06/08/2012

Cão no Espeto...




«O CÃO SEM PLUMAS» de João Cabral de Melo Neto


I. Paisagem do Capibaribe 

A cidade é passada pelo rio 
como uma rua 
é passada por um cachorro; 
uma fruta 
por uma espada. 

O rio ora lembrava 
a língua mansa de um cão, 
ora o ventre triste de um cão, 
ora o outro rio 
de aquoso pano sujo 
dos olhos de um cão. 

Aquele rio
era como um cão sem plumas. 
Nada sabia da chuva azul, 
da fonte cor-de-rosa, 
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água, 
da brisa na água. 

Sabia dos caranguejos 
de lodo e ferrugem. 
Sabia da lama 
como de uma mucosa. 
Devia saber dos polvos. 
Sabia seguramente 
da mulher febril que habita as ostras. 

Aquele rio 
jamais se abre aos peixes, 
ao brilho, 
à inquietação de faca 
que há nos peixes. 
Jamais se abre em peixes. 

Abre-se em flores 
pobres e negras 
como negros. 
Abre-se numa flora 
suja e mais mendiga 
como são os mendigos negros. 
Abre-se em mangues 
de folhas duras e crespos 
como um negro. 

Liso como o ventre 
de uma cadela fecunda, 
o rio cresce 
sem nunca explodir. 
Tem, o rio, 
um parto fluente e invertebrado 
como o de uma cadela. 

E jamais o vi ferver 
(como ferve 
o pão que fermenta). 
Em silêncio, 
o rio carrega sua fecundidade pobre, 
grávido de terra negra.

Em silêncio se dá: 
em capas de terra negra, 
em botinas ou luvas de terra negra 
para o pé ou a mão 
que mergulha. 

Como às vezes 
passa com os cães, 
parecia o rio estagnar-se. 
Suas águas fluíam então 
mais densas e mornas; 
fluíam com as ondas 
densas e mornas 
de uma cobra.

Ele tinha algo, então, 
da estagnação de um louco. 
Algo da estagnação
do hospital, da penitenciária, dos asilos, 
da vida suja e abafada 
(de roupa suja e abafada) 
por onde se veio arrastando. 

Algo da estagnação 
dos palácios cariados, 
comidos 
de mofo e erva-de-passarinho. 
Algo da estagnação 
das árvores obesas 
pingando os mil açúcares 
das salas de jantar pernambucanas, 
por onde se veio arrastando. 

(É nelas, 
mas de costas para o rio, 
que "as grandes famílias espirituais" da cidade 
chocam os ovos gordos 
de sua prosa. 
Na paz redonda das cozinhas, 
ei-las a revolver viciosamente 
seus caldeirões 
de preguiça viscosa). 

Seria a água daquele rio 
fruta de alguma árvore? 
Por que parecia aquela 
uma água madura? 
Por que sobre ela, sempre, 
como que iam pousar moscas?

Aquele rio 
saltou alegre em alguma parte? 
Foi canção ou fonte 
Em alguma parte? 
Por que então seus olhos 
vinham pintados de azul 
nos mapas?
 

II. Paisagem do Capibaribe 

Entre a paisagem 
o rio fluía 
como uma espada de líquido espesso. 
Como um cão
humilde e espesso. 

Entre a paisagem 
(fluía) 
de homens plantados na lama; 
de casas de lama 
plantadas em ilhas 
coaguladas na lama;
paisagem de anfíbios 
de lama e lama.

Como o rio 
aqueles homens 
são como cães sem plumas 
(um cão sem plumas
é mais 
que um cão saqueado; 
é mais 
que um cão assassinado.

Um cão sem plumas 
é quando uma árvore sem voz. 
É quando de um pássaro 
suas raízes no ar. 
É quando a alguma coisa 
roem tão fundo 
até o que não tem). 

O rio sabia 
daqueles homens sem plumas. 
Sabia 
de suas barbas expostas, 
de seu doloroso cabelo 
de camarão e estopa. 

Ele sabia também 
dos grandes galpões da beira dos cais 
(onde tudo 
é uma imensa porta 
sem portas) 
escancarados 
aos horizontes que cheiram a gasolina. 

E sabia 
da magra cidade de rolha, 
onde homens ossudos, 
onde pontes, sobrados ossudos 
(vão todos 
vestidos de brim) 
secam 
até sua mais funda caliça. 

Mas ele conhecia melhor 
os homens sem pluma. 
Estes 
secam 
ainda mais além 
de sua caliça extrema; 
ainda mais além 
de sua palha; 
mais além 
da palha de seu chapéu; 
mais além 
até 
da camisa que não têm; 
muito mais além do nome 
mesmo escrito na folha 
do papel mais seco.

Porque é na água do rio 
que eles se perdem 
(lentamente 
e sem dente). 
Ali se perdem 
(como uma agulha não se perde). 
Ali se perdem 
(como um relógio não se quebra).

Ali se perdem 
como um espelho não se quebra. 
Ali se perdem 
como se perde a água derramada: 
sem o dente seco 
com que de repente 
num homem se rompe 
o fio de homem. 

Na água do rio, 
lentamente, 
se vão perdendo 
em lama; numa lama 
que pouco a pouco 
também não pode falar: 
que pouco a pouco 
ganha os gestos defuntos 
da lama; 
o sangue de goma, 
o olho paralítico 
da lama.

Na paisagem do rio
difícil é saber 
onde começa o rio; 
onde a lama 
começa do rio; 
onde a terra 
começa da lama; 
onde o homem, 
onde a pele 
começa da lama; 
onde começa o homem 
naquele homem. 

Difícil é saber 
se aquele homem 
já não está 
mais aquém do homem; 
mais aquém do homem 
ao menos capaz de roer 
os ossos do ofício; 
capaz de sangrar 
na praça; 
capaz de gritar 
se a moenda lhe mastiga o braço;
capaz 
de ter a vida mastigada 
e não apenas 
dissolvida 
(naquela água macia 
que amolece seus ossos 
como amoleceu as pedras).
 

III. Fábula do Capibaribe 

A cidade é fecundada
por aquela espada 
que se derrama, 
por aquela 
úmida gengiva de espada. 

No extremo do rio 
o mar se estendia, 
como camisa ou lençol, 
sobre seus esqueletos 
de areia lavada.

(Como o rio era um cachorro, 
o mar podia ser uma bandeira 
azul e branca 
desdobrada 
no extremo do curso 
— ou do mastro — do rio. 

Uma bandeira 
que tivesse dentes: 
que o mar está sempre 
com seus dentes e seu sabão 
roendo suas praias. 

Uma bandeira 
que tivesse dentes: 
como um poeta puro 
polindo esqueletos, 
como um roedor puro,
um polícia puro 
elaborando esqueletos, 
o mar, 
com afã, 
está sempre outra vez lavando 
seu puro esqueleto de areia. 

O mar e seu incenso, 
o mar e seus ácidos, 
o mar e a boca de seus ácidos, 
o mar e seu estômago 
que come e se come, 
o mar e sua carne 
vidrada, de estátua,
seu silêncio, alcançado 

à custa de sempre dizer 
a mesma coisa, 
o mar e seu tão puro 
professor de geometria). 

O rio teme aquele mar 
como um cachorro 
teme uma porta entretanto aberta, 
como um mendigo, 
a igreja aparentemente aberta. 

Primeiro,
o mar devolve o rio. 
Fecha o mar ao rio 
seus brancos lençóis. 
O mar se fecha
a tudo o que no rio 
são flores de terra, 
imagem de cão ou mendigo. 

Depois,
o mar invade o rio. 
Quer 
o mar 
destruir no rio 
suas flores de terra inchada,
tudo o que nessa terra 
pode crescer e explodir, 
como uma ilha, 
uma fruta. 

Mas antes de ir ao mar 
o rio se detém 
em mangues de água parada. 
Junta-se o rio 
a outros rios 
numa laguna, em pântanos 
onde, fria, a vida ferve. 

Junta-se o rio 
a outros rios. 
Juntos, 
todos os rios 
preparam sua luta 
de água parada,
sua luta 
de fruta parada. 

(Como o rio era um cachorro, 
como o mar era uma bandeira, 
aqueles mangues 
são uma enorme fruta: 

A mesma máquina 
paciente e útil 
de uma fruta; 
a mesma força 
invencível e anônima 
de uma fruta 
— trabalhando ainda seu açúcar 
depois de cortada —. 

Como gota a gota 
até o açúcar, 
gota a gota 
até as coroas de terra; 
como gota a gota 
até uma nova planta, 
gota a gota 
até as ilhas súbitas 
aflorando alegres).
 

IV. Discurso do Capibaribe 

Aquele rio 
está na memória 
como um cão vivo
dentro de uma sala. 
Como um cão vivo
dentro de um bolso. 
Como um cão vivo 
debaixo dos lençóis, 
debaixo da camisa, 
da pele. 

Um cão, porque vive, 
é agudo. 
O que vive 
não entorpece. 
O que vive fere. 
O homem, 
porque vive, 
choca com o que vive.
Viver 
é ir entre o que vive. 

O que vive 
incomoda de vida 
o silêncio, o sono, o corpo 
que sonhou cortar-se
roupas de nuvens. 
O que vive choca, 
tem dentes, arestas, é espesso. 
O que vive é espesso 
como um cão, um homem, 
como aquele rio.

Como todo o real 
é espesso.
Aquele rio 
é espesso e real. 
Como uma maçã 
é espessa. 
Como um cachorro 
é mais espesso do que uma maçã. 
Como é mais espesso 
o sangue do cachorro 
do que o próprio cachorro. 
Como é mais espesso 
um homem 
do que o sangue de um cachorro. 
Como é muito mais espesso
o sangue de um homem 
do que o sonho de um homem. 

Espesso 
como uma maçã é espessa.
Como uma maçã 
é muito mais espessa 
se um homem a come 
do que se um homem a vê. 
Como é ainda mais espessa 
se a fome a come. 
Como é ainda muito mais espessa 
se não a pode comer 
a fome que a vê. 

Aquele rio 
é espesso 
como o real mais espesso. 
Espesso 
por sua paisagem espessa, 
onde a fome 
estende seus batalhões de secretas 
e íntimas formigas.

E espesso 
por sua fábula espessa; 
pelo fluir 
de suas geléias de terra; 
ao parir 
suas ilhas negras de terra. 

Porque é muito mais espessa 
a vida que se desdobra 
em mais vida, 
como uma fruta 
é mais espessa 
que sua flor; 
como a árvore 
é mais espessa 
que sua semente; 
como a flor
é mais espessa 
que sua árvore, 
etc. etc. 

Espesso,
porque é mais espessa 
a vida que se luta 
cada dia, 
o dia que se adquire 
cada dia 
(como uma ave 
que vai cada segundo 
conquistando seu vôo).


III. Fábula do Capibaribe

A cidade é fecundada
por aquela espada
que se derrama,
por aquela
úmida gengiva de espada.

No extremo do rio
o mar se estendia,
como camisa ou lençol,
sobre seus esqueletos
de areia lavada.

(Como o rio era um cachorro,
o mar podia ser uma bandeira
azul e branca
desdobrada
no extremo do curso
— ou do mastro — do rio.

Uma bandeira
que tivesse dentes:
que o mar está sempre
com seus dentes e seu sabão
roendo suas praias.

Uma bandeira
que tivesse dentes:
como um poeta puro
polindo esqueletos,
como um roedor puro,
um polícia puro
elaborando esqueletos,
o mar,
com afã,
está sempre outra vez lavando
seu puro esqueleto de areia.

O mar e seu incenso,
o mar e seus ácidos,
o mar e a boca de seus ácidos,
o mar e seu estômago
que come e se come,
o mar e sua carne
vidrada, de estátua,
seu silêncio, alcançado
à custa de sempre dizer
a mesma coisa,
o mar e seu tão puro
professor de geometria).

O rio teme aquele mar
como um cachorro
teme uma porta entretanto aberta,
como um mendigo,
a igreja aparentemente aberta.

Primeiro,
o mar devolve o rio.
Fecha o mar ao rio
seus brancos lençóis.
O mar se fecha
a tudo o que no rio
são flores de terra,
imagem de cão ou mendigo.

Depois,
o mar invade o rio.
Quer
o mar
destruir no rio
suas flores de terra inchada,
tudo o que nessa terra
pode crescer e explodir,
como uma ilha,
uma fruta.

Mas antes de ir ao mar
o rio se detém
em mangues de água parada.
Junta-se o rio
a outros rios
numa laguna, em pântanos
onde, fria, a vida ferve.

Junta-se o rio
a outros rios.
Juntos,
todos os rios
preparam sua luta
de água parada,
sua luta
de fruta parada.

(Como o rio era um cachorro,
como o mar era uma bandeira,
aqueles mangues
são uma enorme fruta:

A mesma máquina
paciente e útil
de uma fruta;
a mesma força
invencível e anônima
de uma fruta
— trabalhando ainda seu açúcar
depois de cortada —.

Como gota a gota
até o açúcar,
gota a gota
até as coroas de terra;
como gota a gota
até uma nova planta,
gota a gota
até as ilhas súbitas
aflorando alegres).

IV. Discurso do Capibaribe

Aquele rio
está na memória
como um cão vivo
dentro de uma sala.
Como um cão vivo
dentro de um bolso.
Como um cão vivo
debaixo dos lençóis,
debaixo da camisa,
da pele.

Um cão, porque vive,
é agudo.
O que vive
não entorpece.
O que vive fere.
O homem,
porque vive,
choca com o que vive.
Viver
é ir entre o que vive.

O que vive
incomoda de vida
o silêncio, o sono, o corpo
que sonhou cortar-se
roupas de nuvens.
O que vive choca,
tem dentes, arestas, é espesso.
O que vive é espesso
como um cão, um homem,
como aquele rio.

Como todo o real
é espesso.
Aquele rio
é espesso e real.
Como uma maçã
é espessa.
Como um cachorro
é mais espesso do que uma maçã.
Como é mais espesso
o sangue do cachorro
do que o próprio cachorro.
Como é mais espesso
um homem
do que o sangue de um cachorro.
Como é muito mais espesso
o sangue de um homem
do que o sonho de um homem.

Espesso
como uma maçã é espessa.
Como uma maçã
é muito mais espessa
se um homem a come
do que se um homem a vê.
Como é ainda mais espessa
se a fome a come.
Como é ainda muito mais espessa
se não a pode comer
a fome que a vê.

Aquele rio
é espesso
como o real mais espesso.
Espesso
por sua paisagem espessa,
onde a fome
estende seus batalhões de secretas
e íntimas formigas.

E espesso
por sua fábula espessa;
pelo fluir
de suas geléias de terra;
ao parir
suas ilhas negras de terra.

Porque é muito mais espessa
a vida que se desdobra
em mais vida,
como uma fruta
é mais espessa
que sua flor;
como a árvore
é mais espessa
que sua semente;
como a flor
é mais espessa
que sua árvore,
etc. etc.

Espesso,
porque é mais espessa
a vida que se luta
cada dia,
o dia que se adquire
cada dia
(como uma ave
que vai cada segundo
conquistando seu vôo).

...


A U T O  –  R E T R A T O

Estado civil casado
nacionalidade portuguesa
triste se alegre e sorridente quando triste
muito mais egoísta se se veste de altruísta
chefe só de família olhar cansado
calva prometedora e tendência obesa
à beira dos quarenta anos de idade
e ajoujado ao peso de vários passados
tímido e trágico e capas de crueldade
tanta quão tamanho o arrependimento
temendo hoje não tanto já fazer o mal
como fazer algumas ou pior uma só vítima
incoerente e instável ora dado a bons bocados
como logo açoitado pelos ventos dos cuidados
poeta para mais por condição
homem que só pensar sabe afinal fazer
que vive a arte o amor a vida até como destruição
digam vossas mercês como devia ele ser
pois sempre assim seria inútil mesmo renascer


            Madrid, 1972

Ruy Belo

01/08/2012

Meu filho...


 “Por vezes, negoceiam particularmente o bem público; se isto porém é dito publicamente, ofendem-se porque consideram que se trata de uma ingerência na sua vida particular. Todo o filho-de-deus é altamente cioso do prestígio da sua vida particular, porque a vida particular (ou de família) dos filhos-de-deus é quase sempre, de uma ou outra maneira, pública. Trata-se de uma clarificação importante. Todo o filho-de-deus tem sempre um motivo público para os seus actos familiares e um motivo familiar para os seus actos públicos. Todo o filho-de-deus tem vocação pública, dado que se ocupa e preocupa tanto com os outros; no entanto, o grande estilo dele, do filho-de-deus, consiste num modo familiar de ser público, um modo quase sempre tão familiar que é frequente não se saber onde termina o filho-de-deus público e começa o familiar, o outro limiar, como é óbvio.
Por isso sempre

que o filho-de-deus especializado em fazer faz um acordo público, é difícil saber se é um acordo público que traz préstimos particulares ou se é um acordo particular feito de prestações públicas, e o mesmo acontece sempre que ele, o filho-de-deus, faz todas as outras coisas que o filho-de-deus faz, as obras públicas feitas por motivos particulares, os programas de ensino público decretados com intenções particulares, as guerras públicas movidas para obter vantagens particulares, os jornais públicos cujo préstimo é relatar sobretudo os prestígios e desprestígios particulares, os estabelecimentos públicos para ocupações particulares, a assistência pública para lucros particulares, em suma, os negócios públicos feitos para fins particulares (ou de família) e os negócios particulares (ou de família) feitos com meios públicos, e basta.”

Alberto Pimenta in ‘Discursos Sobre o Filho-de-Deus’, 1ªed, Edições Mortas, Porto, 1995  

*
                O tom do autor é um facto capital. Através do tom adivinha-se para quem se está a dirigir: imaginemos uma assistência pouco reflexiva, uma multidão, uma pessoa superficial imprescindível de deslumbrar, aturdir ou agitar; ou então imaginemos um indivíduo desafiador, ou as pessoas que praticam a arte de tagarelar, que tudo acolhem, captam, adiantam-se, ainda que anulem tudo quanto foi escrito.
                Poder-se-ia dizer que algumas pessoas jamais pensam na resposta silenciosa do seu leitor. Escrevem para os seres ávidos de admiração.
                O homem, o poeta entregue à sua inconsciência encontra nesta a sua força e a sua «verdade», conta cada vez mais com a estupidez do leitor.

p.30

*
                O conceito de «grande poeta» produziu um grande número de poetas menores do que seria razoável esperar das combinações da sorte.

p.32

*
                Não ser poeta, escritor, filósofo segundo estas idéias mas como se eu tivesse de ser antes contra elas.
                Até mesmo não ser homem.

p.33

*
                Um livro não é mais do que a síntese de um monólogo do seu autor. O homem ou a alma fala por si mesmo; o autor retira algo desse discurso. A eleição depende do seu amor próprio: compraz-se com tal pensamento se odeia o outro.
                O seu próprio orgulho ou os seus interesses deixam acontecer e aquele que gostaria de ser elege o que é.
                Eis uma lei inevitável.
                Se tivéssemos acesso a todo o monólogo poderíamos descobrir uma resposta exacta para esta questão, mais categórica e que pudesse estabelecer a crítica legítima diante de uma obra específica.
                A crítica quando não se limita a opinar segundo o humor, as predileções e os gostos – ou seja, quando não está a falar de si mesma, sonhando como se estivesse a discutir sobre uma obra concreta –, a crítica ao julgar estaria a comparar as pretensões do autor e o que foi realizado. Enquanto o valor de uma obra se funda na relação singular e inconstante entre uma obra e algum leitor; o mérito próprio e intrínseco do autor constitui a relação entre ele mesmo e o seu desígnio. Tal mérito tem relação com a distância a existir entre ambos: são as dificuldades medidas de acordo com o grau de complexidade para acabar com essa empresa.
               

20/07/2012

MARginal...


MARGINAL  |   microfeira - do -livro alternativo | 
de 25 de Julho a 29 de Julho |
17H – 22H | no
CAIPICOMPANY caipicompany.com

|Praia do Molhe | FOZ |PORTO |




É por aqui que estaremos a banhos entre novidades e manuseados aos preços de ocasião|Edições Mortas, |Edições 50Kg, |Estratégias Criativas| Black Sun editores | Corpos | Farândola ,…, | revistas : Piolho, Última Geração, …,|

11/07/2012

Dona Maria Luísa, tipógrafa...

Excerto do Programa 'Portugal em Directo' da RTP1 dia 9 de Julho de 2012.
(vídeo de qualidade reduzida)

02/07/2012

O Dragão...

'O Dragão Solúvel'. Publicação do Movimento Surrealista Português editado pelo Cineclube de Braga em 1978.

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20/06/2012

Dia 24 de Junho, às 17h00...


«A MÃO AO ASSINAR ESTE PAPEL»

EXPOSIÇÃO / VENDA

de

'poemas manuscritos'


Rua dos Correeiros, n.ª 60, 1.º Esq.
1100-167 Lisboa


dia 24 de Junho às 17h00


18/06/2012

"Subsídio para o suicídio".

"Um dia - como quase todos - acordei sereno estremunhado à noite. Estava farto do mundo em geral e de Portugal em particular. A cortesia era: vou-me matar. Saiu-me isto mas houve uma resposta porreira do outro lado. O que é mais divertido é que a comunicação social estrangeira percebeu que eu estava a brincar. 
Portugal não."

J.C.C.
Rua da Lapa XX-X,
1200 Lisboa

Ex.mo Sr.
De certa forma desenquadrado de e epidermicamente hostil ao tão inculto Surrealismo nacional (movimento irreversível que consiste em Surrar - O - Realismo às Minorias Absolutas através das Maiorias Anónimas) e na fiel linha lunática, tradição suicida e corrented'ar estética da Poesia Portuguesa, venho por esta brevíssima e humilde missiva solicitar à Fundação Gulbenkian, sempre tão prestável e atenta, uma urgente audiência (na pessoa da V. Ex.a com quem, como tenho vindo ao longo dos anos a constatar e sem qualquer lisonja hipócrita, as novas gerações mais prezam o diálogo civilizado e o respeito pela inteligência) audiência essa destinada à concessão de um mísero (face aos vossos fartos recursos) subsídio que, não sendo por certo habitual pedir nem provar, muito honraria o brilho da vossa já quase secular instituição, contribuindo para uma nobre, sã, airosa, decidida e eficaz saída do meu penoso caso lírico pessoal.

Assim sendo, e não ousando abusar muito mais da infinitamente piedosa e tolerante curiosidade de V. Ex.a, passo d'imediato a expor o detalhado rosário de inconfessáveis e vis matérias primas ou sinistros objectos que me propus atribuir um (eventual) orçamento: um revolver (50 mil escudos); munições adequadas (20 mil escudos); um socrático litro de sicuta, um cálice de cobre e uma rodela de manga, para a hipótese de a primeira tentativa se amedrontar (P.V.); algum cianeto e bastante nitroglicerina, para a hipótese da segunda tentativa não passar de um romântico aperitivo ou de uma inconsequente chantagem moral (preço a regatear); cremação do corpo e lançamento de cinzas ao Tejo (500 mil escudos); cachet de 20 palhaços da Companhia de Circo de Lisboa para a citada ceremónia fúnebre (250 mil escudos); cachet da Banda dos Bombeiros Voluntários que chegarem primeiro executando a canção das Crianças Mortas de Mahler, na ocorrência (500 mil escudos, com descontos para poetas e afins); arredondando a coisa deve andar lá perto dos 1000 contos, o que é isto nos tempos que vai correndo? Convenhamos que toda a Morte que se estime não olha a meios para dignificar os seus fins...

Esperando contribuir coma minha modéstia para uma lufada na monotonia da correspondência de que, desejo temê-lo, V.Ex.a será vítima, e desde já agradecendo o vosso empenho generoso, sem mais por ora me subscrevo, com admiração pela paciência de santo de V. Ex.a, exalando confiança, irradiando ansiedade.

Joaquim Castro Caldas 



E aqui a resposta....

Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa - 1, PESSOAL

Ex.mo Senhor Joaquim Castro Caldas
Rua da Lapa XX/X
1200 Lisboa

Lisboa, 31 de Julho 1987

Caro Senhor,

Tenho a honra de acusar a recepção da carta da Vossa Senhoria, sem data mas com lata, na qual solicita subsídio que lhe permita morrer com pompa (e não troco os bb pelos pp) e circunstância.

De início interroguei-me sobre a questão de saber em qual dos quatro fins da Fundação Gulbenkian (artísticos, educacionais, científicos e caritativos) tal desiderato se podia inscrever, mas rapidamente cheguei à conclusão de que em qualquer deles, ou em todos concomitantemente, se inscreveria.
Pensei então em pedir o aliás douto parecer da Agência Barata (se bem que intuitivamente eu adivinhasse que ela qualificaria o orçamento apresentado de sumptuário), mas referi, antes disso, procurar nos nossos arquivos antecedentes pedidos para o mesmo fim e verifiquei sem surpresa que - dada a premente necessidade de reduzir as nossas despesas - todos os numerosos apoios financeiros requeridos para viagens alternativas para Inferno, Céu ou Purgatório foram invariavelmente negados e, como é óbvio, não me parece curial a criação de precedentes.

Nestes termos, sinto informar a V. Ex.a que não é possível atender a solicitação que me dirigiu, ainda que lamente o consequente facto de ficar condenado a viver mais alguns anos. A não ser que - se me permitir a sugestão - opte pela solução da corda, do gancho e do banquinho, solução que, por ser barata, poderá até ser apoiado pela Secretaria de Estado da Cultura. Ou ainda (porque não?) - e eis uma variante absolutamente gratuita - a solução do lago do Campo Grande, desde que obtida prévia autorização do Senhor Eng. Nuno Abecassis.

Entretanto sou de V. Ex.a
Atentamente até ao Outro Mundo,
e muito mais depois,

Pedro Tamen

06/06/2012

Farewell Ray Bradbury

Morre Ray Bradbury, autor de 'Farenheit 451', aos 91 anos


O escritor Ray Bradbury na premiação do Sindicato dos Diretores em 2008
O escritor Ray Bradbury na premiação do Sindicato dos Diretores em 2008 (Getty Images)
Morreu na manhã desta quarta-feira, aos 91 anos, o escritor americano Ray Bradbury, autor de Farenheit 451. Em seus mais de trinta livros, o escritor foi do horror à ficção científica - gênero do qual tornou-se referência, com narrativas de teor político. Publicou também clássicos como As Crônicas Marcianas, histórias espaciais escritas nos anos 50, e Algo Sinistro Vem por Aí, sobre garotos que enfrentam seus medos e frustrações, representados por monstros de um parque de diversões itinerante.
Em Farenheit 451, seu livro mais icônico, escrito em 1953, Bradbury conta a história de um tempo em que bombeiros se convertem em mantenedores da ordem social e incendeiam livros ou qualquer publicação que transmita informações. Em lugar de prateleiras, as paredes das casas possuem telas gigantes que exibem cenas de outras famílias, com as quais se pode dialogar. A obra foi considerada uma metáfora crítica de regimes políticos opressores e anteviu transformações sociais simbolizadas hoje pelos reality shows, junto com 1984, de George Orwell. As Crônicas Marcianas, outro clássico de Bradbury, narrou as histórias da colonização de Marte e criticou indiretamente as paranoias americanas surgidas a partir da II Guerra Mundial.
“Uma bela luz se perdeu no Cosmos”, declarou Sam Weller, biógrafo oficial de Bradbury. Danny Karapetian, neto do escritor, destacou uma passagem de O Homem Ilustrado, seu livro preferido do avô, em que um homem convive com tatuagens que têm vida própria: “Minhas músicas e meus números estão aqui. Eles preencheram meus anos, os anos em que me recusei a morrer. Em função disso escrevi, escrevi, escrevi ao meio-dia ou às 3h da manhã. Para não morrer”. “Seu legado reside em sua obra e, principalmente, nas mentes que o leram, pois lê-lo era conhecê-lo. Foi o maior garoto que conheci”, disse.


Confira leituras essenciais de Ray Bradbury, segundo o blog de seu biógrafo oficial (em inglês)

retirado daqui

Francamente Antoine Doinel, pró que te havia de dar...


02/06/2012

E foi mais ou menos assim...

Lançamento da Revista Piolho 9 no espaço Matéria Prima. (02.06.2012)


Apresentação por Sílvia C. Silva 




A. Dasilva O.

01/06/2012

Um lembra o outro...


A LENDA DO CHINÊS DAS GRAVATAS

Chinês.

A paciência de vender da gravata
até à última.

Chinês.

A paciência de caçar da mosca
até à última.

Chinês.

Fúngala! Fúngala!

Dizíamos nós, meninos,
esfregando o nariz entre o médio e o indicador,
enquanto saltitávamos em torno do chinês das gravatas
numa grande assuada.

Fúngala! Fúngala!

E então ele saiu de Portugal, voltou à China
e caçou da mosca até à última.

Alexandre O’Neill in ‘De Ombro na Ombreira’, 1969.


"China proíbe mais de duas moscas nas casas de banho públicas
Publicado em 2012-05-23 Jornal de Notícias

Duas moscas é o número máximo de insetos que as casas de banho públicas de Pequim vão poder ter. Esta decisão está a agitar as redes sociais chinesas, onde se ridiculariza a medida.
As casas de banho públicas dos aeroportos, estações de comboio, centros comerciais e supermercados de Pequim vão passar a ser inspecionadas, de modo a garantir que o limite de duas moscas não é excedido.

foto DR

Medida é ridicularizada nas redes sociais

De acordo com a informação avançada pelo Gabinete de Imagem da cidade, "se houver mais de duas moscas, o wc público perde 1,33 pontos de um total de 100", sendo que, até agora, "a maioria dos locais inspecionados não excedeu o número de moscas imposto, tal só aconteceu nos mal administrados".
Para cumprir com a nova medida, os funcionários de limpeza responsáveis devem implementar inúmeros sistemas para acabar com as moscas. Aparelhos elétricos, películas de cola ou inseticidas são as opções para a exterminação dos insetos.
Em declraçõe ao "Diário de Pequim", Xie Guomin, do Gabinete de Imagem de Pequim, destacou que em cada casa de banho vai existir um número de telefone para fazer denúncias.
A medida está a agitar as redes sociais chinesas, nas quais os utilizadores ridicularizam a medida.
Sobre a existência de um telefone dentro da casa de banho, uma jovem universitária questiona: "quem vai ter tempo para fazer uma chamada num local do qual se quer sair o mais rapidamente possível?".
Outros utilizadores da "Weibo", a rede equivalente ao "Twitter" na China, escrevem que seria muito mais eficiente melhorar o nível de limpeza das instalações, ao invés de se preocuparem com matar moscas.
Para além das moscas, o Gabinete também recomenda a promoção do uso do tanque de água nas casas de banho públicas e esvaziar os depósitos de lixo utilizados com mais frequência."

30/05/2012

«O Barão» do Branquinho da Fonseca em versão liceal...


Branquinho da Fonseca



1

A tez mais clara... Pariu um nome. Branquéla ou branquinho, é o que os outros manos me chamam... Puta que os pariu... Vêm todos com aquela cena de sermos todos uns escravos e tal... Sou pintor... Yah... gráfites... Tenho nome na rua... O people já conhece as minhas cenas... São diferentes, e em sítios que é uma ’ventura chegar lá... No meu bairro tem lá muitas cenas, antigas... writings... Mas é uma cena que já me desinteressei... Gosto de diversificar... A cena que mais curto é pintar comboios...  Vou sempre pintar sozinho... Preciso de calma para pintar... Se alguém vai comigo só faço merda... Curto pintar! É uma cena que acalma, tás a ver! As ideias vêm-te à cabeça «vrum-vrum», é uma nitidez! Mas para pintar bem, é preciso estar muito tempo quieto... Pensar, ver... Ninguém que eu conheço tem muita paciência... Por isso não levo ninguém atrás... A cena cansa... Exige certa monotonia... Entusiasmo-me com paisagens diferentes e pessoas diferentes, e povos diferentes... E isso vê-se no que pinto!... Mas se for sempre esse o assunto também cansa.


2

Estava a pintar nas paredes de uma escola primária que já tinha estabelecido como spot nos meus passeios...  Quando chegou uma pequena... E ficou a olhar a cena... E eu não gosto que ninguém esteja a ver o work in progress... Não me sinto à vontade!... Sentei-me no degrau da escada a fumar... Ela até estava na descontra, não era muito bonita, mas tinha uns olhos curiosos... E dois dedos de testa... E até gostei dela se ter sentado comigo na escada, fez-me algumas perguntas e foi ela que explicou, pelo alto, que a maior parte das pinturas daquela zona eram dum tal de Barão... E que essa parede era muitas vezes pintada por ele, e que se calhar ele não ia gostar que pintassem ao pé das suas cenas. Depois mudou de assunto e começou a falar da vida no seu bairro, e das histórias do pessoal que se vai safando!... E outros que não!... Mas no fundo, até tinha uma visão optimista. Falei: “Yah, somos todos uns inadaptados!” Disse a cena, mas era mentira. O ser humano é o animal mais adaptável!... Ela ergueu-se, acho que se assustou, quando disse que “yah, é mesmo isso!...” Acho que não gostou de se ouvir... Deve ter achado que se tava a conformar, sei lá!... Passado um nico... Ouço um assobio... Um cão, daqueles fodidos, estava já a cheirar as minhas latas! Por trás de mim, aparece um tipo grande, de boné preto e capuz por cima do boné, tudo preto, disse longe, parando, baixinho:
            “-Tudo!”
O gajo era big... Novo, mas um aspecto bruto, de quem já viu muitas cenas fodidas... Andava devagar, aquela cena impressionou-me... Ele mexia-se: ou lento ou lentamente, era as suas duas velocidades, as suas duas mudanças... Mas estava na sua zona, andava à vontade, sem stresses, parecia o dono daquela merda toda... Olhou para a minha pintura e mirou-me de esguelha com um certo ar de desprezo!... Pensei que estava fodido!... Mas de repente a cara mudou, a rir perguntou-me donde vinha e quem era. Aquilo ainda me deixou mais tenso... Pensei que tivesse a fazer de bonzinho... De amiguinho... Para depois me fazer a folha... Aquela jogada do bad e do good cop... A ver se cola!... Mas o gajo nem ouviu o que eu disse, continuava a rir e a falar. Passado um pouco, pensei que este tipo até é porreiro, o Barão era, afinal, uma pessoa de bem. Mas fui reparando, que o people não se sentia muito à vontade ao pé dele. A pequena, tão faladora, parecia uma parvinha muda... E à primeira oportunidade bazou. Eu achava-o básico... E meio labrego... Mas até estava a achar piada a isso... Disse-me que era o seu convidado para ficar no bairro, inventei bué de histórias... Que não podia... Que tinha que ajudar a minha mãe & tal!... O gajo não quis saber. Que não lhe ia fazer a desfeita... Pôs a mão no ombro e aquela merda é muito África ou então de ciganice, vi logo que tava enrascado e que não me ia safar facilmente...  Rematou com um: “- Quem manda aqui sou eu!” Voltou por instantes a ter um olhar fodido, para logo mudá-lo para um sorriso meio parvo... Achei que tava naquela, de ter encontrado um outro pintor, e que queria conviver e mostrar-me aquele meio. Pegou-me pelo braço, e disse que gostava de ter convidados... Disse-me que eu deveria era ficar lá uma semana e, que se quisesse, que mandasse vir amigos e amigas... Que cena!... Pensei... Respondi que no máximo podia estar dois dias, mas ele endureceu outra vez a cara e respondeu não sei se a brincar ou a sério:
“- Vai-se ver. Quem manda aqui sou eu!”
Puta de sacanice, tou fodido... Este gajo parece maluquinho... Fiz finca-pé no assunto e disse que não podia demorar mais, e que me lembrei que tinha cenas para fazer amanhã de manhã, e que tinha de ir agora, já, para preparar as coisas.
“-Que coisas!” Disse com desprezo. Pondo-se de pé! Levantei-me também e pus uma cara de ofendido pela pergunta. Mas o gajo riu-se e disse:
“- Deixe lá essas coisas!” E voltou a pôr uma das mãos no meu ombro e a caminhar-me em direcção ao bairro... Estava marado!... A facilidade com que fiquei sem a minha liberdade, já estava a estudar um corredor de fuga para me pôr a correr... Quando o Barão, disse já com a cara simpática:
“- Desculpa, não tenho jeito, estas maneiras de falar. É brincadeira... Gosto de brincar com coisas sérias.” Mudámos a conversa... Fiquei curioso... E quis saber mais coisas dele... Continuámos a andar... E já estávamos bem no interior do bairro...
“- Na segunda-feira temos aí uma malta da cena de Coimbra, e umas sócias, que é o fim do mundo! Conheces Coimbra? Pois claro! Quem é que não conhece Coimbra? Até já pintei um burro numa parede de Coimbra. Quando cheguei à Universidade compreendi que aquilo é para burros. Vim a casa, meti as minhas latas no comboio (era um burro preto, uma estampa!... em stencil...) E allez para Coimbra. Juntei o gang, fomos em procissão até à Porta Férrea e ali, de cima do leão, gritei às massas:
- Há aí alguém que tenha dúvidas de que isto (e apontei a Universidade) é para burros? Responderam todos como um trovão. «Naaaão!!!» Pois então, este que tenho aqui vai tomar capelo. Entrámos no pátio da Universidade e pintámos o burro. Com a frase doutorado em Direito. E de capelo e capa... E o caloiros a olhar!... Mas tenho muitas histórias em Coimbra se começo nunca mais acabo...”


3

Chegámos à frente das barracas... Senti um cão a cheirar-me as pernas... Não sei se era o mesmo... Mas parecia tão fodido pra  luta como o outro... Acendeu-se uma luz. Havia mais gente. Mas tudo parecia abandonado há muito ano, onde entrámos com não sei que inquietação são ilhas... Estas, ao primeiro olhar, parecem desertas... Yah!... Isso sim é que era uma cena... Se tudo tivesse deserto!... Ma não!... O Homem aguenta!... Luta!... E somos nós que nos traímos. A vida não é só ganhar dinheiro. Isto é só no início! Para acalmar as necessidades físicas... Tás a ver, aquela cena da pirâmide. (Yah, Pavlov!) Que Pavlov que quê! É Maslow! Yah é isso, enganei-me! Ou dizes a cena direito ou então cala-te!... Mas tava a dizer-te que as forças bazam todas, ao tentar ter o que o people deveria ter de graça... E que só não temos porque os homens se atraiçoam uns aos outros... São inimigos. Isto não é vida! Não pode ser... O melhor que tenho a fazer é bazar desta merda... Ir para os montes, caçar e plantar como os antigos... Tá tudo parado aqui!... E eu também tou para aqui a atrofiar como muitos... A ficar maluco!...

O Barão também é daqueles que tão a atrofiar... Mas acho que não entende estas cenas como eu... Tá na dele... A vigiar para que a merda não descambe do seu controlo... Às vezes tinha uma tirada feliz e esperta, e até parecia que era um rei que falava... Mas só às vezes... É um duro, tem de ser para sobreviver neste bairro... Tem de ser como um animal bravo!... Mais instinto que cabeça...

Disse-me para não tirar o casaco que à noite é um briol... Aquilo estava cheio de buracos e entrava frio por todo o lado. O Barão ficou também com o capuz... Sentámo-nos num colchão... Eu estava com fome... Mas, não disse nada. Sacou de um saco plástico com uma ganza, fez a cena e deu-me para acender... Disse-lhe que fumasse ele que eu tava de estômago vazio!... Chamou-me preconceituoso, e acendeu o charro dando um bafo fundo, começou logo a falar como se aquilo tivesse batido logo... E ia dando pequenas passas... Havia uns panos a fazer de cortinas numa porta que abanavam com o vento... Eu ainda pus-me a olhar, naquela, a ver se aparecia mais alguém. A ver se o Barão tinha mais people dele, ali. Mas estava tudo num silêncio, e a barraca era maior do que pensava. O Barão continuava a contar as suas aventuras, eu às vezes desligava... E estava mesmo com fome. Já tinha olhado algumas vezes para o relógio, mas meio escondido, resolvi ficar vidrado nele, eram dez horas da noite, e eu já não comia nada desde do meio-dia... O Barão continuava a contar os seus filmes, a cagar-se se eu o ouvia ou não... Estava a falar para si... E aquilo via-se que era um gosto para ele... Começou por contar histórias cómicas de lutas e de coragens, mas agora, as histórias tavam a ser cada vez mais tristes e sentidas. Tava a olhar para trás com saudades... A sentir mesmo a cena... Levantou-se e pôs-se logo a fazer pouco de tudo o que disse. “O passado!... Mas o que somos, senão o passado? Fazemos uma cena e já é passado. E não podes mudar a cena!...” E sentando-se deu mais duas passas... Eu estava fraco, a olhar prá ganza, nas mãos grossas do Barão a ser esmigalhada... Não sei se aquilo lhe tava a bater... Ou se ele, só fazia charros para ter o que fazer... Fumava mais um, eu olhei outra vez para a cebola... Dez e meia. Onde é que vou comer a esta hora? O Barão tava outra vez no esmigalha.
“- Não te bate mal sem comeres nada?”
“- Nunca como...”

Tou fodido! Eu com uma larica e em casa de um gajo que não come!
“- Pois eu já trincava qualquer coisa.”

Virou a cara para a cortina da porta e berrou:
“- Jasmin!”
“- Desculpa, men... Quem me conhece... Não faz cerimónias. Não faças cerimónias!”
“- Yah...”

Entrou uma tipa alta, bem-feita, de nariz no ar, e o cabelo esgrouviado de quem acordou agora. E a fazer que não me via. O Barão sempre a tangar não sei sobre o quê... Nem sei se viu-a a entrar, mas ela cortou-lhe o pio com um:
“- Que é...” Que era mais um grito...

Pensei que ia haver estrondo... Já tava a vê-la levar com uma cena qualquer na tola, mas não. Fez um sorriso à Barão, que um gajo não sabe se é a sério ou no gozo:
“- Este meu velho mano... Quer cumprimentar-te... E quer que tragas alguma coisa que se trinque...”

A gaja era boazona. E no pico do seu prazo: deveria ter sido grande toura. Percebia-se que tava ali em casa... À patroa. Bazou para dentro, e eu fiquei a olhar para o abano que fez na cortina. O Barão sacava mais umas passas, no mesmo ou noutro... Sei-lá!... Mas agora tava calado. Eu só pensava no que ela me ia pôr à frente... Saquei de um cigarro para empurrar a saliva para baixo...
“- Tens de ficar cá pra’i uma semana... Para veres bem as cenas que por aqui se passam... É cada filme, não tás a ver...”
“- Yah, era fixe... Mas não posso. Não sou livre...”

O Barão pôs o seu sorriso... Mas estranhei não ter teimado.
“- Esta gaja tá sempre a fazer-me lembrar certas cenas... Não dela... Outras merdas... Esta é uma vaca como as outras... Eu às vezes vendia as minhas conquistas... Sabes a quem?... Ou meu velho... Vê lá a cena... Trocava-as... Quando precisava de guíto... Ou de outras cenas... Ele até se babava... Agora já não!... Não quero nada a ver com essas merdas... Tou mais frio...” (sorria à sua maneira). Passado um coche ao atascar novo charro:
“-Tu... Já curtistes mesmo a sério alguma miúda?”
“- Não.”

E fiquei calado, para puxar a conversa ao gajo... Mas o tipo já se tava a arrepender... Já não queria abrir-se. Aquilo pra mim era divertido... Vê-lo entalado... A querer falar... Mas depois a bufar só ar... Depois lá arrancou, mas não se descoseu!... Falava apenas duma tipa por quem tinha tido uma paixão, não disse o nome, era apenas uma «Ela»...  Mas a cara de enjoado dele já me tava a tirar o apetite... Tentei virar a coisa prás pinturas.
“- Isso não interessa... Mas d’Ela também não tem interesse... Tem, mas não tem... Tás a ver?... Uma vez pintei-a... Mas depois alguém borrou por cima. Não sei se ela o viu antes. É a única que ainda dói... Tás a ver?... Mas agora, para mim a cena é mais animal... Ou fode, ou vai-se foder... São todas putas... E pra mim, tá bem!... Quando precisava de dinheiro levava fêmeas reles ao meu velhote... O gajo era uma javardo... Devia pensar que tava em África a cobrir pretas...”

A Jasmin entrou, e desembrulhou um papel vegetal com bocados de frango de churrasco e batatas fritas de pacote. Não deitei atenção a mais nada. Até que depois de ter devorado a cena, voltei a escutar o que Barão dizia. Fodasse, tava bem melhor... Até me encostei pra trás... E acho que pus um sorriso como o do Barão...
“- ...Uma vez cheguei lá casa. E era ele que tinha arranjado uma... Ele só arranjava merda, mas aquela até era séria... Andava à minha volta fodido a querer-me ver dali pra fora... Para se pôr em cima da gaja à vontade... E eu nada!... Ui!... Ficou bravo!... Saiu pra tomar um copo... E pra ver se eu me chateava e bazava... Mas enquanto tava fora. Adivinha?... Fui eu que trepei na gaja. Vinguei-me!...”

Passou-me o charro acesso... E eu afundei-me mais um bocado no colchão...

“- Que cena?... A gaja ainda era chavalita... Agora me lembro. Sangrou e tudo!... Eu no fim até pedi desculpa. Chi... Que cena marada... E tive também que desaparecer por uns tempos porque o pai dela andava à cata de mim pra me matar.”
“- Yah, que cena!...”

O Barão continuou a recordar mas agora falava mais para dentro... Os charros é que continuavam a rolar... Mas agora era eu, de papo cheio, que dava conta deles...
- Sou mesmo uma besta!... A sério, sou mesmo animal! Tou a ficar como o meu velho. Puta que pariu!... Não... Não pode... Aquele sacana era mais porco... Não tinha remorsos... Eu tenho!... Ele não respeitava nada!... Nem a ele nem aos seus... Acredita... Ele era mil vezes pior”

Quando olhava pra mim, eu só abanava a cabeça... E se o gajo se repetisse... Começava a abanar a cabeça pró outro lado... Era esta a conversa... Mas o Barão foi-se a baixo... Isso via-se... Ergueu-se, e pôs-se a olhar à procura de qualquer cena.
“- Jasmin!...”
“- Ei men... Deixa a 'tar a dormir...”
“- Foda-se, não faz mais nada... Quero que ouças uma cena... Jaaasmin!... A cena pra ouvir música?... Onde tá?”

Ela chegou-se à cortina... Mas ficou no escuro.
“- Onde tá?”
“- Tu partiste-o...”
“- Aonde?... Chama-os!...”

Ela veio até junto de mim buscar o papel e os ossos e foi para a rua!... Deve ter ido deitar fora ao lixo... Pra não ‘tar, ali, a criar cheiro... O Barão voltou a sentar-se e enfiou a mão no saco... Passado uns tempos no meio de um nevoeiro de ganza, ela aparece com um outro pacote de batatas fritas prá gente... O Barão nem tocou nelas... Tava bem, não come!... A mim a ganza dá-me uma fome...
“- Cheira este pólen!... É dos Páquis!... Arranjou-me um amigo meu...”

Destapava o plástico... E dava-me a cheirar...
“- Vou fazer um deste, pra provares!... Manja este cheirinho, tudo natural... Nada de químicos...”

A conversa, não sei bem como, virou prás gajas:
“- As brasileiras são boas pra caralho!...”

Discordei: Disse que as brasileiras só tinham unha e bunda... Que não tinham mais nada... Que gostava mais das nórdicas, e das alemãs... Eram mais malucas...

“- Nada... São umas insonsas... Eu gosto de carne... Sou carnívoro... Gosto de uma gata com as unhas de fora... Dão luta!... É uma cena de selva... Como se diz... yah!... Umas amazonas... Nunca se deixam domesticar, tou-te a dizer a verdade…”
“- As suecas são assim...”
“- Naã... Só têm os olhos e o cabelo loiro... Que é uma cena fixe!... Nisto não há tangas... É preciso ir lá... Com os dentes e com as unhas...”

E olhava pra uma das suas mãos a fazer de garra... Estávamos os dois muito ganzados com a cena paquistanesa... O Barão levantou-se:
“- Vamos brindar a uma gaja.”

E foi para dentro pela porta de cortina... Voltou com duas cervejas de lata... Mas não conseguia abrir... Ficou com a cenita de abrir nas mãos... Então empurrou a coisa para dentro com um dedo gordo... Eu abri a minha sem problemas... Ergueu a lata para o brinde:
“- A que gaja?”
“- A única!”
  
Chegámos a lata à boca ao mesmo tempo... Eu dei um gole... Olhei para o Barão que bebeu tudo de golada, amassou a lata e atirou-a pró chão... Repeti-o: bebi tudo no meu segundo trago... Amassei a lata e depois atirei-a pró chão... Naquela casa tudo ia ao tapete... Deu-me um tapa no ombro e começou a rir... Eu ainda não o tinha visto rir daquela maneira, era uma cena aberta... E simpática...
“- Vamos.”

4

Fomos lá pra fora... Andámos um pedaço às voltas no bairro... Mas não me lembro do que andámos a fazer. E nem sei o tempo que demorámos. Lembro-me de não termos visto ninguém... Às vezes parecia que ouvíamos uns passos... Mas não víamos ninguém... Estávamos outra vez à porta da barraca e entrámos. A Jasmin tava a apanhar as latas do chão...
“- Quero comer. E traz duas latas...”

Começou a rir, a rir... Eu também...
“- Ah... Sempre comes?...”

O Barão ria, ria... Eu também... Doía-me o peito de tanto rir...O Barão olhava para a Jasmin com as latas amassadas nas mãos... Apontava-as e escangalhava-se a rir...