23/04/2013

O QUE DISSE CAMILLO SOBRE O LOBO...


AVE RARA


O poeta satyrico Antonio Lobo de Carvalho, fallecido em Lisboa aos 26 de Outubro de 1787, nasceu em Guimarães, não se sabe precisamente quando. Era filho illegitimo de fidalgo, e tinha em Villa Real parentes maternos que o educaram nas letras, consoante os frades da terra podiam ministrar-lh'as. O bom que os frades tinham não o aprendeu o rapaz. Era poeta de lingua farpada, da escóla de Gregorio de Mattos Guerra, o maior e mais sujo talento que deram as plagas de Santa Cruz, desde a cidade de Jequitinhonha até á cidade de Pindamonhamgaba.

Os cavalheiros villa-realenses andavam mordidos pelas vespas das suas trovas. Lobo não perdia lanço de os satyrisar.

Em uma procissão de Corpus-Christi, o senado da terra ordenou que S. Jorge fosse em andor e não em cavallo. A razão d'este descavalgamento não é bem liquida. Ha muitos mysterios que nunca se hão de dilucidar, mormente em cousas de cavalgaduras.
N'essa occasião, Antonio Lobo de Carvalho escreveu e divulgou o seguinte soneto:

    Patria de valentões, paiz guerreiro,
    Só tu, Villa Real! comtigo fallo!
    Vão Panças e Roldões jogar o talo,
    Ou vão na tua escóla andar primeiro.

    Quem ha que os teus aguente no terreiro,
    Se até S. Jorge foram desmontal-o!
    Pois, indo nas mais terras a cavallo,
    N'esta é capucho o santo cavalleiro!

    Nos triumphos de Baccho a villa armada
    Uns com brancos arnezes, outros tintos,
    As meretrizes levam de assaltada.

    Fez-lhe o entrudo os broqueis, compoz-lhe os cintos,
    E soltou um pendão co'esta fachada:
    «Todos são pobretões; mas mui distinctos.»

Os fidalgos da villa dilecta d'el-rei D. Diniz, que eram muitos, a julgar pelos brazões musgosos em que as andorinhas dormem de verão e as corujas assobiam de inverno--assanharam-se contra o poeta, fazendo-se representar no desforço pelos seus moxillas.

Espancado e fugitivo, foi parar a Lisboa Antonio Lobo, onde conhecia um tal Anacleto, que mais tarde foi juiz de fóra em Angeja.
A mãi do poeta era remediada de bens da fortuna, e quanto tinha quanto deu ao estouvanado filho, que nunca procurou modo de vida, nem bajulou os grandes, á imitação dos vates do seu tempo.

O duque de Cadaval, D. Miguel, ouvindo recitar versos de Antonio Lobo, disse aos seus criados que lh'o levassem ao palacio... para se divertir. Um lacaio de s. exc.^a procurou o poeta e deu conta do recado. Lobo mandou-o esperar, improvisou um soneto, e remetteu-o ao duque. É o mais galhardo feito de poeta do seculo XVIII. Dizia assim: 

    Se eu fôra, excelso duque, homem perito,
    Capinha, ferrador, cabelleireiro,
    De cães decurião ou cozinheiro,
    Em sopas mestre, em massas erudito:

    Se em letra antiga visse o que anda escripto
    Do vosso grande avô, João Primeiro,
    Que o gothico mostrasse ao mau caseiro;
    Que o tombo velho nunca está prescripto.

    N'este caso, senhor, a vossa graça
    Mais quizera alcançar, que ter mil burras,
    Do metal louro que se ri da traça.

    Mas como a sorte me tem dado surras,
    Não vou servir-vos só por não ter praça
    No livro mestre dos santões caturras.

Antonio Lobo indispoz-se em Lisboa com fidalgos e frades. A mezada que a mãi lhe enviava permittia-lhe dispensar-se das sympathias de clero e nobreza. Foi muito soado e mordido um soneto que elle dardejou contra um frade leigo, dado a libações de certa taverna. Era d'esta laia o poema:

    Borracha de estamenha, ôdre sarrento,
    Mil parabens te dou ao novo estado;
    Pois de estupido leigo a um jubilado
    Lente de rolhas vaes em largo vento.

    Se ha longos annos mettes fogo lento
    N'essa pança que é mãi de vinho aguado,
    Frei Bourdeaux será hoje o teu prelado,
    A adega d'esta casa o teu convento.

    Bebe, esponja claustral, té que a fumaça
    Das vasilhas de França encha as pichorras
    De umas bebadas tripas de outra raça;

    E, antes que os limos dos toneis escorras,
    Fuja o do Carmo, fuja o Leão da Graça,
    Que hoje o que reina é o Leão dos Borras.

Ao odio do clero e nobreza, ajuntou o poeta o odio do povo representado nas pessoas dos capellistas, acirrados por estes versos:

    Um rapaz a gritar como um cabrito
    Com saudades da mãi sobre o vallado,
    Que entre duas canastras vem deitado,
    Em burro de almocreve, ancioso e afflicto;

    Com rosario ao pescoço mui bonito,
    Descalço, de barrete e de cajado,
    C'um sacco á cinta, onde traz (coitado!)
    A sua côdda, o seu bacalhau frito.

    Posto a pé este misero mamote
    Ora cahe, ora treme, ora encordôa,
    Um lhe prega um sopapo, outro um calote.

    Pois esta figurinha ou má ou boa
    Faz qualquer capellista franchinote
    Quando vem do sertão para Lisboa.

N'esta vida de odios e irritações, viveu Antonio Lobo de Carvalho até aos cincoenta annos. Se nos merecesse credito o que João Bernardo da Rocha escreveu no Portuguez, tom. X, pag. 356, o atrevido vate haveriasido aleivosamente assassinado por ordem de um tio do marquez de Olhão, a quem o maldizente frechára com um soneto que abria assim:

    Ferrabras, Satanaz, Fernão Zarolho,
    Cruel harpia das que o inferno encerra...

Mas o snr. Innocencio Francisco da Silva, posto que não decida qual haja sido a morte do poeta, com justificados motivos desabona a affirmativa de João Bernardo da Rocha.

Eu tambem não sei. Ando n'essas pesquizas; e receio ir dar com elle no hospital, expirando envolto em gloria... de cataplasmas de linhaça.


CAMILLO CASTELLO BRANCO

 ver mais: http://www.edicoes50kg.blogspot.pt/2013/04/40-alegrias-do-lobo_2546.html

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