30/09/2019

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A VELHA E AS COISAS


Verdade se diga que o país era pequeno, bem pequeno mesmo. Logo, é evidente, as coisas também tinham de ser pequenas, para caberem.

Daí os partidos. Havia o partido Blicano e o partido Crático; assim reduzidos, cabiam. Eram a Oposição.

Além disso, havia a Posição. O General, os Dois Coronéis, o Sargento (justicialista), o Professor Mustache, autor da Constituição e de «Cartas Patrióticas ao Corneta Pir» e a Velha dirigindo, claro.

Portanto as coisas lá iam, o comportamento geral era bastante aceitável, as cebolas vendiam-se a contento, o nabo aguentava-se, havia a nêspera e o export-import funcionava mais ou menos.

Mas também havia as eleições à porta. Era preciso tento, nada de imprevidências. E chamou-se o Galvez, dos Suplementos Literários, para montar o processo jurídico, organizar e levar o assunto a bom termo, como devia ser.

O Galvez organizou.

Leram-se as dignidades do preparo. O discurso activou-se e a pátria foi avisada que estava em perigo. Houve quermesses. A Velha explicou tudo ao país, mais uma vez, pela televisão. Elegeram-se misses e praticou-se música histórica, própria da conjuntura.

Assim se foram três meses, com várias bofetadas esclarecedoras aos que, pelos cafés, ainda não sabiam.

Então chegou o dia do voto. Todos deram o papel que lhes tinha sido entregue. Alguns espancamentos disciplinares, para clarear o voto, e a contagem fez-se.

A informação foi a seguinte:

Sopa de Feijão Branco (candidato Blicano)    – 13 728

O Bode (candidato Crático)                          – 13 727

D.ª Josefa Sur-Mer (candidata independente)– 13 726

O General (candidato)                                 – 13

Donde, conforme a Constituição, o General foi eleito de novo, por maioria absoluta.

Havia os seguintes impedimentos legais:

Sopa de Feijão Branco não residia há mais de cinco anos no país (inconstitucional, portanto).

O Bode era menor e não estava inscrito nos cadernos eleitorais (inconstitucional, evidente).

D.ª Josefa Sur-Mer não sabia Matemáticas Modernas, já residia há mais de cinco anos no país e, além disso, era Sur-Mer (totalmente inconstitucional).

Vendo o acontecimento, o Galvez ameaçou escrever para mais Suplementos, pondo tudo em pratos limpos, já que lhe parecia – tinha até provas – que Sopa era residente perpétuo.

O Galvez foi chamado. A Velha falou-lhe. O Galvez escutou. A Velha explicou-lhe. O Galvez era patriota. O Galvez ficou convencido.

Daí em diante o Galvez passou a negociar – com exclusivo próprio – na exportação de nêspera conservada, do pescado enlatado e da camisa em renda de bilros. Teve também o Turismo e o Gabinete Alfandegário.

Aqui se vê, portanto, que a coisa pública seguiu esclarecida, firme, como era de desejar.

No entanto, dado o tamanho realmente pequeno do país, como aliás já fiz notar, houve que fazer mais umas reduções. A Oposição passou a chamar-se só Ó e os dependentes devido à situação económica e à outra, ficaram apenas Pendentes.

Visto isto, o Galvez foi de ministro plenipotenciário para Tombuctu.

Como dizia a Velha, no seu habitual «Colóquio à Lareira» pela televisão:

Para a frente, meus filhos. A pátria nos contempla e o passado nos espera.”




Mário-Henrique Leiria, “Contos do Gin-Tonic”, pp. 121-123, Editorial Estampa, 2. ª ed., 1976.

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