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12/12/2012

NOCTURNO



Venho da rua. Subo a escada. Fecho a varanda
Acendo a luz. Abro a varanda. Apago a luz.

Porque ladram, sempre, todos estes cães?
E se calam, um após outro, até ao derradeiro
ladrido, agora subitamente submisso?

A noite acolhe-me, engalanada de águas,
e desdobra a praia, tão longe, do sono,
com cavalos negros que pisam a cintilação
da areia molhada.

A noite é âmbito, tiedro, silêncio.
Eh! Tu!

A voz de estanho me chama,
mortiça, do fim da rua
e o candeeiro que parece apagar-se.
A árvore e o vento escondem-o e devolvem-no
entre feixes de escuridão.

O estanho, o peltre, o zinco,
uma prata velada, rouca,
aquela rouquidão de sangue antiga.
Cristais, carvão.

Cada onda relincha e flameja crinas.

Eu finjo-me surdo. Ou também
sou o estorvo de estoupa na garganta do vento,
a rouquidão da prata.

– Se não fosse por mim…

Fecho a varanda. Acendo a luz.

Jordi Sarsanedas, “Quinze Poetas Catalães, pp. 31-32, Limiar, Porto, 1994.
Trad. Egito Gonçalves

NÃO POSSO DESESPERAR DA HUMANIDADE…



Não posso desesperar da humanidade. E como
eu gostaria de! Mas como posso
pensar que há povos maus, há maus costumes?
A américa é detestável. Mas deu – americanos –
Walt Whitman e Emily Dickinson. Posso
não confiar neles? A Rússia é
detestável. Mas Tolstoi é tão russo!
São maus os japoneses? Como podem
sê-lo, se têm Kurosawa e o Snr. Roberto
que me vendia hortaliças no Brasil?
E o meu Brasil tão infeliz amor, e tão
ridículo? Mas não são os brasileiros Euclides
e o coração dos meus amigos? E
Portugal, como pode ser mau e detestável
se mesmo eu que amo sobretudo o vário mundo,
o amo – ao mundo – como português?
A humanidade e as pátrias são uma chatice, eu sei.
Mas como posso desesperar delas, desde que
não sejam para mim o gesto ou as sardinhas,
o feijão ou o sirloin, ou a terrível capa
dos usos e costumes, da vaidade,
mas uma forma de ser-se humano e solitário
acompanhadamente?

Madison, 30/10/65

Jorge de Sena, “40 Anos de Servidão”, p.103, Moraes Editores,2ªed., Lisboa, 1982.

11/12/2012

A MORTE DO PAI...


A MORTE DO PAI

Toda a mulher adora um fascista…
Sylvia Plath


Aquela parte de mim que adorava um fascista
– ou o adora, quem sabe? –
jaz contigo, jaz contigo.

O túmulo não a espanta. Desde sempre chamada
ao mais escuro domínio,
morre contigo, vive de ti.

Oferenda trémula, sabe apenas seguir-te
e agasalhar-se no teu mal
como no porto mais seguro.

Medusa desossada, o que de mim resta
luta por completar-se
sem ti, longe de ti.

O bisturi vacila. Quem vive mais além?
E como poderei pensar-te
como se eu não fosse tu?

O meu amor sem casa.
A bala que atravessa a sombra do meu amor sem casa

As folhas que cobrem a bala que atravessa a sombra do meu
amor sem casa.
O vento que arranca as folhas que cobrem a bala que atravessa
a sombra do meu amor sem casa.
Os meus olhos que se agarram ao vento que arranca as folhas
que cobrem a bala que atravessa a sombra do meu amor sem casa.
O meu amor que se reflecte nos olhos que se agarram ao vento
que arranca as folhas que cobrem a bala que atravessa a sombra
do meu amor sem casa.

Maria Mercé Marçal, “Quinze Poetas Catalães”, pp. 75-76, Limiar, Porto, 1994
Tradução de Egito Gonçalves

Sísifos...



6. NOITINHA


Seca a saliva à boca do dia, seca,
nem para colares um selo no postal a tua mãe
e o pó colado às unhas e aos olhos
como o amargor à pele da memória.

Subimos-e-descemos a montanha
carregando às costas a pedra e a morte
sob a injúria e o chicote,
cantámos a água e a pedra,
a vida e a morte – acostumámo-nos,
minorou o infortúnio,
até mesmo a raiva minorou,
somente a determinação não minorou.

Por entre a picareta e a pá da noite
repousam os camaradas
com os dentes cerrados,
com o punho por travesseiro.


Giánnis Ritsos, “Antologia”, ed. Fora do Texto, pág.63, Coimbra, 1993
Tradução de Custódio Magueijo

07/12/2012

"MEMÓRIA DE LUÍS ABEL FERREIRA"...

António Barahona



MEMÓRIA DE LUÍS ABEL FERREIRA

Vejo-te, nessa noite, à beira do telhado
da clínica, tão perto das nuvens mais altas;
oiço o teu coração, o deslizar de lágrimas
                no silêncio suado.

Leio o teu pensamento…, último calafrio:
o murmúrio, de quem depressa se despede,
reflecte a luz frontal da morte que já mede
                o salto no vazio.

Morreste só d’amor, surpreso e imaturo,
menino apaixonado, ansioso, inocente
(sem norte o coração, talvez quase demente)
                tão grave, bom e puro.

Ao que morre d’amor, o Deus perdoa tudo.

20.VI.012

António Barahona,  in Telhados de Vidro nº.17, Novembro de 2012. 

27/11/2012

[ALFA, BETA, GAMA]..


24. α. β. γ
[ALFA, BETA, GAMA]

Três grandes letras
escritas a cal na rochosa-ossatura de Macrónissos.

(Quando chegámos de barco
encurralados entre mochilas e os nossos temores
líamo-las do alto da coberta
sob as injúrias do guarda, líamo-las
naquela serena manhã de Julho,
e a maresia e o perfume do orégão e o tomilho
não entendiam mesmo o que significavam estas três letras de cal).

α – 1º Batalhão
β – 2º Batalhão
γ – 3º Batalhão

MACRÓNISSOS

E o mar Egeu era azul como sempre
muito azul, só azul
α –
Ah! sim, falávamos por vezes duma poesia egeopelágica,
β –
do peito nu da saúde bordado como uma âncora e uma górgona,
γ –
da luz marinha que tece os cortinados das gaivotas

α. β. γ.
300 mortos.

Falávamos, sim, duma poesia egeopelágica –
e o caranguejo que sonha na húmida rocha,
de caras com o doirado poente,
como uma pequena estátua de bronze do Oceano

α. β. γ.
600 loucos.

(Os vítreos camarões perseguindo nos vaus a sombra de estrelas matutinas
o doirado e azul estio apedrejando com pinhões a sesta das raparigas,
os velhos pinheiros arranhando sua copa na caiada cerca).

α. β. γ.
900 coxos.
Viva
o rei Pavlos.

(E a Virgem do mar bronzeada pelo crepúsculo
a deambular descalça no areal
arrumando as casas dos pequenos peixes
pregando com uma estrela-do-mar sua trança de-luar).

α. β. γ.

α. β. γ.

(Falávamos duma poesia egeopelágica, sim, sim).

MACRÓNISSOS –
MACRÓNISSOS – MACRÓNISSOS

E o mar continua azul como sempre
e a esquadra americana percorre o Egeu
serena, serena, bela
e as estrelas acendem todas as noites pequenas fogueiras
para que os Anjos cozinhem a sopa-de-peixe da Virgem.

α. β. γ.

α. β. γ

E por sob as estrelas passam
barcos-e-barcos de deportados;
e de sacos com pernas cortadas
e de sacos com braços cortados
e de sacos com mortos
fervilham as ondas nas praias do Lávrio.

(Egeopelágica paisagem
doirada e azul)

α. β. γ.

Nestas fragas foram fuzilados os 300 do 1º Batalhão,
estes sargaços são uma madeixa de cabelos arrancados com a pele
do crânio dum camarada que se recusou a assinar a declaração

α. β. γ.

Os aramados
Os mortos
Os loucos

α. β. γ.

(Azul, o mar – muito azul.
Doirada egeopelágica paisagem.
As gaivotas).

α. β. γ.

Negro, todo-negro mar
negra, toda-negra paisagem.
Os aramados.

α. β. γ.

Negra, toda negra paisagem de cerrados dentes,
vermelha, toda-vermelha paisagem de cerrado punho,
negro e vermelho coração coalhado em seu sangue
e um sol vermelho coalhado dentro do seu sangue.

α. β. γ.

Os aramados.
As guaritas, negras dentro da noite.
E as vozes das guaritas, negras toda a noite:

ALTO – ALTO
QUEM VEM LÁ?
QUEM VEM LÁ?
QUEM VEM LÁ?

OS COXOS
OS MANETAS
OS CEGOS
OS LOUCOS
OS MORTOS

ALTO – ALTO

ALTO

QUEM VEM LÁ?

OS MORTOS

OS MORTOS

Voltam atrás em busca do pão que não comeram.
Em busca do sol que lhes roubaram.
Em busca da vida que lhes cortaram.

ALTO – ALTO
das guaritas da noite
toda a noite

ALTO

– QUEM VEM LÁ?

– OS MORTOS.

– QUEM VEM LÁ?

– OS LOUCOS.

– QUEM VEM LÁ?

– NÓS.

ALTO – ALTO – ALTO.

NÃO PÁRAM

Os mortos buscam a sua vida.
Os loucos buscam o seu sol.
Os coxos buscam as suas pernas.
Os cegos buscam os seus olhos.
Todos buscam a sua liberdade.

α. β. γ.

Pelo princípio aprendemos o alfabeto.
Pelo princípio aprendemos o medo e a dor.
Pelo princípio aprendemos a vida e a morte.

α. β. γ.

α. β. γ.

α. β. γ.

E agora que aprendemos, camaradas, a morrer
aprendemos também a viver, camaradas.
A liberdade está próxima.

α. β. γ.

SOL

α. β. γ.

LIBERDADE

α. β. γ.

Alfa-beta – Em frente, em frente.

Giánnis Ritsos, “Antologia”, ed. Fora do Texto, pp.81-87, Coimbra, 1993
Tradução de Custódio Magueijo

18/11/2012

Regina Guimarães...



para o Manuel António Pina

é certo que por vezes conversando

lutavas contra luas e olhos baços
semi-cerravas dextras as palavras tuas
como se nos morresses aos poucos
de temor e de ternura
inexplicadas

porém
acostumados ao vaivém do luto
que os teus poemas acendiam
nas duas extremas
do corredor

e em todas as portas do labirinto
ficamos sem saber quem se cansou
da fadiga que te trazia
violentamente inalterado
à nossa presença

pudera eu escrever
com a tinta do frio nas costas
e directamente sobre o tampo polido
de uma mesa do café onde esperar
esse tempo amigo que tu eras
passado a limpo

mas haja noite
haja mais noite

e nós crianças
em perda de sono
envelhecendo cada um na sua voz

Regina Guimarães a 19 de Outubro de 2012

02/11/2012

ÀS VEZES, PARA VARIAR...


ÀS VEZES, PARA VARIAR, SÃO:

As autoridades que erguem as nádegas
para lhes serem metidas moedas na ranhura.

Os deputados que apostam na comercialização
dos guardas-republicanos.

Os investidores que justificam
a força do uso com a força da usa.

Os magistrados que apoiam a democracia em
público e o cão-polícia em particular.

Os militares que empunham o facho-éclair
para fazer luz sobre o assunto.

Os tecnocratas que manipulam os dados
com os dedos e os dedos com os dados.

Os psiquiatras que ajudam os cães a com
pensar o seu complexo anal e vice-versa.

Os mestres que erguem a voz para dizer
quais as vozes que se devem ouvir.

Os escritores que zelam por que aquilo que é
proibido se torne obrigatório e vice-versa.

Os funcionários públicos que encaminham as
almas para o sétimo selo.

Os sacerdotes que recebem as colheitas com
a colecta anual.

Os internados no manicómio que dão
peidos que abalam a (so) ci (e) dade.

Os jornalistas que digerem este mundo e o outro
porque têm dentes fora e dentro.

O povo que se refere às conquistas de
abril.

Os polícias de choque que empacotam
as bombas e explodem.

Alberto Pimenta, “A Visita do Papa”, pp. 6-7, &etc, Lisboa, 1982.

01/11/2012

FIVE O’CLOCK TEAR...


FIVE O’CLOCK TEAR

Coisa tão triste aqui esta mulher
com seus dedos pousados no deserto dos joelhos
com seus olhos voando devagar sobre a mesa
para pousar no talher

Coisa meia triste o seu vai-vem macio
p’ra não amachucar uma invisível flora
que cresce na penumbra
dos velhos corredores desta casa onde mora

que triste o seu entrar de novo nesta sala
que triste a sua chávena
e o gesto de pegá-la

E que triste e que triste a cadeira amarela
de onde se ergue um sossego um sossego infinito
que é apenas de vê-la
e por isso esquisito

E que tristes de súbito os seus pés nos sapatos
seus seios seus cabelos o seu corpo inclinado
o álbum a mesinha as manchas dos retratos

E que infinitamente triste triste
o selo do silêncio
do silêncio colado ao papel das paredes
da sala digo cela
em que comigo a vedes

Mas que infinitamente ainda mais triste triste
a chávena pousada
e o olhar confortando uma flor já esquecida
do sol
do ar
lá de fora
(da vida)
numa jarra parada

Emanuel Félix, “A Palavra O Açoite”,pp.27-28, ed. Centelha, Coimbra, 1977.