Revista Pé de Cabra nº 9 |
em júbilo pela
oportunidade que nos deram,
estamos reconhecidos
aos donos da vida.
E em romaria lhes
beijaremos os anéis.
nos altares onde
estiverem
nós, os que adoramos viver,
sentimo-nos na obrigação de agradecer.
aos patrocinadores, colaboradores,
a todos quantos nos emprestaram o riso e o ranho
aos que nos entusiasmaram encorajaram enrabaram e
aos que ainda estão para vir agradecemos,
, a colaboração
ao haxixe de Marrocos
à febre de malta
ao vinho da casa
à heroína
que casa c’o cowboy
lá para o fim do filme
agradecemos
ao fim do filme
por ter acabado
às sombras da
tarde
por fazerem
sombra à tarde
aos caminhos
d’aldeia
por cheirarem a
merda de vaca
ao senhor padre
por ser virgem
nem ele sabe a
importância que isso tem
nós também não
agradecemos
ao white horse
royal label
aos pudins flan
aos maravilhosos
momentos proporcionados
à nossa namorada
as incontáveis
fodas
e as que demos
sem contar
à mulher-a-dias
pela
religiosidade com que nos lavou as cuecas
pela afeição com
que nos viu crescer
pela idiotice de
nunca querer ter sido mais nada
agradecemos
ao presidente da
câmara
ter perdido as
autárquicas
ao partidos no
poder
e aos que ainda
nos hão-de vir foder
às sogras tios e
primas
a paciência de
serem há tantos anos da família
agradecemos
ao sol à praia
aos pardais ao ar lavado
e a todos os
outros heróis mortos em combate
e imortalizados
amortalhados em grandiosas
estátuas muros de
betão
agradecemos
aos morcões e aos
estúpidos
trissómicos e
outros produtos das aberrações cromossómicas
a beleza com que
são horríveis
é aí que vemos a
infelicidade de que escapámos
é aí que temos a
noção do tamanho bonito de existirmos assim
agradecemos
à dor aos
sofrimentos inú
meros com que
bordamos os nossos dias
porque nosso será
o reino dos céus
aos ladrões e às
putas
aos corcundas aos
paralíticos
pela sensação de
imprevisto quando caminhamos na rua
por florearem o
quotidiano
por exibirem
conceitos tão próprios de vida
e juramos
passar a
cumprimentar toda a gente
estar
infinitamente gratos
infinitamente gatos
piolhos porcos
morcegos
infinitamente
coisos despidos ao frio
vestidos ao sol
saias casacos
camisas gabardines de vénus tanta
roupa tanta por
sobre chãos corpos galácticos
juramos
estar
infinitamente gratos
a todos os casais
felizes
uniões duradouras
bodas de prata
por demonstrarem
o conceito de felicidade emparedada
o valor da
paciência
o infinito do
esforço
agradecemos
à arte à ciência
à história à
sociologia à política
à religião
darem emprego a
tanta gente
agradecemos
à tecnologia aos
motores
pelo mesmo motivo
às fábricas aos
computadores
idem
e a tudo quanto
faça barulho cheire
mal foda a
vegetação os
rios
os sóis a aragem
porque inevitavelmente somos a favor
duma poluição
avançada,
não dessa como
nos países do terceiro mundo
que é feita de
gente magrinha feia
de ver.
Defendemos uma
verdadeira poluição
pesada d’acordo
com os padrões europeus
agradecemos
à tropa,
verdadeira escola
d’homens
e à escola
tropa de meninos
agradecemos
a cristo marx
reich
pela inutilidade
prática das suas demonstrações
e agradecemos a
todos os quantos
fizeram
demonstrações cheias de inutilidade prática
terem tido tanto
êxito
não nos
esqueceremos igualmente dos nossos teóricos
já lhes basta a
infelicidade de serem
teóricos
de se esquecerem
de comer
tudo a bem dos
teoremas teóricos
explanações
metafísicas
conceitos
epistemológicos
não podemos claro
deixar de
sentir ternura
pelos nossos teóricos
agradecemos
às entidades
divinas
a força que nos
dão a garra
o querer e o
tesão
e agora não
agradecemos a mais ninguém
porque vamos
comer um bom bife
talvez ainda
assim devêssemos agradecer
à defunta vaca
porque sempre em
tudo o que façamos sem dúvida contraímos
obrigação comer
um bom
bife
e foder uma
garrafa de verde
o que é um acto
poético
de incomensurável
estética
João Habitualmente
in Revista Pé de Cabra nº. 9,
Porto/Bairro da Pasteleira, pp.5-9,
Junho de 1989
Revista Pé de Cabra nº 1 |
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