PARA-LOGO
Meu amigo Leitor, Leitor querido,
Não posso ser mais largo, nem comprido;
Esta obra jacosa aqui te entrego,
Usa de compaixão com o pobre cego:
Gaba-lhe este papel, dize que é bom,
Inda que lhe não aches tom nem som:
Bem vês quem quer que és, que esta obrazinha,
Para dar mil vinténs foi armadinha:
Põe em comprares já todo o cuidado,
Não fique o meu sentido hoje frustrado;
Se queres ver o fim que o papel tem,
Não te demores mais, dá cá vintém.
Bem o
Vale.
DESENGANO DOS RAPAZES
Aos vinte e dois de Março,
Dia que vem na folhinha,
Por sinal que á quarta feira
Sempre cai êste tal dia.
Dia grande dos rapazes,
Festa neles muito antiga,
Com que as decrépitas velhas
São por eles perseguidas.
Neste dia, como digo,
Ajuntou-se a comitiva
De galegos, e rapazes
Para a função já sabida.
E lá pelas sete horas,
Quando já anoitecia,
Foi-se tudo alvoraçando
Para aquela acção festiva.
Mas vindo uma certa velha,
Tão velha, que tem de vida
Mil e sete centos anos,
E oitenta e seis por cima.
Em todos eles fenece,
Mas nos mesmos se eterniza,
Sendo Feniz de si própria
Quando renasce da cinza.
Passa sim, mas não acaba,
Morre porém ressuscita,
Tantas mais vezes renasce,
Quanto mais da morte avisa.
Quieta e mui socegada
Modesta, grave, e pacífica,
Tão humilde, que a si mesma
É por pó que se decifra.
Magra, por cuja razão
Parece inda mais antiga,
Velha enfim tão descarnada
Que se vê posta na espinha.
Agarrarão-lhe os rapazes
Cheios de imensa alegria
Tomaram-na entre dentes,
Entraram a querer parti-la.
Agora pagará velha,
Um, e outro lhe dizia,
O trazer por este tempo
Tão doidas as raparigas.
Pois quando a Quaresma chega,
Porque a velha assim se apelida,
Há tal que não larga o manto
Até ser da Páscoa o dia.
Mas como me não importa
Falar das alheias vidas,
Do vexame desta velha
Continuarei a notícia.
Agarrada, como disse,
Esta tal santa velhinha
Todos queriam serrar
O vinte que a dividia.
Opôs-se a velha á sentença,
Dizendo que ela não vinha
Dar ao Mundo mau exemplo,
Que uzava de boa vida.
Que quem a seguisse a ela
Melhor a razão veria,
Se podia dar reformas
Não ocasionar ruinas.
Que era justa, e regulada
Pelas normas mais precisas,
Que inculcava penitências
Nas demonstrações fingidas.
Finalmente, que ateimava,
Ainda que serrassem viva,
Observar a mesma fórma,
Pois sabia o que fazia.
E como assim persistisse
Sempre na mesma porfia,
Gritaram, serre-se a velha,
Corta-se-lhe o fio á vida.
E se para outro bairro
Havia ser conduzida,
Trouxeram-na mui contentes
Para a Praça da Alegria.
Ajuntaram-se os galegos
Dos duzentos das cantigas,
Largaram sacos, e cordas
Por ver da velha a folia.
As moças das colarejas
Grandes, e mais pequeninas
Só por entrarem na dança
Deram que fazer nas gigas.
Outros basbaques tamanhos
Como paus de virar tripas,
Por verem da velha o buxo
Tiveram alguns descaídas.
Ajuntou-se deste modo
Toda esta comitiva
Por quererem ver a velha,
Não tendo a velha já vista.
Esperavam impacientes
A serração prometida,
Entrou-se a fazer-se escuro,
Levantou-se a rapazia.
Principiou a tormenta
Com chuva tão grossa, e fria,
Que entrou a chover na gente
Bancos, escadas, e pipas.
Começou-se a amotinar
Com xocalhos, campainhas,
Entraram a tocar a fogo
A quanta lenha caía.
Entrou a serra a serrar
Aquela que serra o dia,
Um olho a velha ferrava,
Outro olho aberto tinha.
Acabou de dividir-se,
Quando as doze se cumpria
Da meia noite da noite,
De que enche a quarta na quinta.
Porem como se não fosse
Fosse verdade, ou mentira,
Partiu-se a velha partindo,
E ficando sempre unida.
Mas inda naquele estado,
Da gente mal pressentida
Ouvi dizer se escondera
E se puzera em fugida.
E pera deixar o susto
Tão quebrada, e tão moída,
Para arrastar um só passo
Um’ hora lhe era precisa.
Dizem muitos, que abalara,
Porém é certo que ainda
A têm visto na Ribeira
Por entre as celhas metida.
É certo sim, que escrevera
Para o pontal de Cacilhas
Que ia lá morar este ano,
Mas que para o outro vinha.
Pois dizem que lá estivera
D’outras vezes escondida,
Onde tornava a inteirar-se,
Melhorando das feridas.
Com que, por mais que lhe façam,
Escusadas são profias,
A velha há de cá tornar
Para o ano o mesmo dia.
Acabou-se todo o conto,
Dem-lhe gasto, e corra a sina,
Passem-me o dinheiro ao cego;
Pois que é cego não fia.
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