20/10/2011

Vou filado nisto mas trago sempre clementinas...

Manuel Cintra, «Tangerina», ed. de autor, 1990, Lx.  

Madrugada.
Segurei nos seios que as minhas mão já não
eram, varri os restos da casca de ovo que já não
me cobria a cara, olhei para a rua que já não
era um espelho e senti-me. Só.

Ao despejar o lixo, encontrei entre cascas um
pequeno fruto redondo, de textura e cor irreco-
nhecíveis e olhei com atenção: não era deste
mundo.

Preferi imaginar que tinha imaginado, tornei
a colocá-lo entre os restantes detritos e, ao che-
gar ao contentor, despejei tudo cumprindo o ri-
tual que devolve algumas coisas à mãe.

Ao regressar a casa, não reparei no cavalo
que circulava tranquilo sobre a parede da sala,
nem na árvore de fruto que tinha nascido no
lava-loiça, nem na quantidade infinita de caixas
que se escondiam debaixo da cama.

Não reparei, mas sei.

Sei perfeitamente que isto representa, na me-
lhor das hipóteses, gostar de saber que não sei
nada, ou tão pouco, que se for realmente uma
tangerina, é porque o trago, para quase sempre,
na palma da mão.

Manuel Cintra in «Tangerina», pp.13-15, ed. de autor, 1990, Lx.  

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