10/05/2012

Oficinas II




Toma lá...




BOM E EXPRESSIVO

Acaba mal o teu verso,
mas fá-lo com um desígnio:
é um mal que não é mal
é lutar contra o bonito.

Vai-me a essas rimas que
tão bem desfecham e que
são o pão de ló dos tolos
e torce-lhes o pescoço,

tal como o outro pedia
se fizesse à eloquência,
e se houver um vossa excelência
que grite: – Não é poesia!,

diz-lhe que não, que não é,
que é topada, lixa três,
serração, vidro moído,
papel que se rasga ou pe-

dra que rola na pedra…
Mas também da rima «em cheio»
poderás tirar partido,
que a regra é não haver regra,

a não ser a de cada um,
com sua rima, seu ritmo,
não fazer bom e bonito,
mas fazer bom e expressivo…

Alexandre O’Neill in ‘Poemas com Endereço’, 1962.

Oficinas I















09/05/2012

a IX é XXX...


PIOLHO Revista de Poesia
«se banires a prostituição da sociedade, reduzes essa sociedade ao caos, por causa da luxúria insatisfeita» Santo Agostinho


COLABORAM NESTE NÚMERO:
Julião Sarmento (ilustrações), Sílvia C. Silva, Rui Zink, Ricardo Álvaro, Miguel Martins, António Pedro Ribeiro, Alexandra Antunes, Teixeira Moita, Raul Simões Pinto, Jorge Humberto Pereira, Miguel Sá Marques, António S. Oliveira, Fernando Esteves Pinto, Mário Augusto, José Emílio-Nelson, Rui Tinoco, Rui Azevedo Ribeiro, A. Dasilva O., Álvaro de Sousa Holstein, Frederico Taparelli e Fiona Pitt-Kethey


o nono Abril 2012
Coordenado por Sílvia C. Silva, Ricardo Álvaro, Meireles de Pinho (capa e arranjo gráfico),Fernando Guerreiro e A. Dasilva O.

Tiragem: 300 ex.
Edições Mortas www.edicoes-mortas.com
www.edicoes-mortas.blogspot.com
Black Sun editores



30/04/2012

Negativos e positivos...

in situ de Marçal dos Campos no espaço Campanhã - Porto, 2009. 

in situ de Marçal dos Campos no espaço Campanhã - Porto - Quando negativo!...



SETE OITAVAS EM PROSA SOBRE LUIZ DE CAMÕES
Luís Pignatelli

Luiz, poeta nosso, tens sido pau para toda a colher.
Vê lá tu como te têm pintado: de olho vazado, não se
sabe ainda se o esquerdo se o direito, obra parece da
moirama, em Ceuta, quando nostálgico pensavas na tua,
nossa  Pátria tão amada, um ramo de loureiro na cabeça,
semelhando os que se põem às portas das casas de
pasto, como se a tua Glória tivesse que ser comprovada
com qualquer penduricalho académico!

Vieram depois as fitas, ó meu deus do celulóide!, e
foram as borradas que se viram: engatatão de tricanas
no Mondego, ou arrebenta, em Lisboa, para gáudio
de gentes de farto patilhame, ou Amálias cantarem, es-
tornicando os dedinhos no sentimento franjado dos
sofisticados merinos, que raio de pachorra temos tido, ó
Luiz nosso, com estes malandrins, que ainda há muitos,
para enterrar de vez, mijar-lhes em cima.

Também o martírio da escola havia de chegar, para grande
 susto das crianças que éramos: esse rosário de ora-
ções a dividir, o olho do professor brilhando, rapace, mais a
cacafonia da almaminha, mai-la chateza das sabenças dos
mestres Pimpões, ódio era o que tínhamos por ti, ó Luiz
nosso, daí nada sabermos do teu nascimento, da tua vida,
das paixões tuas, mágoas sem remédio, contentamentos
descontentes.

É claro que medalhas, medalhinhas, medalhonas, sempre
as tiveste, e discursos, presidentes, artesanatos, edições
de bolso (é ver o nosso Leão que tão bem se tem repimpa-
do nesta matéria), não te faltaram nunca, mas do teu na-
dar ensinando o amor da Pátria, tão desgraçada ainda.
Quem tem dado por isso? Que espécie de Povo te tem
lido? No largo de teu nome em bronze te deixaram, para
a deletéria defecção de turísticas pombas.

Só muito tarde descobrimos, meu fintador do real, a for-
ma como passaste a perna a esses padrecas que te queri-
am dar uma fogueirinha, mas dos rigores do Inverno sa-
bias tu, meu sefardim, até que naquela triste e leda ma-
drugada te foste desta Casa, meu forçado, lírico emigran-
te, dinheiros que mandaste, versos de ouro, quem os dizi-
mou? Ao Povo que te amava, que disseram? Sabiam teu cora-
ção ferido, ferida corça, os dizimados bosques?

Bonito moço o foste sempre, qual ceguinho, qual quê!
Sabias tanto de geografia, artes de marear, que até cha-
teava, por isso é que não te enganaste no caminho, e a
nado, o que é ainda mais difícil, meu recordista mundial,
mas quanto a direitos de autor, nicles! Os safados
pensavam que não havíamos de ter nunca um Francisco Re-
belo, uma Sociedade de Autores, mas enganaram-se, os ar-
ganazes, acabou-se-lhes a mama.

Os que só te queriam comemorativo, estão lixados, vais
ser de todos os dias, acabaram-se os cárceres dourados
dessa gentalha, as quetes, a lágrima oficial para o poeta
desgraçadinho, já te temos no nosso lado,
aliás como sempre teu desejo, e esta é a
primeira Manife tua, coisa digna e grande de ser vista,
e a reacção não passará, , vê só como gritam o teu no-
me, Luiz amigo, Poeta nosso, o Povo está contigo.

In Revista Camões 2/3, dir. Óscar Lopes, Editorial Caminho, Lx, 1980.


Instalação de Marçal dos Campos, Rua Antero de Quental, Porto



Negativo da Instalação de Marçal , Rua de Antero de Quental, Porto.



29/04/2012

Uma tipografia em Torre de Moncorvo...

esta imagem pode ser aumentada


Anúncio publicitário da Tipographia do jornal O Moncorvense, de 28.10.1894, sita na Rua do Cano (actual R. Visconde de Vila Maior)




Anúncio da Typographia de Accacio de Sousa Pennas, sita no Largo General Claudino, em Torre de Moncorvo, publicado no jornal Torre de Moncorvo, cerca do ano 1900.

"Estamos a falar, como já perceberam, da nobre arte da tipografia, que regressou a Torre de Moncorvo com a Tipografia Torre, por volta de 1978, localizada no Largo Diogo de Sá, pela mão da sociedade Irmãos Afectos (“retornados” de Moçambique), tendo como tipógrafo o Sr. José Martins (conhecido por Zé Carmachinho, devido a uma alcunha familiar), também ele “retornado” de África.

A tipografia Torre foi depois adquirida por um empresário do sector, sedeado em Mirandela, que para aqui destacou como funcionário o Sr. Tony, o qual viria a transferir a tipografia para o local onde ainda se encontra, na rua Visconde de Vila Maior, mudando-lhe o nome para Tipografia Globo. Entretanto, antes ainda dessa transferência, entrou para a tipografia o Sr. Manuel Barros, actual proprietário (desde 1992), trabalhando com ele outro profissional, o Sr. Morais, também já com longos anos de casa.

Logótipo actual da Tipografia Globo.


Possuindo duas máquinas impressoras Heidelberg, datáveis da 2ª. metade dos anos 50 do século XX, a tipografia Globo utiliza ainda os métodos de composição tipográfica no exacto sentido da palavra, ou seja, utilizando “tipos” (caracteres ou letras às avessas, moldadas em ligas de chumbo e níquel), os quais são alinhados manualmente, num trabalho de perícia e paciência, requerendo uma boa visão. Feitos os ajustamentos da composição dentro de um aro em ferro chamado “rama”, e metido o conjunto na chamada “almofada” da impressora, é um verdadeiro espectáculo ver e ouvir o matraqueado da máquina, puxando as folhas de papel, atirando-as contra a “almofada” onde são tintadas, e arrumando-as lateralmente. É o momento sublime, quando a tipografia se carrega de uma atmosfera mágica, envolta no característico cheirinho a tinta fresca…



Sr. Manuel Barros, inserindo a "chapa" na máquina impressora.

Há depois os “acabamentos” como os cortes em guilhotina eléctrica, a agrafagem, em máquina também eléctrica. Aqui se imprimem sobretudo livros de facturas, ou outros impressos de escrituração comercial, cartazes, folhetos, etc..

No dia 18 de Fevereiro de 2008, aproveitando o ensejo de um trabalho jornalístico realizado pela repórter e jornalista Carla Gonçalves (do Mensageiro Notícias) uma equipa do PARM procedeu a um registo fotográfico e em vídeo digital do funcionamento desta tipografia, através do depoimento dos Srs. Manuel Barros e Morais, a quem agradecemos esta oportunidade de perscrutar uma arte fascinante, embora em risco de soçobrar por falta de rendimento suficiente. Por este motivo, apelamos aos nossos sócios para que divulguem e encaminhem trabalhos para a tipografia Globo, porque ela é um património vivo da nossa vila e, como tal, deveria ser classificada como Valor Concelhio."



Sr. Morais organizando os "tipos" no momento da "composição".

RETIRADO DAQUI

28/04/2012

ó Coimbra...




Coimbra
Coimbra universitária, bem entendido!
Odeio-te!
finges de cabeça
e não és senão o lugar dela.
A única vez que me referi a Coimbra disse:
os palermas de Coimbra
É a minha opinião.
A única pessoa de interesse que conheci em Coimbra
foi a dona de uma casa de mulheres
todos os outros eram cultos
admiravam os grandes vultos
e desconheciam os pequenos
como se estes não fossem uma projecção dos grandes.
Coimbra
Coimbra universitária, bem entendido!
Tu consegues não ser estúpida
nem inteligente
és Coimbra.
Tamanha identificação urbana
jamais no mundo se viu.

José de Almada Negreiros in “Poemas”, p.129, Assírio & Alvim, Lx, 2ªed., 2005.


COIMBRA EM FORMATO POSTAL

E então
lá tive numa pasta azuis as fitas
de escolar de Letras e não valiam nada
não prestavam pra nada nesse ano de ‘59
não torciam o pescoço à morrinha herdada de trás
“ai adeus acabaram-se os dias”
cantei tão pouco e só em tom menor

eu ensurdecia nas aulas durante o Inverno
o focinho metido na samarra um vago
olho emergindo como do poço uma rã
tanto sono que dava o Hölderlin em tudesco de mestre!
e às esconsas lia o meu Qui je fus

Coimbra tapada pela capa da névoa
Um rastro de cegonhas sobre as ínsuas
Chegam barcos da lenha de Penacova
Limoeiros floridos a quinta
do avô com sardões nos muros de pedra solta

ai adeus formado em Germânicas este rapaz
o que sabe ele da vida este rapaz? Coisa nenhuma
chora baba e ranho à menção puizia
e escrevi cartas de amor sempre solenes
e a melancolia é uma doença nefasta

eu tinha uma janela no último andar
de onde o Senhor da Serra em tardes claras
e traduzi muito verso pré-romântico para as colegas
’59 confesso não me ensinou nada de nada
belas são as narcejas nos arrozais quando voam sobre
                um fundo de sol como o cobre batido

Fernando Assis Pacheco in ‘Variações em Sousa’, pp. 16-17.


LOUVOR DO BAIRRO DOS OLIVAIS

Não tive nunca nada a ver com as
guitarras estudantes: eu vivia
num lento bairro da periferia
onde a chuva apagava os passos das

pessoas de regresso a suas casas
fazia compras na mercearia
e algum livro mais forte que então lia
já era para mim como um par d’asas

amigos vinham ver-me que eu servia
de ponche ou de Madeira malvasia
para soltar as línguas livremente

um que bramava um outro que dormia
eu abria a janela e só dizia
ao menos estas ruas têm gente

Fernando Assis Pacheco in ‘Variações em Sousa’, p.11.

27/04/2012

Amanhã, Sábado, dia 28 de Abril:



Apresentação e lançamento do primeiro número da revista 'Cão Celeste'. Direcção de Inês Dias e Manuel de Freitas. Coordenação Gráfica de Luís Henriques. No Bartleby Bar às 22h30.


Editorial
Do Editorial: " Alguém tem de perder de longe em longe.
                                    Alguém.

JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE


Algures entre o jornal e a revista, o Cão Celeste pretende apenas ganir, ladrar com raiva ou paixão, amar ou odiar sem peias aquilo que o mundo quotidianamente lhe dá a ver. De seis em seis meses, os leitores interessados terão notícias nossas.        
Mas não somos um grupo, não obedecemos a  qualquer cartilha literária ou política que possa servir para classificação geral. Este é, antes de mais, um espaço de encontro entre pessoas que ainda consideram urgente o livre exercício da crítica, do pensamento ou da revolta. E é justamente em nome dessa precária liberdade que prescindimos de qualquer apoio exterior, passível de condicionar os nosso gestos.
Repudiamos, de modo inequívoco, o acordo ortográfico pretensamente em vigor - e fazemos questão de sublinhar, sempre que possível, essa repulsa. Mas temos outros ódios, claro - e, felizmente, afectos e devoções não menos intensos. Apesar de tudo, e ainda que de longe em longe, a lanterna de Diógenes mantém o seu esquivo e necessário fulgor."

A Direcção "

Diógenes. Pintura de Jean-Léon Gérôme de 1860.

Diógenes, de John William Waterhouse


"Um tesouro com uma ilha"...

Jorge e Mécia de Sena com Rui Knopfli. Ilha de Moçambique. Ao fundo, a Capela de Na. Sra. do Baluarte.  





1.

Cabe num punho ou num bolso, este cabedal
ciosamente amealhado, mas puído já por usos
e abusos, irremediavelmente contaminado
pelas perversões da ignomínia ou da ignorância,
vez por outra remido, também, na lâmina

célere do mais acerado metal. Se, para brandi-lo,
ergo vacilante a mão, mais de cem fantasmas
antiquíssimos me cavalgam o pulso sobre
que inflecte a fragilidade calcificada
de séculos. Um movimento vai exauri-lo

sob o fardo, já outro lhe põe em risco
a quebradiça ligeireza. O verbo hesitar
lhe empresta o tónus correcto, no silêncio
respira, a sombra lhe dá corpo. Oferece,
por tal, essa aparência ilusória de ser

só chama, comburência sem combustível.
Podes tu, que apenas chegas e tudo ignoras
das traiçoeiras dificuldades experimentadas
nos lameiros que atolam o percurso
antes da pirâmide, proferir a primeira

palavra, como quem percute em festa
o cristal novo do sino alvissareiro.
Meu fendido, escuro bronze, roído
de musgos e cardenilho, apenas consente
a mágoa nocturna deste lamento a prumo.


2.

Há, porém, garantem, uma aventura da linguagem:
Um barco embandeirado de signos, sons,
rútilas conotações e uma carta de prego.
Um porão de surpresas, a rota misteriosa,
e, por certo… por certo um tesouro com ilha

em redor. Um mar de irisado esmalte,
por onde circulam peixes de esquiva prata,
lentas refractadas fosforescências, redondas
sinistras opacidades indecifráveis. Garantido,
ainda, o seguro contra todos os perigos.

Quem perde o barco, provê-se, como pode,
com o que tem. Poucos paus fazem uma jangada.
Na exactidão vocabular se articula o discurso.
Tenho só este exíguo e perplexo pecúlio
De palavras à beira do silêncio.


3.

Que, transformando-as em fim, o amor das palavras
não corrompa e destrua o amor da verdade.
Que a prevalência do jogo gratuito me não arraste
e me seja concedida a benfeitoria da recusa,
em todas as circunstâncias e por ilimitado prazo.

Que, o ser-lhes fiel, me não desobrigue
da fidelidade à fidelidade, ao sangue e à voz.
Que, anacrónico, discursivo, explicito,
negado, escarnecido e reduzido ao limbo,
um homem de gravata e fato escuro, contrariando

o sentido único do tráfego, a horda irreprimível
da excepção endémica desdobrada, por contágio,
em excepção generalizada, eu venha, ad absurdum,
a constituir a excepção da excepção. Que
as palavras sejam, pois, não uma exclusiva volição

de ser ou de significar; se conduzam, porém,
de tal forma que, significando, sejam e, sendo,
signifiquem; e uma e outra coisa se interpenetrem
e interliguem, tão aturada e porfiadamente, que
obstruam e interditem todo e qualquer escrutínio

unilateral, sendo, como tornadas são, objecto
outro e não a soma das parcelas integrantes.
E que a predominância de um dos termos arraste
consigo a perda irremediável da totalidade
acabada e unívoca. E que, por fim, tendo

de incorrer em qualquer dos nomeados riscos
ou danos, incurso seja menos por ser
do que pelo obstinado zelo de significar.
Nenhum inferno é maior que o da voz traída
E nenhum bem vale o da sua integridade.

Dez. 1971

Rui Knopfli in «O Corpo de Atena», IN-CM, pp. 15-19, Lx, 1994.




24/04/2012

25...

Isabel Ribeiro, Nautilus, óleo s/tela


RUA 1.º DE DEZEMBRO

À hora X, no Café Portugal
à mesa Z, é sempre a mesma cena:
uma toupeira ergue a mãozinha e acena…
Dois pica-paus querelam, muito entusiasmados:
que a dita dura dura que não dura
a dita dita dura – dura desdita!
Um pássaro cantor diz que isto assim é pena
E um senhor avestruz engole ovos estrelados

Mário Cesariny in ‘Nobilíssima Visão’, p.19, Assírio & Alvim, Lx, 1991.

CODA...


CODA

Lê os poetas mortos meu filho
os que não desesperam por repetirem tudo
os perdidos no sentido já só resíduos disso
os já completamente mortos  Lê-os por fora
de dentro dos teus gestos todos e duma só vez
que eles é que estão mais perto das estrelas
e esquece os vivos troca-lhes mesmo os nomes que importa
Toma os versos destes por sombras d’alguma coisa
(que poderás nunca vir a saber o que seja)
nos teus gestos  Toma este verso morto
Dá-se o nome de luz à sombra da luz viva
E repete-o   Dá-se o nome de luz à sombra
Da luz viva   Em todas as suas variantes
Contra quem mortos e vivos te sair ao caminho
Que os vivos resistem muito a morrer
sempre à procura de como se possui a vida
até que dão de si e morrem   É então que vivem
Lê-nos na passada e devolve-nos (ide à vida, diz)   forte
como no ténis a bolsa ao sportsman do outro lado
que só não marcará com fraude se não puder
Mas contudo lê-nos   Escuta-nos como a quaisquer
outros que procuram sempre um ouro qualquer sob a vida
Também nós não sabemos (vemos ouvimos e lemos)
sentindo que o ouro nunca achado nos mata enquanto
cresces                                  
O drama é estarmos sempre cada vez mais perto
A um metro e vinte de profundidade
na luz zebrada do fundo azul da piscina
abri a boca para respirar e foi logo este
país todo que me sufoca e não soube porquê
Na esplanada bebendo água fresca o mistério
continuaria

Carlos Leite in ‘O Desflashar dos Espaços’, pp.43-44, Black Sun Editores, Lx, 1987.



19/04/2012

Pela manhã bipartida...




TODOS POR UM

A manhã está tão triste
que os poetas românticos de Lisboa
morreram todos com certeza

Santos
Mártires
e Heróis

Que mau tempo estará a fazer no Porto?
Manhã triste, pela certa.

Oxalá que os poetas românticos do Porto
sejam compreensivos a ponto de deixarem
uma nesgazinha de cemitério florido
que é para os poetas românticos de Lisboa não terem de
                recorrer à vala comum

Mário de Cesariny in ‘Nobilíssima Visão’, p.31, Assírio & Alvim, Lx, 1991.

09/04/2012

«Habitante in-concluso»...


DIÁRIO DE HOJE

Eis o corpo buscando um vaso para o coração
- por ruas e travessas de silêncio:
p’los quatro cantos da mágoa -,
desfibrada a carne do Espaço…
- Eis o corpo no centro de um encontro,
encontro rasgado entre mãos
de um deserto aberto atá ao nada;
Transviado voo dentro de um eco –
mil paredes abatidas, cem mil casas…
Eis o corpo alargando as fronteiras
de um destino sem alvo e o mais incerto –
as mãos e a raiva perfurando a Terra!

Eis o corpo atravessado ao Tempo,
desfolhando a Rosa do Espaço.
Uma casa habito, porém lábil –
como se de neve e pólvora construída a sua base,
onde náusea acesa derretendo-a…
E eis o Cântigo Cirúrgico
                que nenhum grito se abre e o seu pranto –
corpo corda ao vento na tensão de um arco,
harpa talvez de fogo (a de Heraclito) e ponto
no “Diário de Hoje” (amanhã abra-se).

J. O. Travanca-Rêgo in “Habitante in-concluso precedido de n poemas de Natal & outros”, ed. Universitária Editora, p.15, col. «universitária poesia/ 37», Lisboa, 1999.


05/04/2012

É Quaresma serra a velha...



PARA-LOGO

Meu amigo Leitor, Leitor querido,
Não posso ser mais largo, nem comprido;
Esta obra jacosa aqui te entrego,
Usa de compaixão com o pobre cego:
Gaba-lhe este papel, dize que é bom,
Inda que lhe não aches tom nem som:
Bem vês quem quer que és, que esta obrazinha,
Para dar mil vinténs foi armadinha:
Põe em comprares já todo o cuidado,
Não fique o meu sentido hoje frustrado;
Se queres ver o fim que o papel tem,
Não te demores mais, dá cá vintém.
Bem o
                                                               Vale.

DESENGANO DOS RAPAZES

Aos vinte e dois de Março,
     Dia que vem na folhinha,
     Por sinal que á quarta feira
     Sempre cai êste tal dia.

Dia grande dos rapazes,
     Festa neles muito antiga,
     Com que as decrépitas velhas
     São por eles perseguidas.

Neste dia, como digo,
     Ajuntou-se a comitiva
     De galegos, e rapazes
     Para a função já sabida.

E lá pelas sete horas,
     Quando já anoitecia,
     Foi-se tudo alvoraçando
     Para aquela acção festiva.

Mas vindo uma certa velha,
     Tão velha, que tem de vida
     Mil e sete centos anos,
          E oitenta e seis por cima.

Em todos eles fenece,
     Mas nos mesmos se eterniza,
     Sendo Feniz de si própria
     Quando renasce da cinza.

Passa sim, mas não acaba,
     Morre porém ressuscita,
     Tantas mais vezes renasce,
     Quanto mais da morte avisa.

Quieta e mui socegada
     Modesta, grave, e pacífica,
     Tão humilde, que a si mesma
     É por pó que se decifra.

Magra, por cuja razão
     Parece inda mais antiga,
     Velha enfim tão descarnada
     Que se vê posta na espinha.

Agarrarão-lhe os rapazes
     Cheios de imensa alegria
     Tomaram-na entre dentes,
     Entraram a querer parti-la.

Agora pagará velha,
     Um, e outro lhe dizia,
     O trazer por este tempo
     Tão doidas as raparigas.

Pois quando a Quaresma chega,
     Porque a velha assim se apelida,
     Há tal que não larga o manto
     Até ser da Páscoa o dia.

Mas como me não importa
     Falar das alheias vidas,
     Do vexame desta velha
     Continuarei a notícia.

Agarrada, como disse,
     Esta tal santa velhinha
     Todos queriam serrar
     O vinte que a dividia.

Opôs-se a velha á sentença,
     Dizendo que ela não vinha
     Dar ao Mundo mau exemplo,
     Que uzava de boa vida.

Que quem a seguisse a ela
     Melhor a razão veria,
     Se podia dar reformas
     Não ocasionar ruinas.

Que era justa, e regulada
     Pelas normas mais precisas,
     Que inculcava penitências
     Nas demonstrações fingidas.

Finalmente, que ateimava,
     Ainda que serrassem viva,
     Observar a mesma fórma,
     Pois sabia o que fazia.

E como assim persistisse
     Sempre na mesma porfia,
     Gritaram, serre-se a velha,
     Corta-se-lhe o fio á vida.

E se para outro bairro
     Havia ser conduzida,
     Trouxeram-na mui contentes
     Para a Praça da Alegria.

Ajuntaram-se os galegos
     Dos duzentos das cantigas,
     Largaram sacos, e cordas
     Por ver da velha a folia.

As moças das colarejas
     Grandes, e mais pequeninas
     Só por entrarem na dança
     Deram que fazer nas gigas.

Outros basbaques tamanhos
     Como paus de virar tripas,
     Por verem da velha o buxo
     Tiveram alguns descaídas.

Ajuntou-se deste modo
     Toda esta comitiva
     Por quererem ver a velha,
     Não tendo a velha já vista.

Esperavam impacientes
     A serração prometida,
     Entrou-se a fazer-se escuro,
     Levantou-se a rapazia.

Principiou a tormenta
     Com chuva tão grossa, e fria,
     Que entrou a chover na gente
     Bancos, escadas, e pipas.

Começou-se a amotinar
     Com xocalhos, campainhas,
     Entraram a tocar a fogo
     A quanta lenha caía.

Entrou a serra a serrar
     Aquela que serra o dia,
     Um olho a velha ferrava,
     Outro olho aberto tinha.

Acabou de dividir-se,
     Quando as doze se cumpria
     Da meia noite da noite,
     De que enche a quarta na quinta.

Porem como se não fosse
     Fosse verdade, ou mentira,
     Partiu-se a velha partindo,
     E ficando sempre unida.

Mas inda naquele estado,
     Da gente mal pressentida
     Ouvi dizer se escondera
     E se puzera em fugida.

E pera deixar o susto
     Tão quebrada, e tão moída,
     Para arrastar um só passo
     Um’ hora lhe era precisa.

Dizem muitos, que abalara,
     Porém é certo que ainda
     A têm visto na Ribeira
     Por entre as celhas metida.

É certo sim, que escrevera
     Para o pontal de Cacilhas
     Que ia lá morar este ano,
     Mas que para o outro vinha.

Pois dizem que lá estivera
     D’outras vezes escondida,
     Onde tornava a inteirar-se,
     Melhorando das feridas.

Com que, por mais que lhe façam,
     Escusadas são profias,
     A velha há de cá tornar
     Para o ano o mesmo dia.

Acabou-se todo o conto,
     Dem-lhe gasto, e corra a sina,
     Passem-me o dinheiro ao cego;
     Pois que é cego não fia.