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27/04/2012

"Um tesouro com uma ilha"...

Jorge e Mécia de Sena com Rui Knopfli. Ilha de Moçambique. Ao fundo, a Capela de Na. Sra. do Baluarte.  





1.

Cabe num punho ou num bolso, este cabedal
ciosamente amealhado, mas puído já por usos
e abusos, irremediavelmente contaminado
pelas perversões da ignomínia ou da ignorância,
vez por outra remido, também, na lâmina

célere do mais acerado metal. Se, para brandi-lo,
ergo vacilante a mão, mais de cem fantasmas
antiquíssimos me cavalgam o pulso sobre
que inflecte a fragilidade calcificada
de séculos. Um movimento vai exauri-lo

sob o fardo, já outro lhe põe em risco
a quebradiça ligeireza. O verbo hesitar
lhe empresta o tónus correcto, no silêncio
respira, a sombra lhe dá corpo. Oferece,
por tal, essa aparência ilusória de ser

só chama, comburência sem combustível.
Podes tu, que apenas chegas e tudo ignoras
das traiçoeiras dificuldades experimentadas
nos lameiros que atolam o percurso
antes da pirâmide, proferir a primeira

palavra, como quem percute em festa
o cristal novo do sino alvissareiro.
Meu fendido, escuro bronze, roído
de musgos e cardenilho, apenas consente
a mágoa nocturna deste lamento a prumo.


2.

Há, porém, garantem, uma aventura da linguagem:
Um barco embandeirado de signos, sons,
rútilas conotações e uma carta de prego.
Um porão de surpresas, a rota misteriosa,
e, por certo… por certo um tesouro com ilha

em redor. Um mar de irisado esmalte,
por onde circulam peixes de esquiva prata,
lentas refractadas fosforescências, redondas
sinistras opacidades indecifráveis. Garantido,
ainda, o seguro contra todos os perigos.

Quem perde o barco, provê-se, como pode,
com o que tem. Poucos paus fazem uma jangada.
Na exactidão vocabular se articula o discurso.
Tenho só este exíguo e perplexo pecúlio
De palavras à beira do silêncio.


3.

Que, transformando-as em fim, o amor das palavras
não corrompa e destrua o amor da verdade.
Que a prevalência do jogo gratuito me não arraste
e me seja concedida a benfeitoria da recusa,
em todas as circunstâncias e por ilimitado prazo.

Que, o ser-lhes fiel, me não desobrigue
da fidelidade à fidelidade, ao sangue e à voz.
Que, anacrónico, discursivo, explicito,
negado, escarnecido e reduzido ao limbo,
um homem de gravata e fato escuro, contrariando

o sentido único do tráfego, a horda irreprimível
da excepção endémica desdobrada, por contágio,
em excepção generalizada, eu venha, ad absurdum,
a constituir a excepção da excepção. Que
as palavras sejam, pois, não uma exclusiva volição

de ser ou de significar; se conduzam, porém,
de tal forma que, significando, sejam e, sendo,
signifiquem; e uma e outra coisa se interpenetrem
e interliguem, tão aturada e porfiadamente, que
obstruam e interditem todo e qualquer escrutínio

unilateral, sendo, como tornadas são, objecto
outro e não a soma das parcelas integrantes.
E que a predominância de um dos termos arraste
consigo a perda irremediável da totalidade
acabada e unívoca. E que, por fim, tendo

de incorrer em qualquer dos nomeados riscos
ou danos, incurso seja menos por ser
do que pelo obstinado zelo de significar.
Nenhum inferno é maior que o da voz traída
E nenhum bem vale o da sua integridade.

Dez. 1971

Rui Knopfli in «O Corpo de Atena», IN-CM, pp. 15-19, Lx, 1994.