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09/05/2017

Uma entrevista que fiz em Fevereiro de 2016 para uma jornalista que trabalhava para a "Revista Ler" e que nunca saiu. Vá-se lá saber porquê!...


  1. Como e quando começou este projecto das Edições 50kg?
R: Em primeiro lugar devo confessar que não gosto da palavra “projecto” soa-me a algo que parece conter arquitectos, engenheiros, um plano de negócio devidamente fundamentado em retornos de caixa à vista (os tais cash-flows) e alvarás de alguma subsecção (ou várias) pertencente à câmara municipal. Sabe-se que as palavras também têm cargas que o seu uso mais recorrente atribuiu. E esta de ”projecto” apesar de querer passar por um neutrão, limpinho e asséptico… Comigo ainda não se sacudiu o suficiente, e por isso faço notar que, não vai há muito, na nossa História Ocidental, encontrámos esta palavra a ser unha e carne e pau para todo serviço do terceiro Reich, também com arquitectos, engenheiros e financeiros. Por isso o uso desta palavra causa-me ainda alguma espécie i.e. no sentido de impressão e não numa redundância com o terceiro Reich. É claro que também não me atrevo a dizer “aventura poética” porque essa expressão além de ser timbre da tarimba da &etc do Vitor Silva Tavares requer uma longevidade, uma resistência, e persistência, em suma, uma presença que as Edições 50kg não têm. E logo não merecem a feliz denominação que o Vitor Silva Tavares encontrou. Deixemos cair então esta palavra “projecto”, que deverá ser mais “útil”, como denominação apreensível e compreensível, nas reuniões dos conglomerados editoriais que produzem o produto livro, ou até mesmo o produto revista, como esta revista, sim é que esta revista também pertence a um conglomerado editorial que quer vender os produtos livros dos seus autores. É claro que chamam-lhe “interesses operacionais e estratégicos” é assim que é dita a coisa, espécie de camuflado muito em voga. E até se pode achar que é legítimo esse querer vender o que é da casa. Porém o que não é tão legítimo é poder-se achar que há aqui, grande jornalismo e crítica isenta. Há é um movimento de circulares e conteúdos e esta minha entrevista possivelmente entra nesta revista com o tratamento de conteúdo mas também alguma carne tem que ter a chouriça. Terminado este parêntesis, já longo, direi então como e quando começaram as Edições 50kg. As Edições 50kg começaram com um fólio lançado em 2006, faz este ano dez anos, se bem que a recolha de material tipográfico, dito obsoleto, começou mais cedo aí por volta de 2004. Mas, é em 2006 que sai o tal fólio, que inaugura a chancela, com dois textinhos para uma exposição de artes plásticas numa galeria que, pelo menos naquela altura representava, entre outros artistas, conceituados como: o Ângelo de Sousa, o Álvaro Lapa, o Pedro Croft, o Paulo Nazolino, enfim… E esta publicação da 50kg foi um êxito estrondoso, foi tudo entre portos de honra e canapés de camarão. É claro que, sendo o fólio gratuito era tão fácil pegar nele como pegar em guardanapos. Mas isso não interessa nada e foi uma grande perspicácia comercial das Edições 50kg que pode agora gabar-se de esgotar uma tiragem de 250 exemplares num par de horas. Vi muitas senhoras a usarem aquilo como leque. Estava um dia quente.


  1. O que faz além disso e que percurso o trouxe até aqui?
R: Sejamos bem claros nesta questão de «o que faz além disso». Cedo percebi que para eu ter alguma independência: em editar o que quero editar, e como o quero fazer. E mais à frente podemos esclarecer isto. E também sem deixar ninguém meter o seu bedelho, e há sempre alguém que o tenta fazer. Teria de estar predisposto, a viver com pouco, e este pouco é uma austeridade que abarco, ou que me imponho. É uma austeridade boa, e é boa porque não me foi difícil e não contradiz, digamos, uma natureza minha, não, pelo contrário vai ao seu encontro como se fosse uma espécie de “physis” à grega, traz-me um equilíbrio. E isto não é nenhuma apologia do espiritual versus material, não, não é isso! É prático. É eu saber, ou melhor, estar consciente por onde as coisas te prendem e te amarram. E são coisas que te amarram e também há coisas espirituais que também te prendem. Por isso à semelhança de muitas outras pessoas que ao longo da História, artistas, e escritores, e até editores que fizeram o seu “labor” em plena consciência que o tinham de fazer, e que era assim e não de outra forma. E que para isso até se sujeitaram à miséria, fizeram biscates do arco-da-velha, sei lá … andaram na marinha mercante. Também por aqui se vai andando aos ais e aos biscates para poder fazer o que se quer e o que se acha que se tem de fazer. E estou convencido que ainda não há outra maneira.
Quanto ao percurso, esse, terei de dizer que se pautou por uma série de encontros que tentarei expor muito resumidamente.
De 2001 a 2004 fui guia no Museu da Imprensa. Onde aprofundo todo aquele universo de máquinas tipográficas. E é aí que, com a ideia que já vinha alimentando de fazer um livro de autor, me resolvo realmente a fazer um livro querendo fazê-lo do princípio ao fim e daquela maneira – à antiga! Acho que devo ter feito o livro de autor mais caro de sempre e que demorou quase dois anos a ser feito. Procurei comprar tipos em caracteres móveis (letras em liga de chumbo ou então de madeira) e uma máquina de impressão que veio a ser um prelo de provas. E quando encontrei uma à venda a segunda pergunta foi «quanto pesa?» a primeira tinha sido o preço. O vendedor disse «uns cinquenta quilos». Tendo ficado para nome da editora quando se lançou o fólio na galeria e que acabou por sair primeiro que o livro de autor que entretanto estava a fazer. De 2004 para cá, o acervo de máquinas, de letras, e acessórios tipográficos foi aumentando resgatando, muitas das vezes, às sucata e às fundições o material vendido ao desbaratado pela insolvência de muitas das tipografias. E o pouco que sei de tipografia foi a ouvir tipógrafos reformados, a pesquisar em manuais e na internet, e a enfiar-me (sempre que deixassem) em tipografias que ainda usasse caracteres móveis, o que ainda hoje é possível de encontrar especialmente se estas ainda fizerem livros de recibos onde são muito utilizadas. Das primeiras experiências, com textos meus, tentei ir melhorando, aprimorando, até ser capaz de fazer umas plaquetes que abri à colaboração de autores que me procuram e eu gosto ou que são convidados porque gosto do que fazem.


  1. Como descreveria a natureza da sua editora e aquilo que lhe interessa publicar?
R: É uma editora de plaquetes, que usa a tipografia de caracteres móveis, e faz tiragens reduzidas nunca mais de 300 exemplares e que não serão reeditadas. São tiragens únicas. Sempre que possível tento que haja uma colaboração com um artista visual ou gráfico que possa fazer uma capa, e que é vertida para uma zincogravura ou serigrafia para fazer uma série, e que é baseada na sua interpretação do texto. Tenho vindo a publicar mais poesia do que prosa, mas não existe nenhum género predefinido. Existe sim uma limitação material e que é oriunda da escassez de material tipográfico da 50kg. E é também por esse motivo que a plaquete tem um limite de páginas, vinte e quatro em formato A5, que têm de ser tidas em conta quando um autor submete o seu original ou é convidado. Não se pede dinheiro aos autores e paga-se com uma percentagem da tiragem. Não sei o que me interessa publicar. Sei, muito bem, o que não me interessa publicar. Não vou é explicar o que isso é ou como o sei. Direi apenas que é resultado de leituras e de uma postura que se crê responsável e ecológica.


  1. Porque escolheu esta técnica antiga de tipografia e que significado conceptual tem para si?
R: Admiro de imediato o relevo, aquela terceira dimensão do papel pressionado pelos tipos de letra, é táctil, sente-se, e vê-se, e até produz sombra veja lá. E se bem que estou consciente que o texto é o que mais importa também não me vejo a fazer fotocópias. Existir ainda esta possibilidade de ter o texto, este suporte se se quiser, é algo que para mim me encanta e me interessa partilhar. E agora que este processo tipográfico é tido como obsoleto, e isto só quer dizer que se libertou das urgências e do trabalho volumoso e enciclopédico, é possível retomá-la e com tempo explorar as suas características que darão um todo (não sei se maior que a soma das partes) e que vai possibilitar ou ajudar à criação de livros barra objectos únicos. O que é transversal às artes, ou não? É que isto já se chamou artes gráficas.


  1. Em termos logísticos, como actua a sua editora? Que tipo de tiragem, que livros lhe interessam, como faz a distribuição e qual diria que é o seu público?
R: Comecemos pelo fim: o público. Alguém escreveu, penso que foi o Roland Barthes mas não tenho aqui forma de o confirmar, que “o público é como uma criança” tente este exercício: leia uma história infantil a uma criança, uma história que ela sabe muito bem, e mude a história, ou até um pormenor, e vai ver se não é logo corrigido por ela. Se o público mandar também é assim, prefere ouvir, ler, ou ver o que já conhece bem do que ser confrontado com uma “coisa” nova ou até diferente. É por isso que os romances e as telenovelas que o público “aprecia” ou “quer” não saem daquela pacotilha das vinganças, das traições, do orgulho ferido ou em alta, ou daquele vencer na vida, que por aí rola desde as tragédias gregas sendo que estas são muito melhores. E como dizia a minha mãe quando eu era criança que eu “não tinha querer” também o público, como criança que é, aqui não tem querer! E digo isto assim que é para não repetir o que disse o João César Monteiro. Por isso, na questão de existir previamente um público ou que este possa influenciar qualquer coisa, estamos conversados. O que posso ainda dizer é que quem compra as plaquetes das Edições 50kg não possuem traços característicos, não há um perfil, alguns são jovens, outros menos jovens, uns querem ter tudo, a outros só lhes interessa ter determinado autor, uns já seguem desde o início, outros só agora descobriram. Porém, a satisfação de estarem com um livro que não é um produto, antes um objecto é-me frequentemente transmitida.


Sobre a tiragem e os livros que me interessam julgo que já respondi numa das questões anteriores passo então para a distribuição. Esta é feita num circuito de livrarias que se destacam pela proximidade e tratamento quer com os leitores quer com os próprios livros e também com os editores. As plaquetes das 50kg se forem enfiadas numa estante, e como elas não têm uma lombada vistosa, desaparecem, tornam-se invisível, e então como é que um potencial leitor vai ter um encontro com elas. Muito dificilmente. Por isso privilegio livrarias que potencializam esse encontro. E existe uma pequena rede de livrarias que acarinham muito bem as edições pequenas e as de autor e que até lhes dão um destaque. E sobretudo pagam a pronto (o que é bom e levam com um desconto). Evito deixar livros à consignação para que eles não regressem todos manuseados e dobrados. Esta rede encontra-se espalhada nos centros urbanos. Mas quem não tiver acesso a essa rede livreira também existe a possibilidade de poderem encomendar directamente à editora, através da internet, que a expedição dentro do território nacional não tem o acréscimo de encargos.

21/03/2016

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Perguntas do jornalista Sérgio Almeida para um artigo que saiu no Jornal de Notícias de 21-03-2016.


1 As Edições 50 kg são a prova de que não só a edição de poesia continua bem viva como tem sabido de certa forma reinventar-se, não estando tão dependente do papel das grandes editoras?

R: Prova, não o diria, continuo a achar que as Edições 50kg, por si só, não têm uma presença relevante para servir um embandeirar desse arco da sobrevivência editorial da poesia. No entanto penso que já há muito que existe uma pretensão que a poesia se vai renovando nas pequenas editoras. Basta pensar, por exemplo, que antes destes conglomerados editoriais que agora proliferam, uma editora como a Assírio, que não era propriamente pequena, insistia em se denominar como pequena editora para assim reivindicar um certo papel de luta e de resistência. Porém acho, que as “grandes editoras” assumiram sempre, pelo menos em relação à poesia, mas também penso que o fazem em relação a outros géneros literários, o papel de antologiadores – de apresentadores à urbi e à orbi de autores já consagrados, tomando-se por formadores e conservadores de um cânone poético. E isto de certa forma era uma atitude que se podia entender. O problema que se põe agora é que esse papel de certo modo inverteu-se, porque é necessário alimentar um mercado editorial e é aí que estes “conglomerados”, que também já possuem meios de expressão da crítica, que são donos de revistas literárias, começaram a introduzir novos autores, que francamente penso, não passam por um crivo de “qualidade” isento e criticamente eficaz. Não sei onde isto vai parar, mas como dizia o Cesariny: “em algum sítio muito longe”.


2 Falta arrojo às editoras convencionais?

R: Falta pensarem no que é importante e no que fica e não no que vende. Uma biografia do Toni Carreira vende, toda a gente sabe, mas é tão importante como ter um segundo cu!


3 Pela tua experiência enquanto editor, achas que o número de leitores de poesia ao longo da última década tem sofrido alguma alteração significativa?

R: Sim, foi reduzindo em termos de números. São menos os leitores. E a redução das tiragens são o reflexo disso. E não penso que foi a introdução das novas tecnologias, ou sequer a crise a razão principal. Nunca foi tão fácil possuir livros de poesia. No alfarrabismo é possível obter excelentes livros de poesia a preços quase irrisórios. O motivo para tal redução de leitores de poesia, a meu ver, é o facto de não existir deveras uma comunicação geracional. O saber que se acumulou não está a passar. E os órgãos de comunicação social (salvo raras excepções) desistiram desse papel. Por palavras mais situacionistas direi que me parece que o “Espectáculo” é o que vigora.



4 A manutenção ou diminuição desse número significa que as imensas iniciativas sobre poesia que existem pelo país fora têm uma eficácia diminuta?
R: Essas iniciativas sobre a poesia estão na ordem do espectáculo. É por isso que se assiste a espectáculos poéticos, com música, cuspidores de fogo, novos jograis, e strippers… Isso tudo para plena satisfação de um público consumidor de espectáculos… Mas leitores? Ui tá quieto!

RAR

27/10/2014

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ÁLVARO LAPA

     E. J. M. – A afirmação de «autenticidade» a propósito da sua pintura parece-me extremamente débil, isto é, nada acrescenta à sua obra…

A. L. – É débil pelo lado do objecto referido. Qualquer afirmação em relação à minha pintura merecia uma atribuição diferente. A falha de objecto é uma questão de método, o que lhe parece a si inconveniente.
A «autenticidade» é um rótulo que não descodifica, é um termo que vai inaugurar uma série de tipo adjectivo. Tem um valor usual, é moda num determinado círculo e pressupõe que a questão da «autenticidade» se põe – e não necessariamente em relação à minha pintura, não sou eu que a provoco –, mas põe-se de uma maneira ambiente e põe-se, antes de mais, pela suspeita de «não autenticidade» de uns quantos.
Pode dizer-se – e concordo – que seja uma questão que não me pertence, ou pertence no mínimo. O que pertence à pintura da minha autoria, penso que não é talvez suscitada por esses objectivos, mas é levantada e aplicada a propósito desses objectivos. Portanto, pode ser um enredo a que eu não pertenço, ou os objectos não pertencem necessariamente. É uma categoria fortuita necessária para desvendar um enredo onde eu não estou. Mas isso funciona a respeito de categorias históricas mal aplicadas – e isso é um risco permanente da crítica de arte, na medida em que é exercida sob a forma de termos adjectivos, de termos classificatórios: o que se pode pensar (ou admitir) é uma alternativa para esse método adjectivo. Essa alternativa supõe uma sensibilidade, uma profissionalização e um esforço de aplicação que não são os da crítica corrente. Todos os artistas, no fundo, se julgariam credores de uma análise minúcia, poderíamos dizer, existencial.
A crítica funcionaria, então, como um horizonte de inteligibilidade, um horizonte de aproximação. Mas uma crítica dessas não tem o aspecto afirmativo; tem, pelo contrário, o aspecto negativo, probabilístico: o aspecto comparativo, mas não hierarquizante, no sentido, em última análise, da viagem no tempo.

E. J. M. – Mas como é que se pode passar de uma linguagem visual para uma linguagem verbal?

A. L. – Pode fazer-se isso colaborativamente, através de descrição de uma operação em termos de outra operação. Esta passagem pode efectuar-se através de um risco, não apenas de um condicionamento, mas de um risco, de uma ficção, de uma fábula.

E. J. M. – Mas isso tem sobretudo a ver com a suspeita…

A. L. – …e pode ser-se bem consequente nisso. É uma questão de mistificação pública mais ou menos completa.
Em relação ao visível ele mesmo – supondo que se pode isolar este termo, e pode-se na prática através do recolhimento – se eu estiver só a ver, se V. estiver só a ver, estamos só a ver. Mas em relação a isso qualquer outra tentativa de substituição da esfera prática é um abuso, mas o sistema desses abusos é a nossa cultura corrente, se extrapolamos constantemente dados de experiência.
Uma experiência não se reduz a palavras, a não ser uma experiência verbal directa, porque nem uma experiência verbal se transmite noutras palavras.

E. J. M. – Qual a importância do momento da criação?

A. L. – O momento da criação é importante num sentido alargado, ou seja, o «fazer»: no aspecto técnico executivo e não no aspecto técnico normativo. De resto, as obras de arte são apenas isso: superfície de execução.

E. J. M. – O perigo do Kitsch parece-me estar ausente da sua obra.

A. L. – Não creio que deixe de haver o perigo de um Kitsch disforme: não formalizado segundo o Kitsch vulgar. O Kitsch disforme é um empolgamento que pressupõe um valor de arte, neste caso sendo disforme através de valores – como feio, não feio…
Essa rede é sempre estreita. A ameaça de Kitsch, uma vez admitida, não me parece poder facilmente resolver-se em favor de alguém; ou seja, uma interpretação assim de uma obra pode resultar de um valor de antítese.

E. J. M. – …mas a afectação anti-Kitsch, também não existe…

A. L. – Talvez seja o mérito do meu falhanço.
Admitidas certas premissas da existência dominante do Kitsch, não vejo como se possa acreditar que uma obra não o contenha e consiga comunicar.
O Kitsch é uma concessão, uma permissão, que só através de uma retórica do heróico é que podíamos encontrar a promessa de outra coisa.
Mas eu não me convém admitir essas premissas porque são exteriores ao fazer.

E. J. M. – A comunicação é portanto um problema que se lhe põe?...

A. L. – O problema da comunicação põe-se-me ansiosamente como medo de não comunicar.

E. J. M. – Quais são, para si, as obras com um elevado grau de comunicação?

A. L. – Uma resposta desse tipo vai muito, para mim, no sentido sentimental, do humano. Isto corresponde a uma ideologia. E não corresponde talvez mais do que a isso: de que a vocação expressiva se possa e deva tentar sob essa promessa de encontrar finalmente um público ideal; se possa orientar no sentido da satisfação de situações limite, situações extremas que a motivam e onde por isso a garantia de mentira se torna mínima e a garantia de com isso tocar alguém se torna máxima.
Isto corresponde talvez, a uma estratégia, a um filão considerável da história da arte. Estou a pensar no minimalismo, não no sentido da história da arte, mas por aí justificado.

E. J. M. – O que representa para si o espectador ideal? Ou então: como deveria eu olhar um quadro seu?

A. L. – A sua maneira de olhar um quadro meu não é, ou não deveria ser, diferente de mim próprio em estado de espectador.
A crença no espectador ideal, como co-autor, nessas condições, é um mito do autor.
«O que se pretende pintar não são objectos – derivados do sentido comum – mas o efeito que eles produzem, sobre um público ideal, isto é, inexistente». (Catálogo exposição Março 1985).
Penso que isto é um devaneio ontológico.

E. J. M. – Em todo o caso, é no Kitsch que encontramos a promessa de co-autoria…

A. L. – Essa aflição da co-autoria é um pecado da arte.
Só pela arte se pode resolver essa situação, ou seja, pela forma renovada e cada vez mais através da crítica, auto-crítica, como parte do idioma artístico.

E. J. M. – Mas admite a possibilidade de chegar à verdade da obra…

A. L. – O espectador ideal não é nenhum santo, é uma função. A sua função é corresponder à obra num sentido muito próximo, senão idêntico ao do autor. E isso passa-se com certeza sempre que o autor se motiva nas suas próprias obras, e noutras obras, em relação à comunicação, entre os vários eus sucessivos de uma mesma obra do mesmo autor. Ele está em relação aos objectos de outrem, e até aos seus próprios objectos, numa relação de descontinuidade em que ele refaz, ou crê que refaz, muito constantemente, esse percurso desde a origem, à razão da obra.
O espectador ideal não terá que fazer senão isso; não poderá fazer senão isso.

E. J. M. – …aspirar à razão da obra…

A. L. – Nessa medida, o espectador ideal não se distingue dum crítico se fizer crítica, nem se distingue do autor se fizer arte.
A razão da obra é um limite. Um limite nunca atingido, visto que é um limite.
Mas é desse desafio, dessa dinâmica, que uma história de arte se faz.

E. J. M. – Como relaciona a razão com a verdade da obra?

A. L. – Talvez o próprio uso, a implicação, do termo razão assinale um domínio que não é o da verdade. Mas eu usava, admitia, o termo razão no sentido em que era determinado pela verdade.
A experiência que se faz directamente em arte é a da verdade, não a da razão. A experiência da razão é instrumental que era o terreno onde nos estávamos a colocar, que era o de uma instrumentalidade – da crítica, do falar…

E. J. M. – Qual é, em arte, o papel do acaso?

A. L. – O acaso é a verdade. Mesmo que seja admitido como uma estratégia é extremo. É uma vivência extrema, suponho que é indistinguível da verdade.

E. J. M. – Funciona do mesmo modo na literatura, o acaso?

A. L. – O dispositivo literário tem graus de especialização em que o acaso funciona plenamente. Funciona pelo lado do objecto e pelo lado do receptor. O exemplo mais consabido dessa tendência é a obra final de James Joyce; onde o acaso é incorporado, ou fingido, num nível respectivamente pleno.

E. J. M. – Um exemplo raríssimo, em todo o caso…

A. L. – São os exemplos que determinam possivelmente, a evolução das formas no sentido menos atávico.
O que se pode querer atingir senão a verdade nua e crua. A verdade nua e crua pelo lado do dispositivo é uma exigência. Então é demonstrável pelas obras mais exigentes…

E. J. M. – Mas pintar e escrever não correspondem a situações diferentes?...

A. L. – …duas situações diferentes de maleita….
E. J. M. – Ou disponibilidades diferentes?...

A. L. – Suponho que há antes de mais um condicionamento material.
A literatura pede-me – pode ser por defeito meu – um tipo de vida, um auto-condicionamento, e a pintura pede-me outro.
Quando é que se declara, pergunta você, a respectiva vontade, a respectiva vocação. Suponho que tem a ver sobretudo com condições ambientes. Ou seja, é antes de mais, uma disponibilidade material.
De qualquer modo a diferença é tão pequena entre uma e outra indisponibilidade material que parece uma questão especiosa…
…são fases. Não sei se o termo é esclarecedor, mas são fases.

E. J. M. – …que correspondem a…

A. L. – Correspondem a resultados. Só retrospectivamente é que eu verifico que um determinado ano, ou período, foi ocupado em escrever e outro em pintar.
Também funciona de outra forma, pela razão do reconhecimento. Pela razão de ser mais reconhecido socialmente como pintor, do que como escritor, acontece que as solicitações e as encomendas (não é verdade, mas…), as estimulações, são mais frequentes no caso da pintura para eu pintar, do que no caso da literatura para eu escrever.

E. J. M. – A que atribui a falta de solicitações para a literatura?

A. L. – Por muitos motivos não decifrados.
Admito perfeitamente que o que se faz não tenha eco sobretudo quando não é acompanhado de uma carreira, de uma insistência, no sentido sócio-profissional, como é o meu caso.
Talvez a explicação seja essa que você dava do Kitsch, se acaso funciona também em relação à minha escrita. É porque é uma escrita antipática, com termos médios de entendimento nulos, ou quase nulos. É uma escrita inclassificável: como um borrão, um disparate, uma enormidade
Diga você a sua opinião visto que está situado para isso…

E. J. M. – Penso que a sua escrita não é especialmente simpática para os leitores habituados ao consumo de obras «medianas»…

A. L. – Pensa então que eu não consegui furar todo esse mundo de apatia porque não fui suficientemente empolgante, nem suficientemente retórico…

E. J. M. – … o que eu dizia é que há uma categoria de leitores habituados ao consumo de obras «de efeito». Onde por exemplo a profundidade aparece como um artifício de retórica…

A. L. – No domínio da pintura também existe esse efeito do qual eu sou, pela via da autenticidade, o respectivo beneficiário, pelo reconhecimento e notoriedade como pintor (independentemente de ser desejável ou não) que corresponderia, pelo menos como suspeita, à vacuidade, pelo menos como você está a equacionar, de um fenómeno literário como esse.
Talvez, com esse termo do profundo se possa equacionar o problema do acaso e da necessidade. Ou seja, profundo é onde o acaso e a necessidade se não distinguem porque são termos admissíveis só quando se pode sair da respectiva necessidade que a profundidade implica; a profundidade tem uma consistência espacial, parece sugerida. E o caso seria pelo lado da disposição técnica aquilo que pode deixar aparecer esse excesso de, você dizia, memória, informação, direcções contraditórias, sofrimentos, que não deixa fazer de outro modo.

Eu duvido do interesse da forma final da entrevista. Pode ser muito circunstancial. Admito que algumas respostas sejam evasivas, ou de todo falsas, e que depois o confronto seja desanimador.

E. J. M. – Mas o único valor de uma entrevista é, talvez, o de circunstância.

A. L. – E quanto mais se procura a resposta final, menos se encontra.


Álvaro Lapa, entrevista a Eduardo Jorge Madureira, "Vandoma – cadernos culturais/1", Braga, 1985.



01/02/2012

Na perda do terreno e no homem ao mar...

Averno: «Nos últimos anos a poesia, e a literatura, perderam terreno. Isso não é uma catástrofe. A poesia dá-se bem em condições adversas»


Nascida em 2002, e com 59 títulos editados desde então, a Averno conquistou com esse escasso catálogo uma reputação assinalável na «linha da frente» da edição portuguesa de poesia. Elegendo algumas (poucas) referências entre os poetas portugueses de períodos anteriores, de António Manuel Couto Viana e António Barahona a João Miguel Fernandes Jorge e Joaquim Manuel Magalhães, a Averno distinguiu-se sobretudo por apostar num conjunto de poetas da nova geração: Rui Pires Cabral, Manuel de Freitas, José Miguel Silva, Vítor Nogueira e, mais recentemente, Miguel Martins, Renata Correia Botelho ou Diogo Vaz Pinto. Não descurando a edição de poetas em tradução, a editora singularizou-se, logo no seu início, pela edição da antologia Poetas sem Qualidades, responsável por um longo e polémico debate na cena poética e crítica portuguesa, e pela edição de uma revista de poesia e crítica, Telhados de Vidro, hoje no seu nº 15. Seguindo uma velha e sempre actual lição, a Averno tornou os seus livros reconhecíveis pelas opções gráficas assumidas, as quais, após algumas hesitações iniciais, estabilizaram, em grande medida por influência de Olímpio Ferreira, nas capas em kraft, na avareza no uso da cor e nos formatos «de bolso». Tudo a contra-corrente de um mercado cada vez mais rendido a cores, brilhos e relevos sem pertinência ou sentido. Não surpreende que a Averno se tenha tornado numa espécie de exemplo a seguir por todas as pequenas e dinâmicas editoras que vão preenchendo o espaço que as editoras tradicionais ocuparam, até há pouco, na edição de poesia.
Razões mais do que suficientes para irmos ouvir Inês Dias eManuel de Freitas, o duo que assume a condução editorial da Averno. Agradecemos a ambos a disponibilidade revelada.
TP. Quantas pessoas constituem a Averno?
A. A Averno é constituída apenas por duas pessoas, no que respeita a decisões editoriais: Inês Dias e Manuel de Freitas. Porém, e desde o primeiro momento, tivemos o privilégio de contar com o apoio gráfico do Olímpio Ferreira, que soube dar um rosto sóbrio e original à editora. Após a morte do Olímpio, que por pouco não foi o fim de tudo no plano editorial, continuámos graças ao entusiasmo e à disponibilidade de pessoas como Pedro Serpa, Inês Mateus ou Diogo Vaz Pinto. De Braga, com enorme zelo, a Carla Gaspar vai-nos actualizando o blog. E há também os autores, os ilustradores, os impressores. O que, em rigor, nos permitiria dizer que a Averno é constituída por vinte ou mais pessoas essenciais para a feitura dos livros.
TP. Podem tentar descrever o público da Averno?
A. Não fazemos uma ideia precisa de qual seja o público da Averno, embora saibamos que temos leitores entre os vinte e os oitenta anos. Haverá certamente um pouco de tudo nesse público: leitores de poesia tout court, curiosos, coleccionadores de pequenas tiragens, alfarrabistas, etc. Conhecer melhor esse público é, aliás, uma das razões pelas quais gostamos de participar em actividades como as Feiras Laicas.
TP. Pelo volume residual de prosa que editam, podemos definir a Averno como uma editora de poesia?
A. Damos pouca importância a definições. Não é por acaso que a Telhados de Vidro, revista que publicamos desde 2003, se prefere furtar à questão do género; é tão-só uma revista onde se encontram espaçadamente determinadas vozes. Em última análise, olhando para o nosso pequeno catálogo, poderia dizer-se que Margaret Millar é tão poética como José Mateos. Nesse sentido, não é erróneo classificar a Averno como sendo uma editora de poesia. Mas a poesia, gostamos de acreditar, não acontece necessariamente em verso.
TP. Qual é o circuito de distribuição dos vossos livros?
A. Somos nós próprios que fazemos a distribuição, em cerca de vinte livrarias nacionais. A pé, de táxi, de boleia ou via postal.
TP. Qual é a tiragem média dos vossos livros?
A. A nossa tiragem média é de 300 exemplares. Em casos especiais (a Telhados de Vidro ou obras que implicam pagamento de direitos de autor) podemos chegar aos 500 exemplares. Mas nunca mais do que isso.
TP. O que é para a Averno um «sucesso editorial»?
A. O nosso único «sucesso editorial» terá sido Poetas sem Qualidades (2002), por motivos que desconhecemos. A edição esgotou em menos de dois meses. Mas é muito raro chegarmos assim tão rapidamente aos supostos 300 leitores assíduos de poesia que se convencionou haver em Portugal: no nosso catálogo, já com 59 publicações (entre os livros e os vários números da revista), só 12 títulos se encontram esgotados.
TP. Qual é a natureza da relação que mantêm com os vossos autores?
A. Com raríssimas excepções, se é que as há, os nossos autores são (ou tornaram-se) nossos amigos. Bebemos juntos, jantamos regularmente, dançamos a ouvir Squirrel Nut Zippers, cultivamos uma sadia promiscuidade boémia e literária.
TP. Quais eram os vossos modelos de editor quando apareceram?
A. Gostamos, inequivocamente, do editor interventivo, do editor-autor que acompanha vírgula a vírgula cada obra. Nesse aspecto, Vítor Silva Tavares terá sido um dos poucos modelos possíveis a referir. Mas, e já no que diz respeito à dignidade gráfica do livro, são também importantes os exemplos da Afrodite, da Contraponto, da Frenesi, da Fenda, da Hiena ou da Assírio & Alvim.
TP. A Averno parece funcionar para a actual vaga de pequenas editoras de poesia como a referência que, no panorama anterior, era desempenhada pela & etc. Como vêem esse actual panorama editorial e em que editoras das novas se revêem com mais agrado?
A. Não sobrevalorizemos a Averno, que nem dez anos de actividade editorial tem. Não conseguimos, de todo, ver-nos como uma «referência». Quanto a simpatias por pequenas editoras mais recentes, destacaríamos sem qualquer hesitação a Letra Livre, a Língua Morta, a Poesia Incompleta, a Oficina do Cego, a Tea for One.
TP. A Averno apareceu muito associada à afirmação de uma poética específica, a dos chamados «Poetas sem qualidades». Continuam a reivindicar essa poética ou acham que ela não descreve todos os autores que editam?
A. Como já vem sendo hábito entre nós, quase ninguém percebeu nada. Poetas sem Qualidades nunca pretendeu ser uma poética normativa ou um programa de sentido único. Era, sumariamente, um desabafo, pois já não havia (nem há) paciência para certa tardo-poesia fossilizada, seja ela de quem for. Olhando com um pouco de atenção para essa antologia, depressa percebemos que Rui Pires Cabral e Nuno Moura são tão parecidos como Gyia Kancheli e Steve Reich. Mais do que uma poética, inverificável, existirá uma ética comum (de António Barahona a Diogo Vaz Pinto, passando por Ana Paula Inácio ou Jorge Roque, entre tantos outros) que se traduz, em traços largos, por um desapreço pelo espectáculo grotesco em que se transformou o meio literário português.
TP. Como vêem a situação actual do livro de poesia, e mais latamente da literatura, no mercado actual?
A. Tornou-se evidente, nos últimos anos, a posição minoritária da poesia, e a literatura (em geral) foi perdendo terreno quer nas livrarias, quer nas críticas da imprensa. Isso não é uma catástrofe. A poesia dá-se bem em condições adversas, supera-se a si mesma.
TP. Os livros da Averno respeitam um programa tipográfico bastante reconhecível e estrito: formato pequeno, capa em kraft, preto e branco, colaboração com alguns ilustradores, ou seja, sobriedade e uma forma de «classicismo» alternativo. Trata-se de uma opção de gosto ou se tivessem outros meios encarariam fazer livros diferentes?
A. Fazemos os livros como efectivamente gostamos de fazer, privilegiando uma certa sobriedade. Se os meios fossem outros, as opções gráficas manter-se-iam.
TP. Do ponto de vista da tipografia actual, qual é a vossa fronteira? A impressão digital? O uso da cor?
A. Nós usamos cor, de quando em quando, quando nos apaixonamos por uma ideia que a exija. A tipografia digital, para já, não nos alicia muito. Fronteiras, em rigor, são apenas as da conta bancária e as da imaginação.
TP. Como vêem a recuperação da tipografia a chumbo, tal como a pratica entre nós, por exemplo, a Oficina do Cego? Já a ponderaram para os vossos livros?
A. Achamos extremamente salutar a recuperação da tipografia a chumbo, que outros países menos estultos souberam preservar e que em Portugal, quase sem excepção, passou a ser vista como uma velharia inútil. Consideramos, pois, extremamente valioso o surgimento de projectos como a Oficina do Cego ou a 50 Kg. Não é impossível que a Averno venha um dia a fazer uma edição nesses moldes, por exemplo em parceria com elementos da Oficina do Cego. Contudo, o nosso volume de edições, embora modesto se comparado com o de grandes e médias editoras, obriga-nos a recorrer ao offset.