LIVRE,
CRISTÃ E OCIDENTAL
“A
Galeria Bernardette fazia um negócio excelente e o senhor Balakian
tinha todas as razões para estar satisfeito. Era raro o dia em que
não vendia uma meia dúzia de fruta, quase sempre dos mais
procurados autores. Nesse mesmo momento acabava de vender uma
lindíssima banana com a assinatura de Tibor Gayo. Uma banana Gayo
realmente excepcional, com aquele alegre colorido tão poderosamente
abstracto que caracterizava toda a fruta do artista.
A
verdade é que a melhor sociedade, todos os apreciadores da capital
eram seus clientes. Com frequência se ouviam comentários
encomiásticos às magníficas frutas dos jantares mais apurados. Um
banqueiro tinha que resolver grave problema de finança e era certo e
sabido: no fim do repasto surgia a fruta com excelentes assinaturas.
Com o ministro o mesmo: embaixador presente à mesa e pronto, lá
estavam duas ou três pêras Capristano, naquele estilo forte e
seguro do pintor. Realmente Capristano era caro mas ninguém discutia
o preço. Valia e vendia-se bem.
Pois se ainda há dias me
dizia o doutor Lesoto, o conhecido crítico:
– Meu caro, ontem, em casa
do Gualtério, havia uma maçã e dois abrunhos de Júlia Jardim que
eram um regalo. Do melhor que conheço, estou-lhe a dizer. E tão
maduros! Uma delícia.
Então aconteceu o inesperado.
Estava o senhor Balakian a polir uma pêra Terensky quando lhe entra
pela Galeria uma alta patente do exército, da Casa Militar do
Ducado. Explicou ao que vinha, com exactidão militar. Sua Excelência
dava, no dia seguinte, uma pequena recepção a uma delegação de
deputados em visita ao país. Muito bem. Sua Excelência necessitava
de uma série de obras para a sobremesa, das mais reputadas. Eram
sessenta talheres. Logo, no mínimo seriam sessenta peças
escolhidas. O preço não interessava, era só o senhor Balakian
apresentar a conta ao erário. Posto isto, o marechal retirou-se
avisando que mandaria pela fruta no dia seguinte, às seis da tarde.
O senhor Balakian ficou
tremendamente preocupado. Nunca tinha grande acervo, não se podia
conservar excessivamente a maioria das obras, sorvavam com enorme
rapidez, era capital perdido. Deu um balanço ao que havia. Uma maçã
e duas pêras Capristano, do melhor estilo, sóbrias e profundas.
Sete bananas Tibor Gayo, ultimamente a procura de banana baixara um
pouco. Um ananás realmente extraordinário de Ferdinand, de um
colorido assombroso nos múltiplos losangos. Meia dúzia de ameixas
sortidas, com a alegria de Júlia Jardim, a imaginação metafísica
de Carlos Clarete e a dignidade antiga de Mestre Rovira. Três melões
casca de carvalho com motivos folclóricos e não assinados, coisa
própria para estrangeiros e, finalmente, uma pêra e três laranjas
de Terensky, fulgurantes de abstracção. Feitas as contas, eram
vinte e uma obras, embora pudesse considerar o ananás e os melões
como obras não unitárias. Bem vista as coisas, digamos que podiam
corresponder a quarenta talheres. Era o diabo, os convivas eram
sessenta, conforme informara o marechal da Casa Militar. Uma
encrenca, essas coisas não podiam ser feitas assim de repente,
arreliava-se o senhor Balakian. Passou a tarde a telefonar para os
artistas mais conceituados, mas nada. Uns não tinham tempo, outros
faltava-lhe a fruta apropriada, outros ainda estavam ocupados com
peças de grande porte, como abóboras. De factura exigente e
demorada.
À noite, desesperado,
mandou.me um recado de aflição pela Remualda da caixa que aparece
umas vezes por outras cá em casa. Pensei um pouco, disse à Remualda
que se pusesse à vontade que eu não me demorava e atirei-me para o
telefone do PRAXIS, logo ali em frente. Enquanto sorvia um gin,
liguei para o Militão Cuba, sabem, que vive em Balmoral. Ora, como
também sabem com certeza, Balmoral é uma vila famosa pelos
fenómenos constantes: já deu um nabo de sete quilos, um pianista
búlgaro de dezoito meses e um frango com três pernas, isto que me
lembre agora.
O Militão estava em casa e
disse-me, eficaz como sempre, que lhe parecia poder solucionar a
coisa. Eu que lhe aparecesse por lá logo de manhã e então se
veria. Não quis explicar mais nada.
Passei a noite preocupado,
embora não muito e, mal foi dia, corria à Galeria a comunicar o
facto ao senhor Balakian. Aporrinhado como estava, viu ali a salvação
e disse-me que usasse o seu helicóptero, para ser mais rápido.
Às onze e meia estava de
volta. O Militão arranjara tudo, com o mais recente fenómeno de
Balmoral: uma tremenda melancia de vinte quilos, de um verde radioso!
Uma superfície ideal para a pintura paisagística, uma abundância
excelente para os convivas que restavam.
Mas havia que acabar a obra.
Tinha de ser rápido. O senhor Balakian, já de certa idade e com
aquela complicação às costas, não tinha cabeça para nada.
Lembrei-lhe o Fujimoto, no seu clássico paisagismo asiático, rápido
na execução. Era o indicado, se estivesse livre. Isso mesmo, o
Fujimoto, concordou o senhor Balakian e cedeu-me o carro, logo ali,
para me atirar ao assunto.
Fui e vim em meia hora, numa
loucura de volante, com Fujimoto, as seringas de Pravaz, os pincéis
fininhos e as lacas apropriadas. Prometemos-lhe tudo e pusemo-lo numa
azáfama criadora.
Ao quarto para as seis a
paisagem oriental, exacta, delicada, de suave colorido, envolvia a
enorme esfera verde. Na verdade, um dos melhores Fujimoto que me fora
dado ver, se não o melhor.
Às seis a fruta era entregue
ao enviado especial da Casa Militar.
Dias depois o senhor Balakian
recebia do erário o cheque magnânimo e, cerca de um mês após a
recepção, Sua Excelência agraciava-o com o colar do Mérito
Agrícola Cultural. A melancia fora um êxito completo, o país
saíra-se airosamente, com elogios unânimes dos deputados
estrangeiros maravilhados.
Quanto a mim, recebi três
nêsperas que o senhor Balakian me ofereceu com eterna gratidão.
Três nêsperas excepcionais, devo dizer, com originalíssimas
colagens do Senegal Júnior.
Souberam-me muito bem.”
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