Coimbra,
16 de Outubro de 1945
– Uma
cobra de água numa poça do choupal, a gozar o resto destes calores,
e umas meninas histéricas aos gritinhos, cheias de saber que o bicho
era tão inofensivo como uma folha.
Por
fidelidade a um mandato profundo, o nosso instinto, diante de certos
factos, ainda quer reagir. Mas logo a razão acode, e o uivo do
plasma acaba num cacarejo convencional. Todos os tratados e todos os
preceptores nos explicaram já quantas espécies de ofídios existem
e o soro que neutraliza a mordedura de cada um. Herdamos um mundo já
quase decifrado, e sabemos de cor as ervas que não devemos comer e
as feras que nos não podem devorar. Vivemos numa paz de animais
domésticos, vacinados, com dentes caninos a trincar pastéis de
nata, tendo aos pés, submissos, os antigos pesadelos da ignorância.
Passamos pela terra como espectros, indo aos jardins zoológicos e
botânicos ver, pacata e sàbiamente, em jaulas e canteiros, o que já
foi perigo e mistério. E, por mais que nos custe, não conseguimos
captar a alma do brinquedo esventrado. O homem selvagem, que teve de
escolher tudo, de separar o trigo do joio, de mondar dos seus
reflexos o que era manso e o que era bravo, esse é que possui
verdadeiramente a vida e o mundo. Diante duma natureza inteira e una,
também ele tinha necessàriamente de ser inteiro e uno. Sem amigos e
sem vizinhos, sòzinho contra
as árvores e contra as sombras, ele era uma fortaleza em si, tendo
na própria pele as ameias. Que totalidade a de um ser que não pode
confiar senão em si! Socialmente, seremos assim (e somos,
certamente) mais fáceis de conduzir, mais úteis, mais progressivos.
Mas, individualmente, a que distância estamos de um homem das
cavernas! Que tamanho o dele, a caçar bisões, e que pequenez a
nossa, a ganhar taças em torneios de tiro aos pombos!
O nosso gritinho de horror diante de qualquer lesma dá bem a
perdição a que chegámos. Civilizámo-nos, mas à custa da nossa
mais profunda integridade, dispersando-nos nas coisas que fomos
desvendando.
Na cobra de hoje ninguém viu sinceramente veneno ou orte. Vimos
todos, sim, o manual que aprendemos no liceu. E o estremecimento das
meninas histéricas, eco delido do uivo profundo de pavor e de
incerteza dos nossos antepassados, foi dum ridículo tal que
respingou outros aspectos e outros recantos da existẽncia. Que
espécie de sinceridade profunda, de lealdade incontroversa, haverá,
por exemplo, em acreditar em Deus com a bomba atómica na mão?
É bem que o homem faça todas as experiências, inclusivamente
consigo. Que liberte a energia das pedras e se liberte também a si
de todas as clausuras. Mas os instintos? Poderá, na verdade, ele
viver desfalcado dessa força que o fechava como um punho e lhe dava
uma coesão igual à dos átomos antes de serem bombardeados? Pelo
caminho que levamos, um dia virá em que tudo em nós será
consciência, compreensão e sabedoria. Mas nessa mesma hora
estaremos desmpregados no mundo. Todos os saberemos resolver a
equação da vida na ardósia negra onde dantes eram as trevas da
nossa virgindade criadora, mas talvez já não haja vida, então.
Miguel Torga,
“Diário III”, pp.
129-131,
1954, Coimbra.
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