“O DONO DA CIDADE
Como
tôda a gente sabe, o Rio não pertence aos cariocas, nem aos
brasileiros em geral, mas a um vago personagem de nacionalidade
indefinida e existência até mesmo incerta por aqui. O Rio pertence
ao turista.
Pouco
importa que êle não apareça para tomar conta do que lhe deram de
mão beijada. Embora ausente, embora no desconhecimento completo de
tão rica propriedade, continua mandando e desmandando, como senhor
absoluto de todos nós. É em seu nome, ou sob a invocação dos seus
interêsses sagrados, que se resolvem os grandes e pequenos problemas
da cidade. Não damos um passo sem pensar nêle, não movemos uma
palha sem inquirir, num anseio do coração devoto e temeroso, o que
diria de nós, se nos apanhasse em tal gesto, o ídolo fascinante.
Porque,
em verdade, o turista é um ídolo. Governa-nos de longe, com a
olímpica indiferença e o capricho sobranceiro dos deuses. Quase
nunca o encontramos na terra, mas sentimos a cada instantte a sua
influência mágica. De nada vale a teima de alguns céticos,
negando-lhe a realidade. De nada vale porque o poder dos mitos vem da
vida que lhe damos em nossa crença. E permanecemos fiéis à antiga
fé, convencidíssimos de que o turista existe e pode rebentar a
qualquer momento por esta deliciosa metrópole que é muito mais sua
do que nossa. Eterno esperado do sebastianismo urbanístico, ao
imaginar a sua vinda estremecemos ao mesmo tempo de júbilo e terror.
Estamos
preparados para recebê-lo? – eis a pergunta agoniada que domina
constantemente dois milhões de cabeças, desde as mais ilustres às
mais obscuras, das mais responsáveis pelo destino da capital às que
nem ao menos são responsáveis pelo arranjo da própria casa. O que
se deve mostrar ao turista, sobretudo o que se deve esconder dos seus
próprios olhos sacrossantos, constitui um motivo de preocupações
alarmadas, que apenas se atenuam em algumas alegrias fortuitas, mas
consoladoras, quando temos a certeza de que vamos agradá-lo em
cheio.
Êsse
propósito de agradar ao misterioso personagem deformou até a
sensibilidade carioca ante os espectáculos da natureza. Quando o
panorama do Rio nos oferece um trecho belo da montanha ou do mar, o
que vislumbramos, quase sempre, não é a paisagem em si mesma, porém
um americano ou um argentino mergulhado na sua contemplação.
Murmuramos comovidos, na Vista Chinesa e no Alto do Corcovado:
“Diante disso, o estrangeiro tem de ficar tonto!” e a sombra do
turista embaça-nos a visão.
Entretanto,
voltamos regosijados do passeio. Acalenta-nos o orgulho de que há
por aqui muita coisa admirável, dada pelo velho Deus para que
possamos ofertá-la, por nossa vez, ao novo ídolo da cidade. Mas
êsse ingénuo contentamento logo se transforma em aflição quando
um aspecto feio da rua, uma cena pobre de esquina, até mesmo uma
reminiscẽncia pitoresca de nossa história, nos avisa de que, além
do panorama, temos de expor ao turista o quadro humano do Rio.
Esquecidos
de que somos talvez o máximo do que poderíamos ser em nossas
condições de vida e formação, assalta-nos uma absurda timidez em
face do gozador distraído que nos poderá surpreender como realmente
somos. Aceitamo-lo como juiz dos nossos atos, receando-lhe o
comentário desairoso, como se o estancieiro dos pampas ou o
industrial de Chicago tivesse fôrça, autoridade e disposição para
nos consagrar ou arruinar definitivamente no conceito dos povos.
Mas
tamanha candura tem suas utilidades e vantagens. Graças ao temor do
que o turista possa ver, descobrimos finalmente o que antes não
feria a nossa vista. E muitos problemas urbanos foram atacados em
atenção à prestigiosa divindade. É preciso, porém, que o mito
não abuse dos seus poderes mágicos, perseguindo os humildes em vez
de favorecê-los. Pensa-se, por exemplo, em acabar com as gordas e
lustrosas “baianas” que enfeitam a cidade moderna com seu
pequenino comércio colonial. Naturalmente, imgina-se que o turista
não gostaria de vê-las. Mas é provàvelmente um ẽrro. E ainda
que não fôsse. Nem por isso se deveria sacrificar as “baianas”,
que têm por elas o Senhor do Bonfim, Senhor que nos ajudou a
construir o Brasil e que sempre protegeu a gente pobre no seu
trabalho.”
Genolino
Amado, “Os Inocentes do Leblon – Crónicas do Rio”, pp.
27-29, Ed. Livraria do Globo, Pôrto Alegre, 1946.
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