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24/04/2012

CODA...


CODA

Lê os poetas mortos meu filho
os que não desesperam por repetirem tudo
os perdidos no sentido já só resíduos disso
os já completamente mortos  Lê-os por fora
de dentro dos teus gestos todos e duma só vez
que eles é que estão mais perto das estrelas
e esquece os vivos troca-lhes mesmo os nomes que importa
Toma os versos destes por sombras d’alguma coisa
(que poderás nunca vir a saber o que seja)
nos teus gestos  Toma este verso morto
Dá-se o nome de luz à sombra da luz viva
E repete-o   Dá-se o nome de luz à sombra
Da luz viva   Em todas as suas variantes
Contra quem mortos e vivos te sair ao caminho
Que os vivos resistem muito a morrer
sempre à procura de como se possui a vida
até que dão de si e morrem   É então que vivem
Lê-nos na passada e devolve-nos (ide à vida, diz)   forte
como no ténis a bolsa ao sportsman do outro lado
que só não marcará com fraude se não puder
Mas contudo lê-nos   Escuta-nos como a quaisquer
outros que procuram sempre um ouro qualquer sob a vida
Também nós não sabemos (vemos ouvimos e lemos)
sentindo que o ouro nunca achado nos mata enquanto
cresces                                  
O drama é estarmos sempre cada vez mais perto
A um metro e vinte de profundidade
na luz zebrada do fundo azul da piscina
abri a boca para respirar e foi logo este
país todo que me sufoca e não soube porquê
Na esplanada bebendo água fresca o mistério
continuaria

Carlos Leite in ‘O Desflashar dos Espaços’, pp.43-44, Black Sun Editores, Lx, 1987.



05/04/2011

Escritores Esquecidos 9

J. O. Travanca-Rêgo (1940-2003)



SUBSTÂNCIA

Perdeu-se, perdeu-se talvez a vida
no que ela tinha de válido –
no que ela tinha de grande:
No que ela tinha de próprio,
como (de um corpo) é próprio
ter cabeça  membros  tronco
e a alma de um gigante
com asas para o infinito!

- Um desespero GLORIOSO…
Recomeço eu escrevendo,
como quem num adjectivo
fosse encontrar o perdido –
sua alma omnipresente,
tão leve como alguns ventos
quando são sopro da Vida…
Mas, lembro-me logo:

“Os adjectivos são acidentes,
- diz Margarida, amiga minha,
na senda do Aristóteles -:
Não implantam dentro ao Homem,
a semente que lhe escapa…
E apenas por fora pintam
umas asas que não abrem
no seu tronco que vai cego
como um Ícaro perdido!”

Olha que não, olha que não
- redigo eu inconformado -:
De desespero, estou farto:
de desespero simples como o dos cães,
sem duas pernas
– sentados…
Agora se for GLORIOSO, e com maiúsculas escrito,

talvez alma dê-me um pouco –
dê-ma de novo e eu possa
gozar da vida a substância,
como antes de ter perdido
o que era grande (ou era louco):

- Umas asas de gigante,
minha alma sem distância
do Longe e do Invisível!

Travanca-Rêgo, Da Poesia: dois segmentos, pp. 18-19, Black Sun Editores, Lx, 1999.