16/09/2011

Lepidóptero...

Manuel Cintra (n. 1956)

I – CRISÁLIDA

dissolver o cansaço na aspirina o açúcar a angústia
a lembrança no sono o tropeço os falhanços, ligar
com cimento, construir

chorar de vez em quando às escuras para a febre descer

polir palavras com escova colocá-las com pinça
no interior, derramá-las num jarro sem vinho sobre o papel,
deixar secar, recortar, recompor, calar gritos, escrever

sonhar os poemas que não se escreve, escrever os poemas
      [que não.
podar as plantas nos filhos, mostrar os frutos, o caroço,
o saco de lixo, a hora de ponta, suor. depois lavar. levar
o peito à rua, receber os outros, perdê-los, trocá-los,
devolver este par de mãos àquele mar, afogar em esforço
a carótida torcida do tempo, parar sempre noutra esquina,
fugir à vertigem com o prazer das alturas, perder,

permanecer sentado até à dor nos ossos, cronometrar paciências,
aprender na lentidão a única saída,
rápida

e envelhecer.
   acreditar?

Manuel Cintra, “Bicho de Sede”, p.9, Ulmeiro, Lisboa, 1986.


II – BORBOLETA

1.       e
cá estamos nós mulher então
embarcados em torrentes de água seca
descidos nos sapatos onde a lama
se cola se descola a aprender invernos
no vento intermitente do monte
abaixo cada dia acima
do sorriso está a carne sem vergonha
das estrelas

e
a dose incerta de loucura nervo a nervo
a dose incerta de respiro e asfixia
coloquei-as juntas num cadinho
onde à noite a horas altas e baixas
costumava cozinhar os males de umbigo
que agora se amam se costuram se mordem
até ficar mais nada
no fundo com todos os braços
a ginástica do vento nos meus dedos
a poda nos goles de ar

e
um espinho ou dois tiritam-me
nos restos apalpados da pele de verão
nas partes amolgadas das árvores
de metal que conta o tempo sentado
no crescer da ferrugem sobre os nomes
que troquei por faixas de chão

e
o filho novo é soletrado com os dentes
beijo a beijo se registam naquela carne palavras
no desfrisar tecidos e a ti mulher
crescem mãos parecem nuvens
os dias que vestes são tecido novo
que desfibra o ritmo e o torna
a fibrar

e
às vezes cai-me o vento todo do bolso
derrama-se o cadinho lá se vai a química
desato a respirar

(…)
Manuel Cintra, “Bicho de Sede”, pp.13-14, Ulmeiro, Lisboa, 1986.

III – OVOS?

contido nesta tampa.
emparedado entre as duas
têmporas e as cinco
e meia da tarde
ardida quase
sempre inútil,
tocha chata de cera
que no verão derrete
e no inverno não se molda,
bolas, a esta situação.
há sempre o sopro
de a levantar, manter
intacto o jorro de luz
guardado subterrâneo,
correndo como um rio correndo,
até gastar trocar coçar
capachos

não tenho este formato.
terei talvez tempo de ser
eu a destruir a tampa
e fico, caramba, certo
de manter por dentro
nessa caixa o espaço
da futura destruição.

nem sempre como.
nem sempre como eles,
como sempre eu.

coisas da fome.

Manuel Cintra, “Bicho de Sede”, p.24, Ulmeiro, Lisboa, 1986.

Manuel Cintra, "Bicho de Sede", col. «Imagem do Corpo N.º31, Ed. Ulmeiro, 45 pág., Lisboa,  Fevereiro de 1986. Capa de Cristina Reis. 

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