03/12/2019

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LIVRE, CRISTÃ E OCIDENTAL

“A Galeria Bernardette fazia um negócio excelente e o senhor Balakian tinha todas as razões para estar satisfeito. Era raro o dia em que não vendia uma meia dúzia de fruta, quase sempre dos mais procurados autores. Nesse mesmo momento acabava de vender uma lindíssima banana com a assinatura de Tibor Gayo. Uma banana Gayo realmente excepcional, com aquele alegre colorido tão poderosamente abstracto que caracterizava toda a fruta do artista.
A verdade é que a melhor sociedade, todos os apreciadores da capital eram seus clientes. Com frequência se ouviam comentários encomiásticos às magníficas frutas dos jantares mais apurados. Um banqueiro tinha que resolver grave problema de finança e era certo e sabido: no fim do repasto surgia a fruta com excelentes assinaturas. Com o ministro o mesmo: embaixador presente à mesa e pronto, lá estavam duas ou três pêras Capristano, naquele estilo forte e seguro do pintor. Realmente Capristano era caro mas ninguém discutia o preço. Valia e vendia-se bem.
Pois se ainda há dias me dizia o doutor Lesoto, o conhecido crítico:
Meu caro, ontem, em casa do Gualtério, havia uma maçã e dois abrunhos de Júlia Jardim que eram um regalo. Do melhor que conheço, estou-lhe a dizer. E tão maduros! Uma delícia.
Então aconteceu o inesperado. Estava o senhor Balakian a polir uma pêra Terensky quando lhe entra pela Galeria uma alta patente do exército, da Casa Militar do Ducado. Explicou ao que vinha, com exactidão militar. Sua Excelência dava, no dia seguinte, uma pequena recepção a uma delegação de deputados em visita ao país. Muito bem. Sua Excelência necessitava de uma série de obras para a sobremesa, das mais reputadas. Eram sessenta talheres. Logo, no mínimo seriam sessenta peças escolhidas. O preço não interessava, era só o senhor Balakian apresentar a conta ao erário. Posto isto, o marechal retirou-se avisando que mandaria pela fruta no dia seguinte, às seis da tarde.
O senhor Balakian ficou tremendamente preocupado. Nunca tinha grande acervo, não se podia conservar excessivamente a maioria das obras, sorvavam com enorme rapidez, era capital perdido. Deu um balanço ao que havia. Uma maçã e duas pêras Capristano, do melhor estilo, sóbrias e profundas. Sete bananas Tibor Gayo, ultimamente a procura de banana baixara um pouco. Um ananás realmente extraordinário de Ferdinand, de um colorido assombroso nos múltiplos losangos. Meia dúzia de ameixas sortidas, com a alegria de Júlia Jardim, a imaginação metafísica de Carlos Clarete e a dignidade antiga de Mestre Rovira. Três melões casca de carvalho com motivos folclóricos e não assinados, coisa própria para estrangeiros e, finalmente, uma pêra e três laranjas de Terensky, fulgurantes de abstracção. Feitas as contas, eram vinte e uma obras, embora pudesse considerar o ananás e os melões como obras não unitárias. Bem vista as coisas, digamos que podiam corresponder a quarenta talheres. Era o diabo, os convivas eram sessenta, conforme informara o marechal da Casa Militar. Uma encrenca, essas coisas não podiam ser feitas assim de repente, arreliava-se o senhor Balakian. Passou a tarde a telefonar para os artistas mais conceituados, mas nada. Uns não tinham tempo, outros faltava-lhe a fruta apropriada, outros ainda estavam ocupados com peças de grande porte, como abóboras. De factura exigente e demorada.
À noite, desesperado, mandou.me um recado de aflição pela Remualda da caixa que aparece umas vezes por outras cá em casa. Pensei um pouco, disse à Remualda que se pusesse à vontade que eu não me demorava e atirei-me para o telefone do PRAXIS, logo ali em frente. Enquanto sorvia um gin, liguei para o Militão Cuba, sabem, que vive em Balmoral. Ora, como também sabem com certeza, Balmoral é uma vila famosa pelos fenómenos constantes: já deu um nabo de sete quilos, um pianista búlgaro de dezoito meses e um frango com três pernas, isto que me lembre agora.
O Militão estava em casa e disse-me, eficaz como sempre, que lhe parecia poder solucionar a coisa. Eu que lhe aparecesse por lá logo de manhã e então se veria. Não quis explicar mais nada.
Passei a noite preocupado, embora não muito e, mal foi dia, corria à Galeria a comunicar o facto ao senhor Balakian. Aporrinhado como estava, viu ali a salvação e disse-me que usasse o seu helicóptero, para ser mais rápido.
Às onze e meia estava de volta. O Militão arranjara tudo, com o mais recente fenómeno de Balmoral: uma tremenda melancia de vinte quilos, de um verde radioso! Uma superfície ideal para a pintura paisagística, uma abundância excelente para os convivas que restavam.
Mas havia que acabar a obra. Tinha de ser rápido. O senhor Balakian, já de certa idade e com aquela complicação às costas, não tinha cabeça para nada. Lembrei-lhe o Fujimoto, no seu clássico paisagismo asiático, rápido na execução. Era o indicado, se estivesse livre. Isso mesmo, o Fujimoto, concordou o senhor Balakian e cedeu-me o carro, logo ali, para me atirar ao assunto.
Fui e vim em meia hora, numa loucura de volante, com Fujimoto, as seringas de Pravaz, os pincéis fininhos e as lacas apropriadas. Prometemos-lhe tudo e pusemo-lo numa azáfama criadora.
Ao quarto para as seis a paisagem oriental, exacta, delicada, de suave colorido, envolvia a enorme esfera verde. Na verdade, um dos melhores Fujimoto que me fora dado ver, se não o melhor.
Às seis a fruta era entregue ao enviado especial da Casa Militar.
Dias depois o senhor Balakian recebia do erário o cheque magnânimo e, cerca de um mês após a recepção, Sua Excelência agraciava-o com o colar do Mérito Agrícola Cultural. A melancia fora um êxito completo, o país saíra-se airosamente, com elogios unânimes dos deputados estrangeiros maravilhados.
Quanto a mim, recebi três nêsperas que o senhor Balakian me ofereceu com eterna gratidão. Três nêsperas excepcionais, devo dizer, com originalíssimas colagens do Senegal Júnior.
Souberam-me muito bem.”

Mário-Henrique Leiria, “Contos do Gin-Tonic”, pp. 15-18, Editorial Estampa, 2. ª ed., 1976.

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