19/05/2019

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Coimbra, 19 de Maio de 1946 É quase inacreditável que eu tenha nascido aqui! – dizia-me
há tempos um artista amigo, diante dos casebres serranos da sua terra. E acrescentava: – Como isto me é estranho, hostil e incompatível com o hotel em que vivo!
E eu lembro-me de vez em quando daquelas palavras, mas para as aplicar precisamente ao contrário. Sentado a certas mesas, no meio de certa gente, e enrodilhado em certas situações, digo eu:
– É quase inacreditável que eu esteja aqui! Como me é estranho, hostil e oposto à choupana onde queria e devia viiver!

Miguel Torga, “Diário III”, pág. 168, 1954, Coimbra.

18/05/2019

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Coimbra, 18 de Maio de 1947 A maior desgraça que pode acontecer a um artista é começar pela literatura, em vez de começar pela vida. Cora-se de vergonha, depois, diante das ingenuidades impressas, que são cueiros sujos e pretendem ser livros. Só a experiência, a dor e o trabalho trazem a dignidade que uma obra literária exige. Mesmo que não se tenha génio, pode-se, então, ter compostura. E seja qual for a duração do que se escreve, uma coisa ao menos os vindouros poderão respeitar: a nobreza do que vão ler. Mas poucos sabem esperar pela hora da maturação. E antes desse livro curado pelo fumo da vida, vêem-se quase sempre meia dúzia de outros, infantis, imbecis, esquemáticos como o bê-á-bá. Penitet me – creio que é a fórmula do arrependimento.

Miguel Torga, “Diário IV”, pág. 41, 1953, Coimbra.

14/05/2019

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É bom ver "resgatado" de um certo esquecimento um dos elementos da tertúlia, ou "tortúria", do Café Gelo. Foi escritor e violinista em "orquestras" de navios cruzeiros. Ainda por cima com a fotografia dele (o que é raro!). A foto é do Eduardo Gageiro o livro é da editora Ponto de Fuga.

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12/05/2019

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“Toda a nossa actividade literária é de uma mesquinhez atroz. Nós não temos o direito de escrever. Falo de nós todos. Postos de parte os Tónios e as Marias dos imbecis, que nos fica? O romance de gabinete, essa porcaria «inteligente», essa masturbaçãozinha de impotentes. Ou então, o romancezinho «psicológico», em que se trata o homem com desprezo, se vem contar, com petulância, como é feito por dentro e dá entre nós um génio em cada cinco anos, esse romancezinho feminino que Proust, como «mulher» que era, põs em moda. Sim, que só mesmo uma mulher podia inventar essa coscuvilhice íntima, essas histórias, e històriazinhas cheias de pequenininhas observações, esses períodos longos e complicados como folhos e rendas de uma boneca. Contra mim falo, meu amigo, ah, contra mim falo. Mas não há outra saída. E todavia a hora é da ardência, do sangue!”

Vergílio Ferreira, “Cântigo Final”, pág. 22, Portugália Editora, Lx, s/d. (escrito em Évora em 1956).

Da série as “traições” da Musa…


Coimbra, 12 de Maio de 1947

POEMA

Foi um poema casto que eu pedi
à minha Musa.
Um poema com bibes e meninas,
e ternura no meio.
Mas quando a imagem veio,
e eu, deslumbrado, a olhava,
a menina mais velha namorava,
e as outras, ao lado, aprendiam
a instintiva lição…
Minha Musa, o poema?
Este é o mesmo poema,
numa outra versão.

Miguel Torga, “Diário IV”, pág. 36, 1953, Coimbra.

05/05/2019

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Coimbra, 5 de Maio de 1947 Esta rapariguinha vem transtornada de Fátima. Tudo a deslumbrou. A multidão, o espectáculo e o lugar. Sobretudo o lugar. Sentiu verdadeiramente que havia nele qualquer coisa de sobrenatural, de divino.
E eu, então, falei-lhe de Roma. Contei-lhe que tanta emoção se sentia nas Catacumbas, como no Coliseu, como debaixo de um arco de triunfo. E visse o despropósito: nas Catacumbas, tinham vivido cristãos; no Coliseu tinham lutado gladiadores com feras; e sob o arco do triunfo tinham passado tiranos.
– Concebo a sua fé, e respeito-a, – acrescentei. – Mas para que um sítio qualquer fique carregado de uma electricidade emotiva, não é preciso que Deus ou a sua Mãe venham cá a baixo. O homem é muito capaz de uma façanha destas. Basta que um pastor ou um bispo se resolvam a criar um mito. Então, as pedras transformam-se em altares, e uma mangedoira no berço mágico de um redentor.

Miguel Torga, “Diário IV”, pág. 35, 1953, Coimbra.

02/05/2019

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“Mas com o desenvolvimento da sociedade de consumo e dos meios de comunicação a vida das pessoas na Europa ia ficando cada vez mais igual em todo o lado e alguns sociólogos e historiadores achavam que reflectir em conceitos nacionais era algo que estava ultrapassado e diziam que a característica mais saliente da sociedade ocidental desenvovida era o cosmopolitismo e que no fundo não existia nada como Alemães ou Romenos ou Suecos e que tudo isso não passava de autoprojecções sobre estereótipos e preconceitos sociais. Mas outros sociólogos não estavam pelos ajustes e diziam que com o desenvolvimento da sociedade de consumo e dos meios de comunicação as pessoas foram perdendo a maior parte dos pontos de orientação e que de um modo paradoxal a comunidade nacional se tinha tornado mais importante que nunca. E que os estereótipos eram imprescindíveis para a preservação da memória colectiva e histórica sem a qual a sociedade ocidental perderia a sua unidade porque a unidade não podia ser heterogénea. E que a memória colectiva era uma interacção de compromisso entre o passado e o futuro e que os estereótipos e preconceitos tinham a vantagem de envelhecer mais devagar que a história e as novidades tecnológicas etc. e que representavam a última área e ao mesmo tempo a mais activa em que se preservava a identidade social. Os etnólogos e os antropólogos diziam que a historicidade podia assumir duas formas e que uma era própria das sociedades que queriam manter-se na sua existẽncia simbólica e a outra das sociedades que vão buscar à história a acção e a energia. E que tradicionalmente a sociedade ocidental fizera parte do segundo grupo mas que no momento actual talvez estivesse a meio de uma transição para o primeiro. E os filósofos diziam que a aceleração da história que ocorreu no século XX conduzia à indiferença relativamente ao tempo e ao desaparecimento da historicidade na sua forma tradicional e se devesse aparecer uma nova forma de historicidade era preciso refrear a história e alguns deles exigiam que à Declaração Universal dos Direitos Humanos fosse acrescentado o direito do Homem ao tempo.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 138-9 , Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

16/04/2019

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Uma das relações mais famosas entre escritores e gatos, provavelmente a mais famosa, é a de Samuel Johnson e o seu gato Hodge... No século XVIII... Há uma estátua em Londres (Gough Square), onde não faltam sequer as ostras sobre a capa do livro... Pois, segundo James Boswell's Life Of Dr. Samuel Johnson, o gato Hodge de Samuel Johnson era mimado e alimentado a ostras...














14/04/2019

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Coimbra, 14 de Abril de 1939 – (…) Crio em volta de mim um tal gelo, um vazio de tal modo hostil, que só quem é do meu meridiano me estende a mão. Os outros, rosnam, rosnam, mas vão passando de largo.
Não presta, nunca deu nada esta Coimbra, mas só aqui pude até hoje ser poeta à minha rica vontade.

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 95, 1941, Coimbra.