Coimbra,
14 de Outubro de 1945
– Estes
novos fazem-me de fel e vinagre, e eu reajo, claro. Mas reajo só por
fora. Sou humano,
e não é agradável ouvir certos assobios. Por dentro, porém, estou
inteiramente com eles. Com quem hei-de estar eu, senão com quem tem
a natureza pelo seu lado? Mesmo que façam maus versos e péssima
prosa, eles é que têm vinte anos, é que vão trazer ao mundo a sua
primavera de agora. E eu, a dizer que não, bebo-lhes as palavras,
espreito-lhes os gestos, acompanho-os em todas as suas aventuras,
solidário com a verdade que não sabe cantar nem
descrever, mas que está espelhada na sua mocidade. Sei, de resto,
que a função de uma árvore nova não é dar bons frutos, mas
irradiar confiança. No pomar onde já todos os pólens se cruzaram,
é ela que traz a virgindade de uma promessa. Às vezes sai cereja
bichosa. Paciência. O seu corpo foi morada de uma inquietação, e,
enquanto o foi, teve a flâmula azul da vida a drapejar nos seus
ramos.
O facto de eu existir, é um argumento sólido para eu não abdicar;
mas o facto de um jovem existir ao meu lado, é um argumento para uma
conclusão mais sólida ainda: que a própria vida não abdicou, e
que é preciso ser-lhe fiel, acompanhando-a na sua esperança..
Miguel Torga,
“Diário III”, pág. 128,
1954, Coimbra.
Sem comentários:
Enviar um comentário