DE
OMBRO NA OMBREIRA
DO
SURREALISMO
Vitor
Silva Tavares
Em nacional português teríamos
chegado tarde a tudo, surrealismo incluído, não tivera havido faiscante
premonição a tal modo de usar: num jacto de psiquismo discursivo Almada esgalha
A Engomadeira dois anos antes
(estamos em 1917) de Apollinaire apor o hífen à designação pioneira
«sur-réalisme» para o «drama» Les
Mamelles de Tirésias.
Arqueólogos, cuidado: a esta
luz o próprio André Breton – pára-raios e constitucionalista – chega tarde ao
surrealismo!
Capítulo escavações temos entre
nós um caso toupeira expedicionária: vai-se à antologia O Surrealismo na Poesia Portuguesa que Natália Correia estampa
europa-américa em 1973 e lá surge a inaugurar uma tal Soror Violante do Céu,
nada em 1602 e sugada de vez pelo apelido em 1939, Nihil obstat.
Matéria de arautos & trombeteiros,
faz-se constar Agostinho de Campos (!) e já agora – pare, escute e olhe – Jorge
de Sena, mas a coisa apura em António Pedro, que manifesta «dimensionismo» (!)
em 1935 e até fardara surrealista londrino em 36. Também vale.
Ou não. E não, porque o Primeiro
Manifesto de 1924 (que manifesta a cosmovisão conceptual e as estradas da
intervenção) o surrealismo se entende unicamente acção de grupo, proposição revolucionária que se cumpre em
colectivo e dispensa (expulsa) frenesis umbilicais, génios domésticos. Atenção:
por enquanto, nisto, nem bufa de Estaline.
Mas teremos de virar folhas e
calendários, ultrapassar de Espanha e Segunda Mundial para, agora sim,
chegarmos a António Pedro como polarizador, na passada esperta, de um
primeiríssimo grupo de iniciados, ou isso. 1947: passe de mágica no círculo do
circo cercado e ei-lo primus inter pares
– já era mania pessoal, vê-se até na fotografia.
(IN SE RIR FOTO)
Primo que fosse, ou se colasse
colaterasse, serve à maravilha para arquivistas do tarde e do cedo.
Que é sempre tarde. E é cedo
sempre. Independente do cadáver adiado e da sua circunstância histórica, o real
movimento do espírito humano não cultiva relações com cronómetros e
calendários, as ondas magnéticas vertiginam por espaços e eras, sem atrás, sem
à frente, sem baixo, sem cimo, sem ida e sem volta. O que é que pois importa,
nesta irradiação, sublinhar-se primeiro
como certificado de valor ou louro de efeméride se de cada «novidade» na
anedota dos ismos se desenha apenas o jeito da farpela, o ademane?
Adiante. Temos por assente que
Breton e correligionários, saídos da negação pura e dura de dadá, não asparam o
surrealismo como estética, mais uma, apesar dos impulsos instrumentais –
psiquismo onírico, celebração mágica, discurso sem censura racionalista – e dos
modos operatórios da criação artística aqui alavanca (uma delas, e nem por isso
aglutinadora) para mudar a vida, mudar mesmo, e transformar, transformar mesmo,
o Homem: assim o afirmaram revolução –
com ética interventora e revólver dialéctico, pum pum.
Quanto ao comandante de grupo
lusitano cheira-nos que afeiçoou ele o surrealismo cheirado via Canal da Mancha
ao figurino de bailarico minhoto – e terá sido por consequência, afeito
folclore de vanguarda, que o Secretário de Propaganda Nacional, depois
Secretário Nacional de Informação (não é de hoje, pois não, a camuflagem da
propaganda em informação), todo entregue a modernismos para não mais se sentir
só, lhe chamou um figo, lhe abriu salões para expor, pagou catálogos, fez a
festa, lançou foguetório e deixou outros a apanhar as canas. Ou nem isso.
Porque outros – havia outros – tomavam de assalto a SNBA de Eduardo Malta e,
verdinhos muitos da António Arroio, pintavam-se alguns de vermelho tropical,
tipo Portinari e muralistas mexicanos, naquela sua ideia deles de porem
trombudos trolhas a almoçar de marmita ou a adjectivarem a fome – e oh se esta
apertava – com os ossos todos à vista armada. Mas será este um outro filme, se
não o mesmo. Porque a polémica «neo-realismo» versus «surrealismo» foi também,
se é que não foi de sobremaneira, uma polémica política em tempos
internacionais de brutal confrontação entre fascismos e antifascismos, e por cá
em conformidade, entre quem colaborava ainda que a toca-e-foge ou não
colaborava-de-todo com um regime ditatorial, claramente apoiante dos fascistas
espanhóis e das potências do Eixo, que nem a «Política do Espírito» herdada do
buliçoso Ferro lograva branquear. Impunha-se uma separação de águas ou
territórios, de compromissos tácticos, de comportamentos. Não apenas, note-se,
entre os dois lados deste fosso que o tempo forçava a preto-e-branco: pairando
como pairava, já nas hostes neo-realistas, a treva do jdanovismo estalinista –
que impelia o Mário Dionísio das «Fichas» a confrontar um António Vale que mais
não era que o Álvaro Cunhal em embuçado pseudónimo – também no interior do que
passava a ser o primeiro grupo surrealista havia quem, houve quem, desde logo
se não antes lobrigasse o surrealismo de António Pedro como esturro reaccionário,
ou fedor de cadáver-mais-que-esquisito da propaganda estadonovista, álibi d’arte
prafrentex, lambidinho em subdesenvolvidas imitações dalinianas e logo
convenientemente «onírico». Na literatura, o mesmo: serra d’Arga à vista, em
proto-poema hortaliceiro. Estava muito bem assim.
COLAGEM – I
De uma entrevista concedida por
Francisco Castro Rodrigues, homem do MUD e co-organizador do volume antológico
Bloco (onde neo-ralistas e futuros surrealistas se ombreavam), à revista Abril em Maio, Abril de 2001:
CR – As teorias de António
Pedro foram aquelas seguidas imediatamente.
AeM – Eram teorias
dissolventes?
CR – Não diria tanto. Mas era:
desliguem-se dos comunistas, desliguem-se desses antifascistas todos, e pintem,
e façam as vossas obras. (…) Talvez viesse a saber depois que aquilo era o
expoente dessa coisa que se chamou surrealismo. Vieram depois juntar-se ao
Grupo Surrealista de Lisboa, em manifesta hostilidade a esses patetóides dos
realistas, dos neo-realistas, porque ninguém falava ainda em realismo
socialista, não se sabia o que isso era.
COLAGEM – II
Do artigo «Antes e depois de
1947», de Alexandre Pomar, inserto no «Cartaz» do Expresso, 2 de Junho de 2001:
Quanto à primeira fase do
surrealismo nacional, o carácter de ruptura atribuído à exposição de Pedro e
Dacosta na Casa Repe (1940) tem de ser prudentemente contabilizado com a
aparição regular da sua pintura nos salões do SPN, desde 39, depois no SNI, em
45, e na SNBA em 46 e 47 (1.ª e 2.ª EGAP), associada entretanto à confusa
produção de Cândido Costa Pinto, Por outro lado, é indispensável que ao
vanguardismo de pedro em 34 se associe a sua militância fascista (é então
comissário da propaganda do «Nacional Sindicalismo» e a ida para Paris é um
«semi-exílio» solidário com Rolão Preto, como França ensinou), tal como importa
referenciar na extrema direita as figuras de Dutra Faria e Ramiro Valadão,
co-autores dos primeiros cadavres-exquis
ditos surrealistas.
COLAGEM – III
De Mário Cesariny, in A Intervenção Surrealista (1966), dados
referentes a 1947:
a) Em Lisboa, António Domingues,
Alexandre O’Neill, João Moniz Pereira e Mário Cesariny aderem ao surrealismo.
b) Em Lisboa, Alexandre O’Neill e
António Domingues afastam Cândido Costa Pinto do grupo surrealista em formação,
ao mesmo tempo que chamam António Pedro a esse propósito.
«Fundador»
do grupo lisboeta por usurpação transformada em direito natural, e assim uma
espécie de gauleiter do surrealismo-de-montra do Palácio Foz, António Pedro
devia exalar ainda, em majestático, o fascínio de um cilindro sedutor (leia-se
José-Augusto França, que em recentes Memórias
lhe presta sentida homenagem e lhe despe a fardeta negra), daí decorrendo que,
perorando pulsões narcísicas sem mais ímpeto ou furor, atrai ao primeiro milho
da «subversão artística» uns tantos moços sedentos de ardências outras das da
epopeia futurista quanto mais da saga coitadinha de gaibéus e trolhas. E se uns
por aí se ficaram, breve deslizando como O’Neill ou Dacosta (que já «pegara
fogo» ao atelier de António Pedro em 1944, segundo Cesariny), outros, em clara
agonia do mau cheiro, bateram com a porta e foram, literalmente, apanhar ar. O
ar que houvesse disponível nos interstícios do pestilento país do respeitinho,
dos padres e das polícias.
Decorre uma saraivada de manifestos,
abaixo-assinados, poemas-colagens e por colar, objectos recuperados,
cadáveres-esquisitos, picto-abjeccionistas, provocações – o mais intenso, o
mais dinâmico, o mais inventivo e interventivo que pulsou entre nós o surrealismo-enquanto-tal,
único.
* * *
Enredos e equívocos em malha
apertado eis que se chega (47) ao palco do JUBA onde doutores mui curiosos de
saber o que era afinal isso do surrealismo ouviram os distintos baptizados e
estancaram-se com o mesmo ponto de exclamação sendo depois brindados pelos «outros»
com um gato dentro duma caixa de sapatos «tudo rapaziadas» miopou póstumo o
Luiz Pacheco enquanto o trolha lá ia melhorando o rancho e a pide refeita do
cagaço da vitória dos aliados garantia o emprego o emprego com o novo alento da
guerra fria já que os capatazes locais do zé dos bigodes excomungavam de reaccionários
todos (por causa do ex-fascista Pedro?) esses rapazes suspeitamente
esquizofrénicos e esotéricos e sebosos de caca cuspo e ramela que tendo lido
embora e adaptado conforme o Segundo Manifesto da tentação marxista repegavam
Rimbaud e Artaud e outros videntes e empanzinavam-se (no papel) de carapaus
fritos e pratos de sopa numa recusa telhuda de explicações para a História dos
sábios e de carreiras artísticas com vista à enxúndia bancária e assim se
estampavam com o nariz na porta dos suplementos culturais e das casas editoras
que lá iam cumprindo em elevado espírito de missão & melhor consciência
comercial o papel de oposição ao regime, oh Posição.
Esses rapazes que lá fora – ah,
lá fora – conseguiam, malgré tout em
português, rir de tudo.
* * *
COLAGEM – IV
De Mário Cesariny, in A
Intervenção Surrealista, dado o referente a 1951: Alexandre O’Neill publica: Tempo
de Fantasmas, primeira recolha de versos. Apresentando, diz estar o
surrealismo «reduzido, como merece, às alegres actividades de dois ou três
aventureiros». Os surrealistas respondem com o folheto: Do Capítulo da Probidade.
Propriamente dita (não contando
a zona de transição entre uma atípica influência neo-realista – batuta Pinheiro
Torres? – e os primeiros bosquejos experimentalistas), a aventura surrealista
«ortodoxa» de Alexandre O’Neill pouco mais dura que o amor de um estudante: máximo
quatro anos e as colagens d’A Ampola Miraculosa (1948), somando sim senhor –
entre penúrias, angústias, vagabundagens, paixões de cair à cova –, uns tantos
objectos-esculturas, alguns cadáveres-esquisitos e abaixo-assinados, cartas e
repentes poemáticos. Tudo o que vem a escrever e publicar depois (incluindo
Tempo de Fantasmas) não o considera ele «surrealista» – e disse.
Após o acne do achamento e a imediata
sintonização com o novo espírito de rebeldia – que aliás ia ao encontro do seu
pendor iconoclasta –, breve se enreda nas manigâncias e intrigas e conspirações
grupais gerados pela bafienta erosão do tempo e do lugar, navega à bolina e a
desnorte, cava um fosso com outras radicalidades porventura mais consequentes e
parte enfim solto de obediências sacerdotais, nunca deveras assimiladas, rumo à
autenticidade própria, ao auto-retrato, Certo que do surrealismo como ele o
entendia « herdou certa tentação pela ambiguidade (fuga do real) e um
formalismo que o leva, num ou noutro poema, a soluções de evidente mau gosto»,
ele o diz em 51 mas não é de levar à letra para todo o sempre, o poeta amuara.
Outro, sem dúvida, é o sentido eu dá
à vida ou à «vizinha» e se deixa ler no seu corpus poético, o regresso à base do
«real», os escolhidos ou recuperados vultos tutelares (Tolentino, Bocage, Gomes
Leal), o olhar (escarninho, lúcidomerda) sobre o ser Português no Portugal das
três sílabas e dos três efes, também o percurso – em boa medida ditado pelo
virtuosismo vocabular e pela agilíssima imaginação – que o conduz ao pãozinho
da publicidade e lhe vem a contaminar, pungente embora no autocriticismo
derisório, o aplicado rigor da oficina e a mundividência da inspiração.
Caso arrumado, em surrealista (também como os outros) condenado
a solitário? – Pois não senhor.
Na «Biografia Cronológica de Alexandre O’Neill», estabelecida
por Ana Maria Pereirinha nas Poesias
Completas (ed. INCM, 1990), pode ler-se:
COLAGEM – V
1945-1950
Anos da «aventura
surrealista», balizados por dois encontros fundamentais: em 1945 o encontro com
Mário Cesariny, no café A Cubana, determinante para a formação dois anos mais
tarde do Grupo Surrealista de Lisboa: em 1950 o encontro com Nora Mitrani. A
partir deste último ganhará corpo o mito do amor puro, do «amor louco», nunca
maculado pelo «sórdido amor mesa-de-família-cama-de-casal» contra o qual O’Neill
se rebela num questionário acerca dos porquês da adesão ao Surrealismo inserido
no catálogo da 1.ª exposição do G.S.L.
O'Neill com Nora Mitriani |
Cristalizado e imortalizado na beleza pungente de Um Adeus Português, na ternura infinita
da elegia que são Seis Poemas Confiados à
Memória de Nora Mitriani, será este o amor dorido do poeta. O homem real
encontrará na vida outras concretizações do amor, todavia menos absolutas.
Sublinhe-se: todavia e
menos absolutas.
Alexandre O’Neill projecta-se surrealista em Amor Absoluto.
À LAIA de P.S.
Surrealismo, revolução surrealista, na feira cabisbaixa? Máxima
liberdade para o Homem quando por cá se coarctava, para além da liberdade
cívica, a própria livre expressão do pensamento e da vivência poética, também
esta forçada em literário a camuflagens, alegorias, extrapolações simbólicas,
audácias caligráficas? Que grandes transparentes iluminados em tal opacidade?
Sendo como era a retaguarda, que vanguardas outras distintas das recreações do
espírito e das guerrilhas do alecrim e da manjerona?
Alexandre O’Neill – a sua agudeza crítica – nega-se a um
surrealismo desde logo confinado a erupções de meneio artístico e sequer se
presta a espectador ao postigo do abjeccionismo, proposição de Pedro Oom como
paisagem adequada (empestada) a um impossível surrealismo cá: vejam a merda em
que sufoca o sonhador espacializado. Com ele se deu o que se dá com os
revolucionários sem revolução: acabam por se devorar, suicidados da sociedade –
sendo os próprios a apresentar a certidão de óbito, fuligem de um incêndio
onde, num breve encontro, puderam crepitar com outros.
Os seus dentes todos, se desejavelmente «lavados e muitos» como
os de Cesariny a rir «lá fora», foram, com o continuado tempo de fantasmas,
ficando apodrecidos pela cárie da amargura. Vi-os eu com estes olhos a
castigarem de cínica ironia – essa gabardina fingidamente protectora das chuvas
ácidas que a muitos encharcavam, degradavam, no cinzento da pátria salazarenta
e no depois do ledo engano que Abril abriu. Vê-los luzir seria terapêutico não
fosse, no asséptico real quotidiano, penoso. Por ele. Por mim nós. Pelo
dessorar de uma utopia revolucionária feita corpo visível noutras latitudes ou,
em mais próximo e pequenino, por uma adeus (infinito) português que a língua –
a literatura – por si só pode iludir mas lá travar não trava.
Prefácio
de Vitor Silva Tavares in Alexandre O’Neill – Anos 70 Poemas Dispersos, Assírio
& Alvim, 2.ª ed., Fevereiro de 2009.
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