da carne, e escreveu poemas até que o espírito acha pouco a poesia, esse, sim, esse sabe o que Encarnação seja. Apenas, porém, o sabe. Mas não viveu a Encarnação, foi a Encarnação quem o viveu a ele. E é este o grande mistério, não o outro. E é a grande diferença entre um deus que se encarna, e o homem em quem a Encarnação se representa. Uma diferença que é, afinal, uma comédia, ou pode ser vista como uma comédia, porque todo o homem a quem isso aconteça é Anfitrião, um marido enganado pelo Júpiter que há nele.
Ficou vendo diante de si o palco iluminado, e as figuras declamando os versos. A porta rangeu, e os passinhos leves soaram atrás dele. A voz fininha e aguda começou a sua declamação desafinada.
— Esteve hoje cá o Padre Manuel à tua procura, e eu disse-lhe que hoje era dia de ires a São Domingos, e ele disse-me que não se tinha lembrado, e eu perguntei-lhe quando voltava, e ele respondeu que precisava perguntar-te do teu livro, mas não era pressa, voltava noutro dia, ou tu fosses procurá-lo amanhã ou depois. Que é que ele anda a fazer com o teu livro, sempre a perguntar-te coisas? Então um livro desses, que não é de coisas de Deus Nosso Senhor e da nossa santa religião, precisa que tu estejas sempre a explicar o que é isto e o que é aquilo, e a contar a tua vida, nem que ele fosse o teu evangelista? A Virgem Santíssima me perdoe, mas parece-me um grande pecado. E contar a vida às outras pessoas é um grande pecado da vaidade. A vida conta-se ao padre confessor, e faz-se a penitência que ele manda pelas nossas más palavras e obras, e pronto. E, à hora da morte, a gente conta o que ainda lembra ou fez entretanto, e o padre dá a absolvição, se fomos virtuosos e piedosos, e nunca faltámos aos nossos deveres para com Deus e a sua Igreja. Ah, veio também o criado do Senhor Rui Dias, do mando deste senhor, que tão teu amigo é, perguntar pela encomenda que te fez daquelas poesias d’el-rei David que Deus haja. E eu disse que tu ainda não acabaste e que logo acabas, e que tens trabalhado muito e até tens estudado com o Padre Manuel para que as palavras santas fiquem todas certas e nos seus lugares. E ele disse que o amo estava muito arreliado contigo, que havia mais que muitos meses que tinha feito a encomenda, e que tu não fazias nada, e que já tinha pago adiantado uma parte do trabalho. E eu disse que era verdade, que ele já tinha pago, mas que nestas coisas pagar adiantado alguma coisa é como dar o pano ao alfaiate, porque o alfaiate não pode fazer o gibão sem o pano, e tu não podias escrever sem comer. E disse-lhe que a tua tença estava atrasada e que não a pagavam, e que eu esperava muito da bondade do seu amo e do grande poder que lá tem no Paço que a tença fosse paga em dia, que bem a tinhas merecido de Sua Alteza pelos muitos serviços de teu pai que Deus tenha em descanso, e também pelos teus serviços, que se tinhas sido um rapaz sem juízo, e não tiveste sorte na vida, também eras um homem que escrevia livros, e sabias muitas coisas divinas e humanas, como o Senhor Padre Manuel me disse, e Frei Bartolomeu escreveu na licença que te deu…
— Frei Bartolomeu só disse que eu sabia muito de coisas humanas.
— Pois é. Porque saber de coisas divinas tu podias ter aprendido se tivesses estudado a valer, e tido juízo, que podias hoje até ser bispo e mais do que eles dois. Mas meteste-te com más mulheres e más companhias, e hoje é isso que se vê, e, em vez de seres tu a dar as licenças, és tu quem as vai pedir a eles. Se não fossem teus amigos e tu não lhes moesses a paciência, e não mostrasses como és um homem arrependido da má vida que teve, não ta davam, que isto de frades, Nossa Senhora me perdoe, se alguém me ouve. O teu pai é que se ria deles, e dizia que eram todos uns vadios, que só queriam comer e ter as mulheres dos outros. Abrenúncio, e por isso Deus o castigou com aquela desgraçada morte, que nem teve sepultura cristã. Mas tu podias ir procurar o Senhor Duque ou o Senhor D. Manuel, e lembrar-lhes que a tua tença está atrasada, e eles não há que não consigam, de tão grandes senhores que são, primos d’el-rei. Eu tive de sair para visitar a nossa comadre Joaquina que está outra vez com a sua dor e não tem ninguém que cuide dela, mas logo lhe disse que não podia demorar-me, porque hoje era dia de ires a São Domingos santificar a alma, que bem precisas, e logo voltavas com fome e querias a tua ceia, e ficavas aborrecido se eu não estivesse em casa quando chegasses, para te dar o caldo, e ela respondeu que não eras nenhuma criança que chorasse pelo peito da mãe, e eu disse-lhe que tu nunca tinhas chorado pelo peito da tua mãe, e é verdade também porque eu te dava logo de mamar mal tu abrias a boca para gritar. Mas que nunca choraste para mamar é a verdade, e só choravas depois, porque o meu leite era fraco e foi preciso trazer uma ama, e o teu pai queria que tu fosses criado com ama, porque não era da nossa condição que tu fosses criado ao peito de uma senhora como eu, esposa de um homem como ele, tudo gente de condição. Mas a condição que nós tínhamos era só o que ele ganhava, e Deus sabe como eu vivi depois que teu pai faltou e tu andavas lá por essas terras de gentios e de infiéis, por tanto tempo e eu sem saber se eras vivo ou morto, e só sabia quando chegavam as armadas e vinha alguém conhecido que me dava notícias tuas, e me dizia que tu tinhas ido para aqui e para ali, ou estavas não sei onde, que para mim todas aquelas Índias são o mesmo, e os nomes das terras são mesmo coisa do demónio, cruzes, de arrenegados para se entenderem. Muitas vezes eu pensava que me escrevias, mas tu nunca escrevias, e muitas pessoas me diziam que tu lá escrevias as cartas dos outros, que escrever bem tu sempre escreveste desde muito pequeno] mas punhas as coisas bonitas no papel para eles, e para mim nada. E eu ficava rezando a Sant'Ana e a Nossa Senhora e às vezes até mudava de santo para que nenhum se cansasse de me ouvir, sempre temendo que morresses nas guerras e nos naufrágios, ou dessas doenças que há lá, e a pensar que às vezes eu podia estar a rezar pela tua boa sorte e as rezas afinal servirem para te descontar os dias de Purgatório pelos teus pecados e leviandades, e o corpo que eu dei à luz estar comido dos peixes ou do gentio, sem sepultura cristã, como teu pobre pai que Deus haja e eu só soube tanto tempo depois. E a comadre Joaquina deu-me este pastel que aqui trago e que é de uma galinha que lhe deu a vizinha, ou uma meia galinha só, de que ela fez este pastel, e me disse que tinha outro e que te mandava este, mas queria que tu lhes escrevesses uma oração em verso a S. Crispim de que é muito devota, e eu disse que tu havias de escrever depois de comeres o pastel.
— Eu como o pastel, mas versos aos santos não faço.
— Deus meu, se alguém te ouve e pensa que tu não acreditas nos santos. A Santa Inquisição que nos livrou da maldade e da malícia dos inimigos da nossa Fé manda que se acredite nos santos, e eu bem sei que tu não acreditas, nunca te encomendas a eles, e é por pecado de orgulho, ao que me disse o Padre Manuel, quando eu lhe falei da minha aflição por tu não acreditares nos santos, e ele me respondeu que tu achas os santos pequenos de mais para ti, e não te contentas senão com Deus Nosso Senhor. Eu até fiquei arrepiada de pensar no perigo que é não ter um santo que nos proteja. Se não fossem o Senhor Duque e o Senhor D. Manuel e o Senhor Rui Dias e outros senhores assim, eu queria ver de que é que tu vivias, que el-rei nem saberia da tua existência. Deus me perdoe, mas não é que Deus não saiba de ti, porque ele sabe de todos nós e é um pai amantíssimo que não tira os olhos de nós. Mas está na sua divina majestade, ocupado em reger o Mundo, e nunca ninguém ganhou causas sem advogado. A mim a Senhora Sant'Ana nunca me desampara, eu nem sei o que seria de mim e de ti sem ela. Que este pastel é um milagre dela. Quando eu saí para visitar a comadre Joaquina, ia dizendo comigo que a Senhora Sant’Ana fizesse que eu não voltasse para casa com as mãos vazias e trouxesse algum petisco para o meu filho, e pedi mesmo um pastel de galinha, que era o mais certo, porque a comadre Joaquina sempre tem pastéis de galinha. E eu não prometi à Senhora Sant'Ana que tu farias o que a comadre pedisse, porque já te conheço, e não há contar contigo para coisa nenhuma que não seja comer o pastel. E por isso não faz mal que não faças os versos a S. Crispim, porque não foi promessa minha. A comadre é que disse que tu, se quisesses, podias fazer, que toda a gente dizia que eras muito bom dizedor, e que fazias logo os versos que te pediam. E eu respondi que isso seria dantes, porque agora tinhas uma encomenda muito boa, de grande rendimento, do Senhor Rui Dias, que nos fazia a honra de ser teu amigo, de pôr em verso os Salmos d’el-rei David que Deus haja, e que tu não escrevias nada, e até hoje o criado dele cá estivera a reclamar por causa do pagamento adiantado. Tu estás a dormir, tu não ouves o que eu digo? Come o teu caldo enquanto está quente e depois o pastel que é bem gostoso se for igual ao outro que a comadre tinha. Eu já ceei em casa dela, e estou sem apetite só de ver-te nesse estado, um rapaz tão forte e tão bonito como tu eras, que não havia moça que não se voltasse para te ver, nem homem que não se mordesse de inveja. E, quando o sol dava no teu cabelo, eu dizia comigo que o meu filho era como um rei com a coroa na cabeça, ou, Deus me perdoe, como um grande santo de resplendor dourado em dia de procissão. E ficava a ver-te ir pela rua abaixo, tão vaidoso que nem olhavas para trás, com a mão no punho da espada, e os passos tão firmes, Deus meu, que parecia que a terra era toda tua. Por essas e por outras é que as tuas desgraças começaram, com as arruaças e as brigas, e o mau feito, desgraça maior que todas, de acutilares o homem em Dia de Corpus Christi, aquele patife sem vergonha que te desgraçou e fez ir para a Índia e que merecia morrer em pecado, Deus me perdoe se sou eu quem peca. Está tão escuro já que vou acender a candeia. Mas o lume apagou-se e vou descer à vizinha a pedir-lhe lume. Deus Nosso Senhor tenha piedade de mim, velha e cansada, e com um filho homem, e sou eu quem tem de descer a escada para buscar o fogo que não há na minha casa. Abriu o olhar às trevas e ao silêncio. Conhecia tão bem os cantos da quadra, que era como se estivesse vendo a arca e o oratório com o raminho entalado, os quadrinhos de santos pendurados, a prateleira com os pratos em pé, a enxerga ao canto, onde ele dormia, a porta da alcova de sua mãe e a porta da cozinha. Via tudo com a mesma certeza e a mesma minúcia com que vira as naus do Gama navegando no mar, lá em baixo, vistas do Empíreo, com que vira Vénus abraçada a Júpiter e chorando, com que vira o Adamastor sair da nuvem grossa, com que vira o Veloso correndo pelo monte abaixo. Mas ele acutilara o Borges, porquê? Para que a vida lhe mudasse de rumo, para que ela tomasse um rumo de fatalidade, para que as índias lhe fossem impostas pela sua estrela, para que a sua estrela existisse. Erros meus, má fortuna, amor ardente, em minha perdição se conjuraram, os erros e a fortuna sobejaram, que para mim bastava amor somente. Perdição. Amor somente. Como a poesia é falsa e verdadeira. Como ela diz não dizendo, e é não dizendo que diz. Como da nossa alma não sabemos nada antes de escrevê-la, e como não é dela que sabemos depois de ter escrito. A perdição procura-se, como um homem se despe para banhar-se no mar, a modos que Leandro atravessando o Helesponto. E o amor somente bastaria, como o momento em que tudo se esquece, tudo desaparece, tudo se evapora, ao calor que abrasa e que só dura um instante mas um instante em que o tempo se suspende, se petrifica num espaço e numa forma, e todo o verdadeiro espaço foge velozmente, correndo pelos tempos fora até que é ele o tempo que se suspendeu. Apenas como isso, porque é uma imagem do supremo amor, aquele que existe além do tempo e do espaço, além das esferas, além daquele poço terrível. Além ou aquém? E se esse amor não fosse mais do que uma imagem, uma essência última da sua própria vida?
Estranhamente, no silêncio e no fluxo dos pensamentos, o poço abriu-se insólito e translúcido na sua profundeza negra, com as pequeninas formas flutuantes, e uma subia, subia, tomando cor e feições de uma medusa terrífica. Mas a porta rangeu, e uma vaga claridade fez emergirem os objectos, como formas planas, sem sombras na luz fraca. Os passinhos soaram leves.
— A vizinha diz que, no intervalo antes de tu chegares, quando eu já tinha saído, veio cá também aquele doutor que te pediu as poesias para aquele senhor que não tem nome cristão, o Senhor D. Leonis. Hoje veio cá todo o mundo, até parece o Dia de Juízo. E ele que vai de viagem ficou com muita pena de não te ver, e disse-lhe que te deixava muitas lembranças e que queria muito que tu melhorasses de saúde, e ela respondeu que tu estavas mesmo muito acabado, e ele disse que tu não acabavas nunca, porque tu eras um grande poeta, um dos maiores que já tinha havido no mundo, assim uma coisa como nem sei quem ele disse. E ela riu-se muito, e disse-lhe que o Senhor Padre Manuel também dizia o mesmo, e que era tudo bondade deles, porque isso de poesias nunca davam nada a ninguém. Só que a ti deram a tença, mas foi por causa do livro impresso e pelos muitos serviços a el-rei que o teu pai prestou em sua pobre vida, e tu também. E ele respondeu que era sempre assim que as coisas aconteciam, que a glória só vinha muito tarde, e que os prémios, quando eram dados, nunca vinham pelo que a gente merecia mais. Eu acho que isto é descrer da infinita bondade de Deus Nosso Senhor, e não é muito respeitoso para com Sua Alteza que te deu a tença. O que é preciso é que tu vás ao Paço reclamar que não te pagam a tempo e horas, que estou cansada de me arrastar até lá, e sempre me perguntam porque tu não vais, e o outro dia o tesoureiro até me disse que era tudo história, que não ias porque tinhas morrido, e eu, se queria receber, tinha de pedir a el-rei a tença em meu nome. E tu não vais porque tens esse pecado de orgulho, e não queres que te vejam de muletas, a pedir que te paguem o que te devem. Eu é que estou cansada, e vou-me deitar que não posso mais comigo. Tem cuidado com a candeia, não gastes muito azeite, que está pela hora da morte, e bem sabes que tenho medo dos fogos e podes adormecer aí na mesa, não era a primeira vez, e a candeia pegar fogo à tua papelada, e à casa, Deus nos acuda e Santa Bárbara nos proteja. Se voltar cá o criado do Senhor Rui Dias, o que é que lhe digo? Nem me respondes, estás a cair de sono em cima da mesa. Tem cuidado com a candeia… Ficou olhando as chispinhas delicadas que a candeia fazia, como uma auréola à volta de um centro ardente. Se o criado de Rui Dias lhe aparecesse, ou ele mesmo, diria que, noutro tempo, era mancebo, farto e namorado, querido e estimado, e cheio de muitos favores e mercês de amigos e damas, com que o calor poético se aumentava, e que agora não tinha espírito nem contentamento para nada… Seriam 365 versos, tantos quantos os dias do ano, como uma via sacra da vida, 73 quintilhas como…
Levantou-se impelido por uma ânsia que lhe cortava a respiração, uma tontura que multiplicava a pequenina luz da candeia. Apoiado à mesa, arrastou-se até à outra ponta, e daí deixou-se cair até à enxerga. Remexendo nela, tirou de um canto umas folhas de papel, o tinteirinho, com a pena enfiada no anel, que se habituara, desde o primeiro embarque, a guardar assim. De joelhos, com as dores neles e nas partes aumentando muito agudas e em picadas de que cerrava os dentes, veio até à mesa, pousou nela o que trazia, e levantou-se. Ficou um momento, de olhos fechados, arquejando. Já as palavras tumultuavam nele, confundidas com as outras, inúteis e mortas, da tradução que tentara. Eram como uma tremura que o percorria todo de arrepios, com hesitações leves, concentrando-se em pequenas zonas da pele. Debruçando-se da mesa a que se apoiava, puxou para o seu lado a cadeira, e caiu sentado nela. Sentia um suor frio escorrer-lhe pela testa, e, ao abrir o tinteiro, viu que as costas das mãos brilhavam perladas. Uma onda de alegria o inundou, em sacões ansiosos. Os olhos ardiam-lhe e era de lágrimas. Tudo falhara, tudo, e a própria poesia o abandonara, receosa dos seus olhos de alma penetrantes que viam o fundo das coisas. O poço com as formas flutuando. Mas era um grande poeta, transformava em poesia tudo o que tocava, mesmo a miséria, mesmo a amargura, mesmo o abandono da poesia. Tremendo todo, mas, com a mão muito firme, começou a escrever… Sobre os rios que vão de Babilónia a Sião assentado me achei… Riscou, desesperado. Recomeçou. Sobre os rios que vão por Babilónia me achei onde sentado chorei as lembranças de Sião e quanto nela passei…
E ficou escrevendo pela noite adiante.

Araraquara, 27 de Março de 1964.

Jorge de Sena

18/06/2013

...


o labirintodonte

o labirintodonte
não é uma ave
de emigração
como o porfirião.
nem um
mamífero petulante
como o elefante
nem um
réptil repelente
como a serpente.
o labirintodonte
anda de pé
como o
chimpanzé
e o saguí
e é o pretendente
de
la vache qui rit.
é um bicho
de seu natural pensativo
pois precisa
de pensar
para saber
que está vivo.



passa por mim aquele poemático que diz eu
sou o senhor dos gritos passa a galope ope ope ope
leva a musa no lombo e a musa leva nos al
forges um bombo

eu pus a minha musa no cavalo de pau e só de
longe a longe é que vou por trás a musa le
vanta-se um bocadinho e eu com o de
dinho vejo se tem ovo
pró menino papar todo

Alberto Pimenta

16/06/2013

Carry Down...



“Don Luis não tardou a chegar. Ouvi o seu carro alguns instantes mais tarde e ele entrou acompanhado por dois homens: um que se dizia mexicano, de quem me vinguei mais tarde em Portugal, e outro de que já não me lembro.
                Não sei durante quanto tempo ficámos todos imóveis – julgava tê-los presos com os meus olhos –; o mexicano ria-se, os outros permaneciam petrificados. Foi Don Luis, creio, que finalmente rompeu o encanto. Como a minha atenção tivesse diminuído momentaneamente, José e Mercedes lançaram-se sobre mim e arrastaram-me para fora do quarto. Seguiu-se então meia hora infernal: eu segurava José e Mercedes pelas mãos e já não conseguia larga-los, estávamos colados uns aos outros por uma força dominadora, ninguém podia falar nem mexer-se. Por meio de um violento sobressalto da vontade, consegui soltar as mãos das deles; toda a gente se pôs então a falar com uma rapidez terrível. Se eu pegava nas mãos deles, o silêncio reinava imediatamente e os olhares ficavam novamente pregados uns aos outros; isto durou talvez várias horas. Isto era para mim o resultado duma brincadeira infernal de Don Luis provando-me que, se eu quisesse ligar-me ou fraternizar com José e Mercedes, seríamos ligados fisicamente como irmãos siameses, e que, no caso contrário, o seu próprio poder reapossar-se-ia de mim para me destruir.
                O dia seguinte era sem dúvida domingo, pois ainda ouço o som dos sinos vindo do exterior e os ruídos de passos de cavalos que me deram uma terrível nostalgia e o desejo de fugir. Parecia-me impossível comunicar com o mundo exterior e perguntava-me quem quereria ajudar uma pessoa, vestida com um lençol e munida dum lápis, a chegar a Madrid.”

Leonora Carrington, “Em Baixo”, pp.30-31, Black Sun Editores, Lx, 1990.
Trad. (Carlos Leite)

11/06/2013

Wolf...


Luis de...




           Mana Mariquinhas,
amanhã, que é festa,
não irei à escola,
não irás à mestra
            Porás o corpete
e a saia mais bela,
a gola bordada,
touca e fina rede,
            e vestir-me-ão
a camisa fresca,
saio de lã fina,
meias de estamenha;
            se estiver bom tempo,
porei a monteira
que me deu na Páscoa
a avó, como prenda,
            e a fita rubra
com a medalha presa,
que o vizinho trouxe
quando foi à feira.
            Iremos à missa,
veremos a igreja,
dá-nos um cruzado
minha tia oleira,
            compramos com ele
(mas que ninguém veja)
tremoço e grão
prà nossa merenda;
            chegando a tardinha,
na nossa praceta,
brincarei ao touro,
e tu com bonecas,
            com as duas irmãs
Joana e Madalena
e as duas priminhas
Miquinhas e a vesga;
            e se a mãe quiser
dar as castanhetas
poderás à porta
dançar quanto queiras;
             e ao som do adufe
cantará Andrela:
Nada me valeram,
minha mãe, as ervas;
            e eu de papel
faço uma libré
de amoras tingida
pra que bem pareça,
            e uma carapuça
com muitas ameias;
porei por penacho
duas plumas negras
            do rabo do galo
corrido na cerca
pelo Carnaval
com laranjas lestas;
            numa longa cana
ponho uma bandeira
com duas borlas brancas
nas laçadas densas;
            e em meu cavalinho
ponho uma cabeça
de couro lavrado,
dois fios por rédeas;
            e entrarei na rua
fazendo piruetas
com outros do bairro,
uns quase quarenta.
            Jogaremos canas
perto da praceta
pra que Barbarinha
saia à rua e veja;
            Bárbara, a menina
filha da padeira,
a que me dá sempre
bolos com manteiga,
            porque algumas vezes
fazemos eu e ela
mesmo atrás da porta
nossas maroteiras.

Luis de Góngora

trad. de José Bento.

08/06/2013

68…



6.

Há quanto tempo! Cantámos. Fizémos amor. Os dois. Os vinte.
Tu amas-me? Não, não quero mais vinho. Beijei-te. Eu lembro-
-me. Tinhas medo? Eu tive. Quando o chui chamou o meu nome
e o rádio explodiu. Depois deixaram-nos passar.
E os degraus ainda estão lá, cheios de pó e de pontas de
cigarros afogadas em leite.
Escuta… bate. O meu coração rebentou como uma granada.
Fiquei presa pelos cabelos. E tu dormias. Nu.

Que sede esta me estrangula os olhos e me tira
a serenidade que plantaste em mim, ainda ontem…

p.21



8.

Nasci nos carris de mármore deste telhado de bruma.
Uma aranha me abriu os braços quentes de erva quei-
mada e me apontou o lugar. Ali! Não voltes ao barco
De hastes de musgo, o leão ainda está vivo.
Entrelaça todos os caminhos e morre com uma gota de luar nas mãos.
Não, esta abelha azul veio do meu ventre de água. Sai
daqui com um sorriso pálido nos olhos. Mas vem amanhã
ou depois. Colher as constelações que ainda não te dei.
Amanhã ou depois. Um paraíso perdido no meio do nevoeiro
e das balas.

p.25


Lena d’Água, “A Mar Te”, ed. Ulmeiro, Lx, 1984.

26/05/2013

Isso 'ravolta'...

Rui Knopfli


 «ARS POÉTICA 63»...

Como fazer versos?
                                     Sentar
numa cadeira à secretária,
papel à frente, caneta em punho.
Esperar. Esperar em vão. Esperar.
Esperar mais ainda. Esperar sempre.
Se é fumador, fumar então
antes, depois ou no decurso.
Se não, continuar a esperar.
Se ao fim de um certo tempo
o dito tempo exceder o tempo
que se achou ser justo esperar,
desistir. Para voltar em novas
arremetidas desesperadas e inúteis,
em dias alternados ou consecutivos.
Em dada altura, vai-se de avião,
e ela chega como no expresso
do Poeta de S. Martinho da Anta,
mais pobre, menos ritmada talvez
(não admira, vai-se de avião!),
mas vem, contudo, e é o que importa.
Pode começar por uma palavra bonita,
coisa rara e difícil. E arriscada:
nunca se sabe o que virá depois
 que pode ser bem pior e fracassar.
Há quem começa com irmãos,
o que tem vantagens inúmeras,
desde as garantias de escolas às conveniências
e conivências do correligionarismo fiel
que assegura um público bastante certo,
embora pouco amante da poesia
e, de ordinário, pouco esperto.
Desvantagens:
traz grandes dores de cabeça e pesadas
responsabilidades para com a humanidade
inteira e o Homem com H maiúsculo,
tarefa sempre ingente para quem começa.
O melhor ainda, o mais velhinho
e garantido é começar pela palavra
eu. Será umbilicalista, egoísta,
eu sei cá, mas é pequenina e humilde
 e não diz mais do que diz, não tem
mais responsabilidade do que as que convém
seu minúsculo e modesto universo. Será
pouco, mas é um mundo. Para quê
querer incendiar os astros se, dentro de nós,
ainda não acendemos todas as luzes?

Rui Knopfli

16/05/2013

«Be taken...»

Vitorino Nemésio
SER LEVADO

Tivesse eu sido o que não fui,
Hoje era o mesmo projectado
António, Pedro, Lopo, Rui,
Quatro semblantes num só estado.

Mas serei, ainda que a morte
Me faça amiba, verme, pó:
Agulha a Deus, íntimo norte,
Resto de tudo uma alma só.

De eterno levo o tempo em frente
Como o boi leva o feno visto:
Mas ele é rês, e em mim vai gente:
Levado embora, existo, existo!

Vitorino Nemésio in "O Verbo e a Morte ",1959.

14/05/2013

Ó il in can vas...

Manuel Ortiz de Zarate, Henri-Pierre Roché [de uniforme], Marie Vassilieff, Max Jacob e Picasso, diante do café La Rotonde, Montparnasse, Paris, 12 de Agosto. 1916. Foto de Jean Cocteau para ilustrar o livro de Max Jacob, “Le cornet à dés” (1917)]

05/05/2013

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Guillaume Apollinaire


A BRANCA NEVE


Os anjos os anjos no céu

Um está vestido de oficial
O outro faz de cozinheiro
Os restantes um coral

Belo oficial da cor do céu
A doce primavera depois do Natal
Condecorar-te-á com um belo sol
            Um belo sol

O cozinheiro depena os gansos
            Ah que caia a neve
            E eu tenha em breve
A minha bem-amada entre os meus braços

p.18 (Alcools)


O GATO


Na minha casa desejo ter
Uma mulher que imponha a sua razão
Um gato passeando por entre livros
E porque sem eles não posso viver
Amigos seja qual for a estação

p.20 (Le Bestiaire au Cortège d’Orphée)


AS JANELAS


Do vermelho ao verde morre o amarelo
Quando as araras cantam nos bosques natais
Destroços de pihis
Há que fazer um poema sobre um pássaro que
            tem uma só asa
Enviá-lo-emos telefonicamente
Traumatismo gigante
Faz com que os olhos se humedeçam
Eis aqui uma linda rapariga entre as jovens de Turim
O pobre rapaz assoava-se na sua gravata branca
Correrás a cortina
Abrirás depois a janela
Aranhas quando as mãos teciam a luz
Beleza palidez insondáveis violetas
Tentaremos em vão descansar
Começaremos à meia noite
Quando há tempo há liberdade
Caramujos Lota múltiplos sóis e o Ouriço do poente
Um velho par de sapatos amarelos em frente da
            janela
Torres
As torres são as ruas
Poços
Os poços são as praças
Árvores ocas que abrigam as cabritas vagabundas
Os Carneiros cantam árias agónicas
As Cabras castanhas
E o ganso uá-uá trompeteia no norte
Onde os caçadores de ratinhos
Raspam as peles
Diamante resplandecente
Vancouver
Onde o comboio branco de neve e de fogos
            nocturnos foge do inverno
Oh Paris
Do vermelho ao verde morre o amarelo
Paris Vancouver Hyéres Maintenon New York e
            as Antilhas
A janela abre-se como uma laranja
O belo Fruto da luz

pp. 24-25 (Calligrammes)



Guillaume Apollinaire nasceu em Roma, a 26 de Agosto de 1880. A sua mãe era de ascendência polaca. Aos vinte anos ei-lo em Paris, interessado pela actualidade literária revelando então simpatias anarquistas. Escreve, entretanto, novelas eróticas para sobreviver. O seu amor não correspondido está na base da «Canção do mal-amado». Entre os seus amigos em Paris nessa altura contam-se Picasso, Henry Rousseau, Henri Delaunay, André Salmon e Alfred Jarry. É em 1911, acusado de cumplicidade no roubo da Gioconda. Em 1912 sai a sua primeira recolha poética - «Alcools». Com o advento da Primeira Grande Guerra faz uma petição para ser incorporado no exército francês. Acaba por ser ferido na cabeça pela explosão de um obus. Em 1918 publica «A Linda Ruiva», uma espécie de testamento poético inspirado em Jacqueline Kolb, modelo de Picasso, com quem viria a casar-se. A 9 de Novembro 1918 sucumbe à gripe que assola Paris. É sepultado no cemitério Pére Lachaise. Tinha 38 anos.


Traduções de  Jorge de Sousa Braga in Guillaume Apolinaire, “O Século das Nuvens”, Hiena, Lisboa, 1989.

23/04/2013

O QUE DISSE CAMILLO SOBRE O LOBO...


AVE RARA


O poeta satyrico Antonio Lobo de Carvalho, fallecido em Lisboa aos 26 de Outubro de 1787, nasceu em Guimarães, não se sabe precisamente quando. Era filho illegitimo de fidalgo, e tinha em Villa Real parentes maternos que o educaram nas letras, consoante os frades da terra podiam ministrar-lh'as. O bom que os frades tinham não o aprendeu o rapaz. Era poeta de lingua farpada, da escóla de Gregorio de Mattos Guerra, o maior e mais sujo talento que deram as plagas de Santa Cruz, desde a cidade de Jequitinhonha até á cidade de Pindamonhamgaba.

Os cavalheiros villa-realenses andavam mordidos pelas vespas das suas trovas. Lobo não perdia lanço de os satyrisar.

Em uma procissão de Corpus-Christi, o senado da terra ordenou que S. Jorge fosse em andor e não em cavallo. A razão d'este descavalgamento não é bem liquida. Ha muitos mysterios que nunca se hão de dilucidar, mormente em cousas de cavalgaduras.
N'essa occasião, Antonio Lobo de Carvalho escreveu e divulgou o seguinte soneto:

    Patria de valentões, paiz guerreiro,
    Só tu, Villa Real! comtigo fallo!
    Vão Panças e Roldões jogar o talo,
    Ou vão na tua escóla andar primeiro.

    Quem ha que os teus aguente no terreiro,
    Se até S. Jorge foram desmontal-o!
    Pois, indo nas mais terras a cavallo,
    N'esta é capucho o santo cavalleiro!

    Nos triumphos de Baccho a villa armada
    Uns com brancos arnezes, outros tintos,
    As meretrizes levam de assaltada.

    Fez-lhe o entrudo os broqueis, compoz-lhe os cintos,
    E soltou um pendão co'esta fachada:
    «Todos são pobretões; mas mui distinctos.»

Os fidalgos da villa dilecta d'el-rei D. Diniz, que eram muitos, a julgar pelos brazões musgosos em que as andorinhas dormem de verão e as corujas assobiam de inverno--assanharam-se contra o poeta, fazendo-se representar no desforço pelos seus moxillas.

Espancado e fugitivo, foi parar a Lisboa Antonio Lobo, onde conhecia um tal Anacleto, que mais tarde foi juiz de fóra em Angeja.
A mãi do poeta era remediada de bens da fortuna, e quanto tinha quanto deu ao estouvanado filho, que nunca procurou modo de vida, nem bajulou os grandes, á imitação dos vates do seu tempo.

O duque de Cadaval, D. Miguel, ouvindo recitar versos de Antonio Lobo, disse aos seus criados que lh'o levassem ao palacio... para se divertir. Um lacaio de s. exc.^a procurou o poeta e deu conta do recado. Lobo mandou-o esperar, improvisou um soneto, e remetteu-o ao duque. É o mais galhardo feito de poeta do seculo XVIII. Dizia assim: 

    Se eu fôra, excelso duque, homem perito,
    Capinha, ferrador, cabelleireiro,
    De cães decurião ou cozinheiro,
    Em sopas mestre, em massas erudito:

    Se em letra antiga visse o que anda escripto
    Do vosso grande avô, João Primeiro,
    Que o gothico mostrasse ao mau caseiro;
    Que o tombo velho nunca está prescripto.

    N'este caso, senhor, a vossa graça
    Mais quizera alcançar, que ter mil burras,
    Do metal louro que se ri da traça.

    Mas como a sorte me tem dado surras,
    Não vou servir-vos só por não ter praça
    No livro mestre dos santões caturras.

Antonio Lobo indispoz-se em Lisboa com fidalgos e frades. A mezada que a mãi lhe enviava permittia-lhe dispensar-se das sympathias de clero e nobreza. Foi muito soado e mordido um soneto que elle dardejou contra um frade leigo, dado a libações de certa taverna. Era d'esta laia o poema:

    Borracha de estamenha, ôdre sarrento,
    Mil parabens te dou ao novo estado;
    Pois de estupido leigo a um jubilado
    Lente de rolhas vaes em largo vento.

    Se ha longos annos mettes fogo lento
    N'essa pança que é mãi de vinho aguado,
    Frei Bourdeaux será hoje o teu prelado,
    A adega d'esta casa o teu convento.

    Bebe, esponja claustral, té que a fumaça
    Das vasilhas de França encha as pichorras
    De umas bebadas tripas de outra raça;

    E, antes que os limos dos toneis escorras,
    Fuja o do Carmo, fuja o Leão da Graça,
    Que hoje o que reina é o Leão dos Borras.

Ao odio do clero e nobreza, ajuntou o poeta o odio do povo representado nas pessoas dos capellistas, acirrados por estes versos:

    Um rapaz a gritar como um cabrito
    Com saudades da mãi sobre o vallado,
    Que entre duas canastras vem deitado,
    Em burro de almocreve, ancioso e afflicto;

    Com rosario ao pescoço mui bonito,
    Descalço, de barrete e de cajado,
    C'um sacco á cinta, onde traz (coitado!)
    A sua côdda, o seu bacalhau frito.

    Posto a pé este misero mamote
    Ora cahe, ora treme, ora encordôa,
    Um lhe prega um sopapo, outro um calote.

    Pois esta figurinha ou má ou boa
    Faz qualquer capellista franchinote
    Quando vem do sertão para Lisboa.

N'esta vida de odios e irritações, viveu Antonio Lobo de Carvalho até aos cincoenta annos. Se nos merecesse credito o que João Bernardo da Rocha escreveu no Portuguez, tom. X, pag. 356, o atrevido vate haveriasido aleivosamente assassinado por ordem de um tio do marquez de Olhão, a quem o maldizente frechára com um soneto que abria assim:

    Ferrabras, Satanaz, Fernão Zarolho,
    Cruel harpia das que o inferno encerra...

Mas o snr. Innocencio Francisco da Silva, posto que não decida qual haja sido a morte do poeta, com justificados motivos desabona a affirmativa de João Bernardo da Rocha.

Eu tambem não sei. Ando n'essas pesquizas; e receio ir dar com elle no hospital, expirando envolto em gloria... de cataplasmas de linhaça.


CAMILLO CASTELLO BRANCO

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