M. S. Lourenço |
M.S. LOURENÇO «Ler não é olhar é ouvir»
Embora o fim do culto da leitura tenha sido previsto já em 1962 por Marshall Mac Luhan no seu estudo sobre a decadência da Imprensa intitulado «A Galáxia de Gutenberg», o numero de filósofos da cultura que desde então profeciam o desaparecimento do livro e da leitura nunca deixou de aumentar. A designação genérica de «Pessimismo Cultural» tem sido justamente adoptada para caracterizar esta profecia, cujas origens no entanto foram formadas pelo Pessimismo Cultural de Nietzsche e de Oswald Spengler.
Há na verdade um conjunto crucial de experiências que tem que ser interpretado e é justamente na constituição dos conceitos necessários à sua teorização que tem que residir o nosso primeiro esforço. Nos países industrializados, portanto herdeiros e actuais portadores da cultura de Gutenberg, foi introduzido o dever escolar, por meio do qual o analfabetismo se torna legalmente impossível, como sendo a pedra sobre a qual o edifício da Cultura deve assentar. Neles a rede de bibliotecas públicas e de instituições privadas às quais o público tem acesso não tem parado de crescer neste século. Também o número de livros portáteis e acessíveis em preço, de publicações periódicas quer especializadas quer de interesse geral tem-se gradualmente tornado também acessível e, nestas condições, o instrumentário de leitura nunca foi tão fácil de alcançar como no nosso fin de siècle. É perante este conjunto de factos que a emergência do fenómeno do analfabetismo secundário, nos países com esta tradição cultural, constitui uma dificuldade teórica difícil de enquadrar e muito menos de explical satisfatoriamente.
Há na verdade um conjunto crucial de experiências que tem que ser interpretado e é justamente na constituição dos conceitos necessários à sua teorização que tem que residir o nosso primeiro esforço. Nos países industrializados, portanto herdeiros e actuais portadores da cultura de Gutenberg, foi introduzido o dever escolar, por meio do qual o analfabetismo se torna legalmente impossível, como sendo a pedra sobre a qual o edifício da Cultura deve assentar. Neles a rede de bibliotecas públicas e de instituições privadas às quais o público tem acesso não tem parado de crescer neste século. Também o número de livros portáteis e acessíveis em preço, de publicações periódicas quer especializadas quer de interesse geral tem-se gradualmente tornado também acessível e, nestas condições, o instrumentário de leitura nunca foi tão fácil de alcançar como no nosso fin de siècle. É perante este conjunto de factos que a emergência do fenómeno do analfabetismo secundário, nos países com esta tradição cultural, constitui uma dificuldade teórica difícil de enquadrar e muito menos de explical satisfatoriamente.
Duas posições são in limine possíveis. Em primeiro lugar é possível seguir o padrão de pensamento acima descrito como pessimista, e decidir que na verdade se chegou ao fim do culto do livro e da leitura e que estamos já no limiar da era de uma grande plebe televisual, a qual se caracterizará pelo culto de imagens visuais simplificadas, transmissíveis por um monitor de televisão ou de computador. Embora este pareça ser o actual curso dos acontecimentos, ele não tem no entanto o carácter de um desenlace fatal. A esta é possível contrapor uma segunda possibilidade segundo a qual o que está a terminar é apenas uma forma de leitura, a qual de resto só foi prevalente desde a invenção de Gutenberg. E como seria completamente absurdo começar por datar a Cultura apenas a partir da invenção de Gutenberg, é igualmente absurdo julgar que o fim do culto do livro e da leitura significa também o fim da Cultura.
A invenção de Gutenberg tornou possível a forma de leitura a que poderíamos chamar «leitura visual», a qual consiste na impressão de que ter os olhos em contacto com a página escrita é a condição suficiente da leitura. Mas esta impressão, tal como a generalidade das impressões visuais, não é correcta, uma vez que a página impressa, quer de poesia quer de prosa, constitui apenas um conjunto de indicações, o qual de maneira nenhuma se pode identificar com a totalidade da mensagem a transmitir pela obra de arte literária. A página impressa está para a obra de arte literária na mesma relação que a partitura musical está para a →
obra de arte musical. E assim como só a realização sonora de uma partitura pode definir a obra de arte musical, assim também só a realização sonora de um texto impresso pode determinar o contorno definitivo da obra de arte literária.
Assim torna-se necessário fazer uma nova reflexão sobre o acto de leitura até se chegar à ideia de que ler não é ver, mas é antes e acima de tudo OUVIR, de modo a que a leitura visual dê lugar definitivamente à leitura musical. Gostaria a título de ilustração mencionar alguns exemplos, os quais podem tornar esta tese ainda mais inteligível. Em Poesia existe uma gravação de Yeats de alguns dos seus poemas líricos. Para mim a experiencia musical inesquecível permanecerá sempre a leitura que Yeats faz do seu poema «I shall rise and go to Innisfree» onde talvez pela primeira vez fui conduzido à ideia de que o poema impresso «I shall rise and go to Innisfree» é apenas uma parte de todo o poema, a totalidade do qual só nos é apresentada através da realização sonora feita por Yeats.
A divisão em si artificial entre Poesia e Prosa não conduz a uma relativização desta ideia, no sentido em que só em Poesia é que a literatura musical pode ter lugar. Existe também em disco uma gravação de uma leitura de James Joyce de um fragmento do capítulo de «Finnegans Wake», conhecido por Anna Livia Plurabella, em que a qualidade musical da leitura é de tal maneira esmagadora que se torna irrelevante colocar a questão de saber se afinal se classifica o texto como Poesia ou como Prosa, uma vez que é com certeza Música.
Resta considerar o género de prosa narrativa, conto ou romance, em que a linguagem se move nos aparentes limites do quotidiano. Este género pareceria à primeira vista inacessível a um tratamento musical da sua leitura: mas Thomas Mann provou justamente o contrário ao gravar a leitura da sua pequena narrativa «O Acidente Ródoviário», onde mais uma vez se torna irrecusavelmente óbvio que a narrativa impressa só narra uma parte da totalidade da história: só a voz e a elocução de Thomas Mann são capazes de reproduzir a totalidade da pequena obra de arte.
Assim a palavra e o som podem ser postos em correspondência, de modo a que o significado intencionado pela obra de arte literária possa ser agora expresso pela massa sonora a que dá origem. O veículo do sentido deixa de ser apenas a palavra impressa para incluir também a sua realização sonora. Para se poder exprimir o conteúdo musical que jaz depositado na mancha impressa é necessário abandonar o preconceito, infelizmente tão enraizado, de que entre a fala e o canto existe uma contradição insuperável. Devemos justamente à Segunda Escola de Viena, e a Alban Berg em particular, ter-nos libertado deste preconceito e ter-nos deixado finalmente ver que entre a fala e o canto existe, ao contrário, uma progressão de possibilidades.
M.S. Lourenço
In ‘A Phala’, n.º 23, Abril/Maio/Junho, Assírio & Alvim, Lx, 1991.
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