Manuel Cintra, «Tangerina», ed. de autor, 1990, Lx. |
Madrugada.
Segurei nos seios que as minhas mão já não
eram, varri os restos da casca de ovo que já não
me cobria a cara, olhei para a rua que já não
era um espelho e senti-me. Só.
Ao despejar o lixo, encontrei entre cascas um
pequeno fruto redondo, de textura e cor irreco-
nhecíveis e olhei com atenção: não era deste
mundo.
Preferi imaginar que tinha imaginado, tornei
a colocá-lo entre os restantes detritos e, ao che-
gar ao contentor, despejei tudo cumprindo o ri-
tual que devolve algumas coisas à mãe.
Ao regressar a casa, não reparei no cavalo
que circulava tranquilo sobre a parede da sala,
nem na árvore de fruto que tinha nascido no
lava-loiça, nem na quantidade infinita de caixas
que se escondiam debaixo da cama.
Não reparei, mas sei.
Sei perfeitamente que isto representa, na me-
lhor das hipóteses, gostar de saber que não sei
nada, ou tão pouco, que se for realmente uma
tangerina, é porque o trago, para quase sempre,
na palma da mão.
Manuel Cintra in «Tangerina», pp.13-15, ed. de autor, 1990, Lx.