A
VELHA E AS COISAS
“Verdade se diga que o país
era pequeno, bem pequeno mesmo. Logo, é evidente, as coisas também
tinham de ser pequenas, para caberem.
Daí os partidos. Havia o
partido Blicano e o partido Crático; assim reduzidos, cabiam. Eram a
Oposição.
Além disso, havia a Posição.
O General, os Dois Coronéis, o Sargento (justicialista), o Professor
Mustache, autor da Constituição e de «Cartas Patrióticas ao
Corneta Pir» e a Velha dirigindo, claro.
Portanto as coisas lá iam, o
comportamento geral era bastante aceitável, as cebolas vendiam-se a
contento, o nabo aguentava-se, havia a nêspera e o export-import
funcionava mais ou menos.
Mas também havia as eleições
à porta. Era preciso tento, nada de imprevidências. E chamou-se o
Galvez, dos Suplementos Literários, para montar o processo jurídico,
organizar e levar o assunto a bom termo, como devia ser.
O Galvez organizou.
Leram-se as dignidades do
preparo. O discurso activou-se e a pátria foi avisada que estava em
perigo. Houve quermesses. A Velha explicou tudo ao país, mais uma
vez, pela televisão. Elegeram-se misses e praticou-se música
histórica, própria da conjuntura.
Assim se foram três meses,
com várias bofetadas esclarecedoras aos que, pelos cafés, ainda não
sabiam.
Então chegou o dia do voto.
Todos deram o papel que lhes tinha sido entregue. Alguns
espancamentos disciplinares, para clarear o voto, e a contagem
fez-se.
A informação foi a seguinte:
Sopa de Feijão Branco
(candidato Blicano) – 13 728
O Bode (candidato Crático)
– 13 727
D.ª Josefa Sur-Mer (candidata
independente)– 13 726
O General (candidato) – 13
Donde, conforme a
Constituição, o General foi eleito de novo, por maioria absoluta.
Havia os seguintes
impedimentos legais:
Sopa de Feijão Branco não
residia há mais de cinco anos no país (inconstitucional, portanto).
O Bode era menor e não estava
inscrito nos cadernos eleitorais (inconstitucional, evidente).
D.ª Josefa Sur-Mer não sabia
Matemáticas Modernas, já residia há mais de cinco anos no país e,
além disso, era Sur-Mer (totalmente inconstitucional).
Vendo o acontecimento, o
Galvez ameaçou escrever para mais Suplementos, pondo tudo em pratos
limpos, já que lhe parecia – tinha até provas – que Sopa era
residente perpétuo.
O Galvez foi chamado. A Velha
falou-lhe. O Galvez escutou. A Velha explicou-lhe. O Galvez era
patriota. O Galvez ficou convencido.
Daí em diante o Galvez passou
a negociar – com exclusivo próprio – na exportação de nêspera
conservada, do pescado enlatado e da camisa em renda de bilros. Teve
também o Turismo e o Gabinete Alfandegário.
Aqui se vê, portanto, que a
coisa pública seguiu esclarecida, firme, como era de desejar.
No entanto, dado o tamanho
realmente pequeno do país, como aliás já fiz notar, houve que
fazer mais umas reduções. A Oposição passou a chamar-se só Ó e
os dependentes devido à situação económica e à outra, ficaram
apenas Pendentes.
Visto isto, o Galvez foi de
ministro plenipotenciário para Tombuctu.
Como dizia a Velha, no seu
habitual «Colóquio à Lareira» pela televisão:
– Para a frente, meus
filhos. A pátria nos contempla e o passado nos espera.”
Mário-Henrique
Leiria, “Contos do
Gin-Tonic”, pp. 121-123, Editorial Estampa, 2. ª ed., 1976.
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