15/02/2012

WCW


PATERSON
do Livro I

Prefácio

"O rigor da beleza é o alvo da busca. Mas como se poderá encontrar a beleza se ela está encerrada na mente, para além de toda admoestação?"

     Compor um começo
     com particularidades
     e torná-las gerais, arrolando
     a soma, por meios imperfeitos -
     Farejando as árvores,
     um cão qualquer
     num bando de cães. O que
     mais ali? E que fazer?
     Os outros debandaram -
     atrás de coelhos.
     Só o estropiado permanece - sobre
     três pernas. Coça-te adiante e atrás.
     Engana e come. Desenterra
     um osso embolorado

Pois o princípio indubitavelmente é
o fim - já que de nada sabemos, puro
e simples, para além
de nossas próprias complexidades.

                              E no entanto
não há nenhum retorno: rolando para fora do caos,
prodígio de nove meses, a cidade
o homem, uma identidade - e nunca poderia
ser de outra maneira - uma
interpenetração, em ambos os sentidos. Rolando
para fora! obverso, reverso;
o bêbado o sóbrio; o renomado
o grosseiro; um só. Na ignorância

um certo saber , saber
não-disperso, seu próprio desbarato.

                                 (A múltipla semente,
apinhada de detalhes, azedada,
fica perdida no fluxo e a mente,
distraída, vai-se flutuando com a mesma
escuma)

A rolar, a rolar prenhe de
números.

                     É o sol ignorante
erguendo-se no rastro de
erguidos sóis vazios, pelo que neste mundo
jamais um homem poderá viver a gosto no seu corpo
a não ser morrendo - e sem saber-se
morrendo; este no entanto é o
desígnio. Renova-se a si mesmo .
de tal modo, em soma e subtração,
andando para cima e para baixo.

            e o ofício,
subvertido pelo pensamento, a rolar para fora, cuide-se
ele de não se voltar tão-só para a
escrita de poemas estagnados...
Mentes como camas sempre feitas,
                          (mais pedregosas que uma praia)
relutantes ou incompetentes.

                              A rolar, o topo para cima,
sob, empuxo e retrocesso, um grande estardalhaço:
alçado feito ar, transportado, multicolorido, um
detrito dos mares -
da matemática a particularidades -
                                 dividido como as orvalhadas
neblinas flutuantes, que as chuvas vão lavar e
recongregar num rio, um rio que corre
e que dá voltas:

                                conchas e animálculos
geralmente, e assim até ao homem,                            

                                 até Paterson.

 trad. José Paulo Paes, do livro "Poemas" de William Carlos Williams. Companhia das Letras. 1987)

14/02/2012

Quem tem mestre?...

Mestre Tipógrafo Casimiro Martins nas Edições 50kg
Para informações sobre o trabalho gráfico de Casimiro Martins siga por AQUI 

11/02/2012

Pare, Escute e Olhe!...

M. S. Lourenço 
M.S. LOURENÇO «Ler não é olhar é ouvir»

    Embora o fim do culto da leitura tenha sido previsto já em 1962 por Marshall Mac Luhan no seu estudo sobre a decadência da Imprensa intitulado «A Galáxia de Gutenberg», o numero de filósofos da cultura que desde então profeciam o desaparecimento do livro e da leitura nunca deixou de aumentar. A designação genérica de «Pessimismo Cultural» tem sido justamente adoptada para caracterizar esta profecia, cujas origens no entanto foram formadas pelo Pessimismo Cultural de Nietzsche e de Oswald Spengler.
     Há na verdade um conjunto crucial de experiências que tem que ser interpretado e é justamente na constituição dos conceitos necessários à sua teorização que tem que residir o nosso primeiro esforço. Nos países industrializados, portanto herdeiros e actuais portadores da cultura de Gutenberg, foi introduzido o dever escolar, por meio do qual o analfabetismo se torna legalmente impossível, como sendo a pedra sobre a qual o edifício da Cultura deve assentar. Neles a rede de bibliotecas públicas e de instituições privadas às quais o público tem acesso não tem parado de crescer neste século. Também o número de livros portáteis e acessíveis em preço, de publicações periódicas quer especializadas quer de interesse geral tem-se gradualmente tornado também acessível e, nestas condições, o instrumentário de leitura nunca foi tão fácil de alcançar como no nosso fin de siècle. É perante este conjunto   de factos que a emergência do fenómeno do analfabetismo secundário, nos países com esta tradição cultural, constitui uma dificuldade teórica difícil de enquadrar e muito menos de explical satisfatoriamente.
     Duas posições são in limine possíveis. Em primeiro lugar é possível seguir o padrão de pensamento acima descrito como pessimista, e decidir que na verdade se chegou ao fim do culto do livro e da leitura e que estamos já no limiar da era de uma grande plebe televisual, a qual se caracterizará pelo culto de imagens visuais simplificadas, transmissíveis por um monitor de televisão ou de computador. Embora este pareça ser o actual curso dos acontecimentos, ele não tem no entanto o carácter de um desenlace fatal. A esta é possível contrapor uma segunda possibilidade segundo a qual o que está a terminar é apenas uma forma de leitura, a qual de resto só foi prevalente desde a invenção de Gutenberg. E como seria completamente absurdo começar por datar a Cultura apenas a partir da invenção de Gutenberg, é igualmente absurdo julgar que o fim do culto do livro e da leitura significa também o fim da Cultura.
     A invenção de Gutenberg tornou possível a forma de leitura a que poderíamos chamar «leitura visual», a qual consiste na impressão de que ter os olhos em contacto com a página escrita é a condição suficiente da leitura. Mas esta impressão, tal como a generalidade das impressões visuais, não é correcta, uma vez que a página impressa, quer de poesia quer de prosa, constitui apenas um conjunto de indicações, o qual de maneira nenhuma se pode identificar com a totalidade da mensagem a transmitir pela obra de arte literária. A página impressa está para a obra de arte literária na mesma relação que a partitura musical está para a     
obra de arte musical. E assim como só a realização sonora de uma partitura pode definir a obra de arte musical, assim também só a realização sonora de um texto impresso pode determinar o contorno definitivo da obra de arte literária.
     Assim torna-se necessário fazer uma nova reflexão sobre o acto de leitura até se chegar à ideia de que ler não é ver, mas é antes e acima de tudo OUVIR, de modo a que a leitura visual dê lugar definitivamente à leitura musical. Gostaria a título de ilustração mencionar alguns exemplos, os quais podem tornar esta tese ainda mais inteligível. Em Poesia existe uma gravação de Yeats de alguns dos seus poemas líricos. Para mim a experiencia musical inesquecível permanecerá sempre a leitura que Yeats faz do seu poema «I shall rise and go to Innisfree» onde talvez pela primeira vez fui conduzido à ideia de que o poema impresso «I shall rise and go to Innisfree» é apenas uma parte de todo o poema, a totalidade do qual só nos é apresentada através da realização sonora feita por Yeats.
     A divisão em si artificial entre Poesia e Prosa não conduz a uma relativização desta ideia, no sentido em que só em Poesia é que a literatura musical pode ter lugar. Existe também em disco uma gravação de uma leitura de James Joyce de um fragmento do capítulo de «Finnegans Wake», conhecido por Anna Livia Plurabella, em que a qualidade musical da leitura é de tal maneira esmagadora que se torna irrelevante colocar a questão de saber se afinal se classifica o texto como Poesia ou como Prosa, uma vez que é com certeza Música.
     Resta considerar o género de prosa narrativa, conto ou romance, em que a linguagem se move nos aparentes limites do   quotidiano. Este género pareceria à primeira vista inacessível a um tratamento musical da sua leitura: mas Thomas Mann provou justamente o contrário ao gravar a leitura da sua pequena narrativa «O Acidente Ródoviário», onde mais uma vez se torna irrecusavelmente óbvio que a narrativa impressa só narra uma parte da totalidade da história: só a voz e a elocução de Thomas Mann são capazes de reproduzir a totalidade da pequena obra de arte.
     Assim a palavra e o som podem ser postos em correspondência, de modo a que o significado intencionado pela obra de arte literária possa ser agora expresso pela massa sonora a que dá origem. O veículo do sentido deixa de ser apenas a palavra impressa para incluir também a sua realização sonora. Para se poder exprimir o conteúdo musical que jaz depositado na mancha impressa é necessário abandonar o preconceito, infelizmente tão enraizado, de que entre a fala e o canto existe uma contradição insuperável. Devemos justamente à Segunda Escola de Viena, e a Alban Berg em particular, ter-nos libertado deste preconceito e ter-nos deixado finalmente ver que entre a fala e o canto existe, ao contrário, uma progressão de possibilidades.

M.S. Lourenço
In ‘A Phala’, n.º 23, Abril/Maio/Junho, Assírio & Alvim, Lx, 1991.

06/02/2012

E foi mais ou menos assim...

Apresentação do livro «A Metafísica das T-shirts Brancas» de Miguel Martins (foto de Maria)

Leitura de alguns poemas do livro «A Metafísica das T-shirts Brancas» por Miguel Martins (foto de Maria) 

Bar do Teatro «A Barraca» apresentação de dois livros de Miguel Martins  «A Metafísica das T-Shirts Brancas» das Edições 50kg e  "Um Homem Sozinho" das Edições Língua Morta (foto de Maria)

« Um Homem Sozinho» das Edições Língua Morta com apresentação de Inês Dias e Luís Henriques (o autor da capa)  - (foto de Maria)

Apresentação do livro « Um Homem Sozinho» das Edições Língua Morta com Inês Dias e Luís Henriques (o autor da capa) (foto de Maria)  

Edições Língua Morta - Diogo Vaz Pinto e David Teles Pereira (foto de Maria)

02/02/2012

T-shirts and all...


Neste fim-de-semana em que a temperatura vai baixar uns grãozinhos… Uma ‘t-shirtzinha’ sempre ajuda engrossar a roupa ao pêlo… E como não há calor como o humano levem ‘um homem sozinho’…   


01/02/2012

«Exemplum»

Eu acho que é cânone... Mas é capaz de ser uma minolta... de qualquer forma foi o Arnaldo Saraiva que a tirou em 1980 no Porto.


HERBERTO HELDER Por exemplo

                Ajudai-me potências lexicais, morfologias, sintaxes, tradições e memórias do dito, conversa do mundo. É fútil escrever: ilegível – e construir uma teoria lógica da ilegibilidade, uma tradição também, memória, «contexto», como eles designam, e decorre tudo isso do ilegível equívoco das transposições: transpor do instável e incontrolável para o estatuto controlável; com o pouco das cabeças quer entender-se a sensível cadeia das coisas que transitaram, representadas, traduzidas, apresentadas, das correntes da terra para as correntes do poema. Que recurso é este, que desentendimento, se não é só lateralidade, periferia, onde está o coração vivo e central? Rimbaud chega a Paris, o corpo é grande e os gestos não alcançaram ainda o tamanho do corpo, a voz para fora não possui ainda a melodia própria mas a voz interior já se casou com a razão do tempo, que poeta! O inadvertido Cros põe-se a inquirir: porquê tal palavra em vez de outra, e este ritmo porquê?, e aquela imagem? E o adolescente prodigioso, comendo sopa, não diz nada. Taciturno! Era um conversador péssimo. Talvez fosse possível explicar por aproximações, fornecendo imagens de imagens, metáforas de metáforas, criando um novo poema à margem do poema criado; toma-se isto por explicação? Talvez Cros o tomasse, mas Rimbaud, ele, não era explicador de coisa nenhuma: ardia, e lá estavam com perguntas sobre o fogo: se era de lenha, se de gás, se aquilo era papel queimado; e enquanto ele devorava a sopa não viam que se tratava do próprio, indefectível, simples, indeferível, ali à mesa, tão alto consumido das suas labaredas. Compreendem-se formas assim, há qualquer pequeno motivo para o grande motivo, essas formas podem ser mudadas? As linhas para onde pretendem transpor a ilegibilidade rimbaldiana, de modo a conduzi-la a uma vagarosa e minuciosa legibilidade, são as mesmas, sempre, para toda a poesia, e nessas linhas não se encontra escrita a música miraculosa nem a revelação nem o superlativo encontro das coisas nem a inteligência súbita do mundo. São formas ilegíveis; lê-las é a maneira única de ler: são as únicas legíveis para essa maneira única de ler. Claro, a metáfora extrema que é a realidade, a mais funda, a realidade fundada, fundamental, é uma imediata trama de conexões em nome, pois ao princípio era a acção do nome, o fiat lux faz a luz, o nome esclarece a coisa que alimenta o nome. As incroyables Florides rimbaldianas são as Floridas de uma cartografia assegurada pela aparição, a iluminação. Leia-se iluminadamente.
                Au fond ce que dit Rimbaud n’a pas de sens; je veux dire: de sens vers nous. Son but est prochain, immédiat, égoïste. En écrivant il ne travaille qu’à se débarrasser de son innocence. (Jacques Rivière)
                Disseram: não encontramos dificuldade em entrar nos poemas. De facto não encontravam. E eram desconhecidos circunstanciais, não tinha nada nas algibeiras biográficas, semióticas, psicanalíticas, ideológicas, simbólicas, nada, não eram acrobatas teóricos, vinham de longe, dotava-os apenas um talento virgem, a virtude de manejar perguntas que em si mesmas achavam respostas.
                Hermético. Coisa imemorial, esta, uma coisa insistida para arrumo de casas, anda-se pelos quartos, alguém tropeça nos móveis, cuidado, uma visita guiada. O hermetismo é um bónus à insolvência leitora. Explica-se. Não se explica a atenção mas a desatenção. Generosamente. Já foram tão abundantes que explicaram tudo. As explicações eram tão miúdas no seu delírio que a gente se inteirava na incalculável reserva e engenhosidade dos recursos ignorantes. A ignorância é muito mais brilhante que a ciência. Sabe muitíssimo mais.
                O sabido dos poemas era decerto bastante menos que o sabido dos explicadores, era igual ao que sabiam os cúmplices, os cúmplices sabiam entrar neles e andar e conspirar lá dentro com móveis e imóveis. Porque os entendiam exactamente dentro, entendiam-se com eles, por dentro, os cúmplices, rápida entrada na casa, portas abertas, desenvoltura pelos corredores adiante. Parece que só se pode dar razão ao entendimento imediato com razoes habitadas sempre por essa luz cardeal primeira, e essas razões são apenas parcimoniosos auxílios à inocência sabedora: escoras, apoios, razões da razão.
                Não cabe a um poeta «explicar-se», talvez não cabe a ninguém esse contrabando de uma zona para outra, pertence tudo completamente à zona de origem; nem existe legalidade nenhuma em deslocar os poemas deste lado para aquele lado, a poesia não é uma agência de transportes.
                Que um poema é ilegível numa pauta de legibilidade ou que pelo contrário é nela legível assemelha-se bastante à arrogância e violência políticas do poder de uma forma sobre todas as outras. O mais directamente legível nos poemas – sofram-no estes tempos de literalidade conversada – pode ser o menos legível na poesia.
                Os poemas são instantâneos, aparecidos. Não há chaves porque não há fechaduras. Os poemas estão lá. Reclamam apenas a soberania do seu território.
                Não se pede (pedir-se-ia antes que tivessem a astúcia de entender a espécie de entendimento pedido) que tornem aberto o fechado; os poemas hão-de permanecer fechados após todas as desocultações e hão-de ser abertos para quem neles entre como numa casa oferecida.
                Àqueles que os acharam assim, uma casa habitavelmente fácil, quis mover-se como gentileza protocolar a algumas pequenas curiosidades, disposição das dependências, os materiais, as vistas, as vantagens, circunstâncias da electricidade, do gás, da água, o funcionamento. Convidou-se por exemplo para assistirem à arrumação, à «montagem», um pouco como se assiste a uma montagem cinematográfica. Isto é uma moviola. Que não – responderam. Responderam que se assiste logo mesmo sem assistir, que essa montagem é inerente aos poemas, às coisas que estão neles, às coisas do mundo relacionadas em relações de poema, que a montagem é a sua coerência, o modo insubstituível e irrecusável de serem assim. Eram argumentos peremptórios. Vinham do coração do poema, vinham para fora, para onde era visível. Cá estavam os interlocutores providenciais de Mandelstam, os destinatários, vozes da voz, ouvidos do ouvido. Ao menos agora concordava-se com o mundo, o mundo concordava.
                Quando acabou de ler o manuscrito de Une Saison en Enfer, a atónita Viúva Rimbaud – como ela mesma firmava a correspondência – inquiriu do filho qual o significado daquilo que lera. Arthur respondeu que significava literalmente e em todos os pormenores o que lá estava. Bom. Ajudemos um pouco esta espécie de viúvas: para cada autor o significado de cada poema é literal. Se as viúvas puderem – que diabo!, alguma coisa hão-de elas poder –, encontrem essa literalidade. Suspeito de que nunca a encontrarão, porque ou se entende tudo como coisa óbvia, digo: a literalidade do autor coincide com a literalidade do leitor, ou não existe socorro para acudir à viuvez. Merda. Basta de conversas à beira-mar quando o mar está aí, invitation au voyage, o mar espera o bateau ivre.

Herberto Helder
In ‘A Phala’, n.º 69, Abril, Assírio & Alvim, Lx, 1999.

Morreu João Ulisses... (1947-2012)


da pérola do orvalho primeiro
recebi das vossas mãos a alegria
e o meu coração foi o mundo inteiro
por me ensinarem da noite o dia...

                 ensinaram-me este
                          espelho

                 que reflecte sempre a mesma
                          saudade

                                                         
                                                                 Ulisses

Na perda do terreno e no homem ao mar...

Averno: «Nos últimos anos a poesia, e a literatura, perderam terreno. Isso não é uma catástrofe. A poesia dá-se bem em condições adversas»


Nascida em 2002, e com 59 títulos editados desde então, a Averno conquistou com esse escasso catálogo uma reputação assinalável na «linha da frente» da edição portuguesa de poesia. Elegendo algumas (poucas) referências entre os poetas portugueses de períodos anteriores, de António Manuel Couto Viana e António Barahona a João Miguel Fernandes Jorge e Joaquim Manuel Magalhães, a Averno distinguiu-se sobretudo por apostar num conjunto de poetas da nova geração: Rui Pires Cabral, Manuel de Freitas, José Miguel Silva, Vítor Nogueira e, mais recentemente, Miguel Martins, Renata Correia Botelho ou Diogo Vaz Pinto. Não descurando a edição de poetas em tradução, a editora singularizou-se, logo no seu início, pela edição da antologia Poetas sem Qualidades, responsável por um longo e polémico debate na cena poética e crítica portuguesa, e pela edição de uma revista de poesia e crítica, Telhados de Vidro, hoje no seu nº 15. Seguindo uma velha e sempre actual lição, a Averno tornou os seus livros reconhecíveis pelas opções gráficas assumidas, as quais, após algumas hesitações iniciais, estabilizaram, em grande medida por influência de Olímpio Ferreira, nas capas em kraft, na avareza no uso da cor e nos formatos «de bolso». Tudo a contra-corrente de um mercado cada vez mais rendido a cores, brilhos e relevos sem pertinência ou sentido. Não surpreende que a Averno se tenha tornado numa espécie de exemplo a seguir por todas as pequenas e dinâmicas editoras que vão preenchendo o espaço que as editoras tradicionais ocuparam, até há pouco, na edição de poesia.
Razões mais do que suficientes para irmos ouvir Inês Dias eManuel de Freitas, o duo que assume a condução editorial da Averno. Agradecemos a ambos a disponibilidade revelada.
TP. Quantas pessoas constituem a Averno?
A. A Averno é constituída apenas por duas pessoas, no que respeita a decisões editoriais: Inês Dias e Manuel de Freitas. Porém, e desde o primeiro momento, tivemos o privilégio de contar com o apoio gráfico do Olímpio Ferreira, que soube dar um rosto sóbrio e original à editora. Após a morte do Olímpio, que por pouco não foi o fim de tudo no plano editorial, continuámos graças ao entusiasmo e à disponibilidade de pessoas como Pedro Serpa, Inês Mateus ou Diogo Vaz Pinto. De Braga, com enorme zelo, a Carla Gaspar vai-nos actualizando o blog. E há também os autores, os ilustradores, os impressores. O que, em rigor, nos permitiria dizer que a Averno é constituída por vinte ou mais pessoas essenciais para a feitura dos livros.
TP. Podem tentar descrever o público da Averno?
A. Não fazemos uma ideia precisa de qual seja o público da Averno, embora saibamos que temos leitores entre os vinte e os oitenta anos. Haverá certamente um pouco de tudo nesse público: leitores de poesia tout court, curiosos, coleccionadores de pequenas tiragens, alfarrabistas, etc. Conhecer melhor esse público é, aliás, uma das razões pelas quais gostamos de participar em actividades como as Feiras Laicas.
TP. Pelo volume residual de prosa que editam, podemos definir a Averno como uma editora de poesia?
A. Damos pouca importância a definições. Não é por acaso que a Telhados de Vidro, revista que publicamos desde 2003, se prefere furtar à questão do género; é tão-só uma revista onde se encontram espaçadamente determinadas vozes. Em última análise, olhando para o nosso pequeno catálogo, poderia dizer-se que Margaret Millar é tão poética como José Mateos. Nesse sentido, não é erróneo classificar a Averno como sendo uma editora de poesia. Mas a poesia, gostamos de acreditar, não acontece necessariamente em verso.
TP. Qual é o circuito de distribuição dos vossos livros?
A. Somos nós próprios que fazemos a distribuição, em cerca de vinte livrarias nacionais. A pé, de táxi, de boleia ou via postal.
TP. Qual é a tiragem média dos vossos livros?
A. A nossa tiragem média é de 300 exemplares. Em casos especiais (a Telhados de Vidro ou obras que implicam pagamento de direitos de autor) podemos chegar aos 500 exemplares. Mas nunca mais do que isso.
TP. O que é para a Averno um «sucesso editorial»?
A. O nosso único «sucesso editorial» terá sido Poetas sem Qualidades (2002), por motivos que desconhecemos. A edição esgotou em menos de dois meses. Mas é muito raro chegarmos assim tão rapidamente aos supostos 300 leitores assíduos de poesia que se convencionou haver em Portugal: no nosso catálogo, já com 59 publicações (entre os livros e os vários números da revista), só 12 títulos se encontram esgotados.
TP. Qual é a natureza da relação que mantêm com os vossos autores?
A. Com raríssimas excepções, se é que as há, os nossos autores são (ou tornaram-se) nossos amigos. Bebemos juntos, jantamos regularmente, dançamos a ouvir Squirrel Nut Zippers, cultivamos uma sadia promiscuidade boémia e literária.
TP. Quais eram os vossos modelos de editor quando apareceram?
A. Gostamos, inequivocamente, do editor interventivo, do editor-autor que acompanha vírgula a vírgula cada obra. Nesse aspecto, Vítor Silva Tavares terá sido um dos poucos modelos possíveis a referir. Mas, e já no que diz respeito à dignidade gráfica do livro, são também importantes os exemplos da Afrodite, da Contraponto, da Frenesi, da Fenda, da Hiena ou da Assírio & Alvim.
TP. A Averno parece funcionar para a actual vaga de pequenas editoras de poesia como a referência que, no panorama anterior, era desempenhada pela & etc. Como vêem esse actual panorama editorial e em que editoras das novas se revêem com mais agrado?
A. Não sobrevalorizemos a Averno, que nem dez anos de actividade editorial tem. Não conseguimos, de todo, ver-nos como uma «referência». Quanto a simpatias por pequenas editoras mais recentes, destacaríamos sem qualquer hesitação a Letra Livre, a Língua Morta, a Poesia Incompleta, a Oficina do Cego, a Tea for One.
TP. A Averno apareceu muito associada à afirmação de uma poética específica, a dos chamados «Poetas sem qualidades». Continuam a reivindicar essa poética ou acham que ela não descreve todos os autores que editam?
A. Como já vem sendo hábito entre nós, quase ninguém percebeu nada. Poetas sem Qualidades nunca pretendeu ser uma poética normativa ou um programa de sentido único. Era, sumariamente, um desabafo, pois já não havia (nem há) paciência para certa tardo-poesia fossilizada, seja ela de quem for. Olhando com um pouco de atenção para essa antologia, depressa percebemos que Rui Pires Cabral e Nuno Moura são tão parecidos como Gyia Kancheli e Steve Reich. Mais do que uma poética, inverificável, existirá uma ética comum (de António Barahona a Diogo Vaz Pinto, passando por Ana Paula Inácio ou Jorge Roque, entre tantos outros) que se traduz, em traços largos, por um desapreço pelo espectáculo grotesco em que se transformou o meio literário português.
TP. Como vêem a situação actual do livro de poesia, e mais latamente da literatura, no mercado actual?
A. Tornou-se evidente, nos últimos anos, a posição minoritária da poesia, e a literatura (em geral) foi perdendo terreno quer nas livrarias, quer nas críticas da imprensa. Isso não é uma catástrofe. A poesia dá-se bem em condições adversas, supera-se a si mesma.
TP. Os livros da Averno respeitam um programa tipográfico bastante reconhecível e estrito: formato pequeno, capa em kraft, preto e branco, colaboração com alguns ilustradores, ou seja, sobriedade e uma forma de «classicismo» alternativo. Trata-se de uma opção de gosto ou se tivessem outros meios encarariam fazer livros diferentes?
A. Fazemos os livros como efectivamente gostamos de fazer, privilegiando uma certa sobriedade. Se os meios fossem outros, as opções gráficas manter-se-iam.
TP. Do ponto de vista da tipografia actual, qual é a vossa fronteira? A impressão digital? O uso da cor?
A. Nós usamos cor, de quando em quando, quando nos apaixonamos por uma ideia que a exija. A tipografia digital, para já, não nos alicia muito. Fronteiras, em rigor, são apenas as da conta bancária e as da imaginação.
TP. Como vêem a recuperação da tipografia a chumbo, tal como a pratica entre nós, por exemplo, a Oficina do Cego? Já a ponderaram para os vossos livros?
A. Achamos extremamente salutar a recuperação da tipografia a chumbo, que outros países menos estultos souberam preservar e que em Portugal, quase sem excepção, passou a ser vista como uma velharia inútil. Consideramos, pois, extremamente valioso o surgimento de projectos como a Oficina do Cego ou a 50 Kg. Não é impossível que a Averno venha um dia a fazer uma edição nesses moldes, por exemplo em parceria com elementos da Oficina do Cego. Contudo, o nosso volume de edições, embora modesto se comparado com o de grandes e médias editoras, obriga-nos a recorrer ao offset.