JULGAMENTO
DEFINITIVO
“O julgamento chegara ao
fim.
O Juiz levantou-se, colocou a
touca de pompons e encarou a assistência.
O silêncio era total quando o
preboste tocou a corneta.
Todos se levantaram numa
unanimidade respeitosa, enquanto o escrivão disparava os dois tiros
da praxe.
A pequena porta à esquerda da
tribuna abriu-se e os acusados entraram, acompanhados pelas
vivandeiras e pelos carregadores habituais.
O coro, na varanda, entoou os
primeiros acordes do hino e o decano dos archeiros perfilou-se e içou
a bandeira.
Ia processar-se a leitura da
sentença.
O Juiz estendeu o documento ao
boticário de serviço nocturno que fora chamado especialmente.
A acusação descritiva foi
lida em primeiro lugar, para descrever a acusação apresentada a
favor dos acusados pela Comissão de Inquérito.
Os três réus eram elogiados
sob reserva por, em local algures, terem exterminado trinta e sete
crianças avulsas, setenta e duas mulheres em movimento
recalcitrante, onze velhos não autenticados e sete cabras suspeitas
de espionagem comercial, embora o óbito destas últimas não tivesse
sido confirmado pela Comissão de Inquérito. Também lhes era
atribuído o incêndio de três aldeias não localizáveis e de duas
cadeiras Luís XV já localizadas, se bem que sem número de
catálogo.
O preboste tocou a corneta e o
escrivão, em sentido, disparou o tiro da praxe.
Ia ser lida a decisão final.
Os acusados viraram-se para o
Juiz.
As vivandeiras viraram-se para
os acusados.
Os carregadores viraram-se uns
para os outros.
O Juiz tirou a touca de
pompons, pôs o chapéu das circunstâncias sentenciosas e virou-se
para o boticário.
O boticário prosseguiu a
leitura do documento.
Verificados os acontecimentos
e sendo os mesmos louvados por unanimidade, os acusados sofriam os
seguintes benefícios:
O primeiro acusado, de boné
grande (vinte e uma crianças, trinta e seis mulheres, sete velhos,
duas aldeias), recebia medalha de ouro.
O segundo acusado, de boné
pequeno (dez crianças, vinte e nove mulheres, três velhos, uma
aldeia), recebia medalha de prata.
O terceiro acusado, sem boné
(seis crianças, seis mulheres, um velho, nenhuma aldeia mas duas
cadeiras), tinha direito a medalha de bronze.
A assistência irrompeu em
aplausos frenéticos, com preferência evidente para o segundo
acusado, que era da terra.
O boticário enrolou o
documento e devolveu-o ao Juiz que o entregou ao Depositário de
Secos e Molhados.
O preboste tocou a corneta e o
escrivão, atento, deu os três tiros da praxe.
As vivandeira beijaram os
acusados.
Os carregadores beijaram o
boticário.
Todos se sentaram.
Os acusados subiram ao podium
e saudaram a assistência, em sentido e sem rir.
O coro, na varanda, entoou os
últimos acordes do hino.
À noite, depois da marcha
triunfal, houve um cocktail Molotov comemorativo, no Palácio dos
Jogos Fenianos, com a presença de todas as altas personalidades do
Condado.
Dizia o Juiz aos três
homenageados «ainda não lhes contei a última do Reboredo» quando
o mundo explodiu.”
Mário-Henrique Leiria,
“Contos do Gin-Tonic”, pp. 47-49, Editorial Estampa, 2. ª ed.,
1976.
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