REQUIEM
PARA GODOT
Hoje
é de morte o poema.
Não
direi já do desejo azul lírico de fuga
pois
todas as mãos erguidas se baixaram e
[depuseram as armas.
Quem
um dia disse que tudo vale a pena
errou
tão grandemente como o que disser
[que nada vale a pena.
A
verdade é que não vale a pena.
Dizer
tudo ou dizer nada é um excessivo e
[inútil esforço.
Hoje
o poema é de morte, de abandono e nem
[sequer já de mãos crispadas.
E
não direi do choro, já não direi do choro,
mas do sorriso branco da desesperança.
Não
há mais cais, nem barcos, nem gares
[donde se sonhem idas, porque é inútil ir.
Sei,
sei hoje muitas coisas porque é de morte
[o poema
sei
que o suicídio é um acto enorme de iló-
[gica
esperança
como
a fuga ou o ódio ou o amor
sei
que o suicídio é um logro e que a verdade
está na rendição ou na quotidiana morte
que me faço.
Não
direi hoje das portas que me trancam
ou dos braços que me sufocam e por estra-
nho que pareça as paredes são-me gratas
e irmãs.
Só
elas, as paredes brancas, conhecem o ver-
dadeiro desespero porque são irremedià-
velmente brancas e quietas.
O
que dói é saber que seria igualmente
[amargo o oitavo continente.
Maria
do Céu Guerra, “São Mortas as Flores”, pp. 11-12, ed.
Best-Sellers (Or. Jorge Daun) – extra volume B, Lisboa, 1963.
SE...
SE...
Se
não tivesse dado o facto meramente
acidental de ter nascido
o que eu tinha perdido...
Não
teria hoje o amor que não tenho
não
poderia ver aniquilados os que ganharam
a vida a jurar mentiras em papel selado
nem
a ponte sobre o Tejo me poderia ser uma
[realidade.
Oh,
o que eu tinha perdido...
Era-me
vedado por exemplo o ver cumpridas
as leis do Evangelho – amor, caridade,
confiança
não
veria a felicidade que vejo em cada olhar
nem
a grande lição da salvação das vidas
nem
o pequeno acrobata inventado diària-
[mente delirantes momices
talvez
nem o pequeno acrobata verde e ver-
[melho existisse
porque
fui eu que o inventei para que saltasse
dores em verde e encarnado e esquecesse o
amor-pão em cambalhotas.
Não
teria podido ver, o que era pena, a
enorme
vitória do Bem sobre o Mal, do
Génio
sobre o Dinheiro, do Espírito sobre
a
Matéria, do Homem sobre a Máquina.
O
que eu tinha perdido...
Perdia
a lei grandiosa, repetida dia a dia
[pela
imprensa, proibindo a mentira
e a
eficiente campanha contra a analfabeti-
[zação
perdia
o espectáculo grato e edificante das
mãos, das mãos de todos, a estenderem-se
abertas em dádiva constante.
No
fim de tudo isto eu quase creio
que
o facto de ter nascido
nem
sequer foi meramente acidental.
Maria
do Céu Guerra, “São Mortas as Flores”, pp. 9-10, ed.
Best-Sellers (Or. Jorge Daun) – extra volume B, Lisboa, 1963.
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