“Marialva é o antilibertino
português, privilegiado em nome da razão de Casa e Sangue, cuja configuração
social e intelectual se define, nas suas tonalidades mais vincadas, no decorrer
do século XVIII.
No convencionalismo popular (ou
antes pequeno-burguês) marialva é o fidalgo (forma primitiva de «privilegiado»)
boémio e estoura-vergas. Socialmente será outra coisa: um indivíduo interessado
em certo tipo de economia e em certa fisionomia política assente no
irracionalismo.”
José Cardoso Pires, “Cartilha do Marialva - ou das negações
libertinas”, Editora Ulisseia, p.9, Lisboa, 1967.
“Por sua vez, a Política e a
Administração, perdendo o estímulo da crítica activa, desligam-se gradualmente
do cidadão, irresponsabilizam-no. Passam a construir uma actividade de
clientelas que procuram formas de manutenção desse equilíbrio social à custa de
soluções imediatas, de sobrevivência pelo dia-a-dia, como é uso tradicional dos
providencialistas e dos caciques locais.”
José Cardoso Pires, “Cartilha do Marialva - ou das negações
libertinas”, Editora Ulisseia, p.66, Lisboa, 1967.
“Fatalidade do tempo, a Ciência
apresenta-se como desafio irrecuperável às verdades eternas, como heresia ou
exibicionismo, aventura que tende a reduzir o homem à máquina sem alma. E a
arte como exploração pretensiosa, ou ainda: ocupação para inadaptados.
Hollywood, as biografias em série e os comic
strips distribuem esse retrato exótico do intelectual: o sábio débil e
lunático; Chopin compondo num acesso de fúria enquanto o vendaval lhe destelha
a casa; Van Gogh, o pintor de uma orelha por uma prostituta; Bocage, o das
anedotas e dos sonetos entre sécias.
Com isto, isola-se o intelectual
do convívio comum, recusa-se-lhe o estatuto dos valores colectivos. Melhor
dito: propõe-se-lhe uma disfarçada alienação, tolerando-a à margem e
enaltecendo-lhe as irresponsabilidades. Dá-se-lhe o lugar dos predestinados ou
a condescendência dos ingénuos semiloucos – e fica defendida a sociedade de
ideias pelo menos ociosas. E simultâneamente «eternizada» a obra de criação.”
José Cardoso Pires, “Cartilha do Marialva - ou das negações
libertinas”, Editora Ulisseia, p.105, Lisboa, 1967.
“Com tantas facetas e quase
sempre genialmente expostas, Fernando Pessoa projectou o seu desejo de
universalidade com ideias que permitiram explorações posteriores da parte dos
pensadores menores que lhe sucederam. O irracionalismo dos passadistas soma D.
Sebastião ao Supra-Camões e monta a sua interpretação providencialista da
História. Daqui a uma teoria natural das elites («os génios de nascença») é um
salto minúsculo e, vai não vai, está declarada a divinização do poder, a
aceitação dos predestinados.
Agora, sim, pode falar-se da «missão do Estado que opõe obediência ao
espírito de revolta e a renúncia à ambição» e estende-se esta palavra de ordem
colectiva à manutenção da ordem doméstica. Bem entendido, Pessoa não foi tão
longe. Mas nas viagens e contraviagens que fez no domínio da especulação deixou
muitos sinais que os integralistas e outros aproveitaram como padrões de honra
na sua restauração do Portugal Antigo.”
José Cardoso Pires, “Cartilha do Marialva - ou das negações
libertinas”, Editora Ulisseia, pp.186-7, Lisboa, 1967.
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