14/07/2019

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S. Martinho de Anta, 14 de Julho de 1946 Mesmo que se não queira, uma carruagem de comboio é um lar temporário. Os nossos vizinhos do lado chegam-se a nós como irmãos, e os da frente bafejam-nos como avós. Se a viagem é curta, a intimidade é discreta e em certa medida higiénica. Mas se é longa, se o percurso vai do Porto ao Pinhão, acaba-se na confidência da urina e das eructações. Como acontece na mais respeitável família, há de tudo, ali em materia de humanidade. A velha sabedoria de que temos cinco dedos em cada mão e nenhum é igual, também está certa num trem. Todos os passageiros que vinham no compartimento em que hoje viajei verificaram isso à saciedade.
O casal da demonstração entrou em S. Bento. Ela tinha cara de má, viu-se logo, mas trazia um filho ao colo, e ficou, portanto, ilibada em princípio de toda a mácula. Mulher parida é mulher absolvida. Ele tinha apenas um dente podre. De repente, mesmo antes de o comboio se pôr em andamento, começou o barulho. Ela encheu o compartimento de insultos, e ele imitou-a. O filho dormia.
Como ainda não houvesse tempo para cada qual se compenetrar dos seus deveres, o sobressalto foi inevitável. A ideia de uma outra carruagem e de uma outra família passou pela cabeça de todos. Mas o comboio estava repleto e havia malas. Por isso, assentou-se na resignação.
No meio da ansiedade que qualquer renúncia implica, a voz da máquina, a avisar que partia, foi como um penso. O movimento areja o corpo e o espírito, e os dois desavindos não podiam fugir à regra. A escuridão do túnel que veio logo, ajudou esta esperança. Mas era uma miragem. Apenas a luz do sol escarolou aquela sala doméstica, o conflito continuou.
Lógicamente a família inteira afilou então os ouvidos a fim de perceber a razão da contenda. Já nos outros compartimentos havia risos de troça, e era preciso documentar aquela solidariedade que o acaso impunha. Tarefa muito difícil. Os fundamentos da zanga remontavam aos tempos pré-históricos da vida particular dos dois, quando não eram ainda nossos parentes.
Uma coisa se viu claramente: é que todos, à uma, se pusera ao lado do homem. Primeiro, porque gritava menos; segundo, porque não era ele que limpava o rabo do menino, embora ajudasse.
Por alturas de Mosteirô, já quando não havia mais insultos no dicionário nem lágrimas nos olhos da Madalena, o mistério começou a aclarar-se.
Estava na base do conflito a sogra, que perdera o comboio, trazia contrabando, e talvez tivesse sido presa. O rapaz, claro, sofrera; a mulher rejubilara. Daí a desarmonia.
O resto da família compunha-se de uma velhota corada e simpática, que passou o caminho calada, a encher o biberão do menino. Viu o pai aflito naquela prática, pediu licença, e fez ela o serviço. Ninguém lhe agradeceu a gentileza, mas ela, mesmo assim, continuou a tarefa. Toda a gente deve trabalhar, numa casa.
Mesmo ao lado da fera, sentava-se um cavalheiro de olhos azuis, alto, que era o Gary Cooper por uma pena. Até na filosofia se pareciam. Quando um novo passageiro entrou, como a megera ocupava dois lugares, o pobre ficou apertado entre duas forças hostis. A que vinha, que queria espaço, e a que estava, que não cedia espaço. Mas não se desconcertava. Manteve um sorriso compreensivo nos lábios, esperou, e quando a Eva por sua recriação tirou de cima do banco a cesta dos cueiros e se compôs, passou-lhe pelos olhos o làmpejo mais irónico e mais fino que vi.
Havia ainda um rapaz ruivo, que tentou alegrar aquela tristeza com uma gaita de boca, mas desistiu, e um sujeito gordo que comeu bolos de bacalhau todo o caminho.
Os polos da família, porém, eram o casal, e também o filho, que parecia um rato, e chupava na teta do frasco como um aspirador mecãnico.
Ninguém olhava sequer a paisagem, que entrava pelas janelas, verde e generosa. O rio ia ali ao pé na sua pobreza doirada, e a estrada de Rezende, do lado de lá, fazia piruetas na encosta. Em vão. Lembro-me ao todo de ver um cacho de malvasia pendurado numa ramada. Tal era o constrangimento!
Na Régua, o rapaz foi telegrafar à mãe. E a mulher ficou finalmente só, sem alvo para esvaziar aquela bílis que não tinha fim. Ferrou, por isso, os olhos no chão, e estendia de vez em quando a chupeta à senhora corada, que se apressava a enchê-la sem dizer palavra.
Mas o comboio pôs-se em andamento antes de o rapaz aparecer. E a mulher, que lhe tinha dito de todas as maneiras que a deixasse, que não lhe pusesse mais os olhos em cima, que maldita a hora em que o conheceu, começou aos gritos. Todos lhe garantiam que o homem vinha atrás, noutra carruagem. Nada. O Gary Cooper, manhoso, explicou que o vira passar para a ambulãncia. Pior. As lágrimas inundavam tudo.
No Ferrão, o desaparecido apareceu. E todos esperaram ver finalmente, a luz da harmonia e da paz raiar entre aquelas almas. Qual o quê! Uma girândola de insultos coroou miseràvelmente a cena.
Por fim, já quando não havia esperanças, o homem descascou um pêssego, ia a metê-lo à boca, mas suspendeu o gesto e ofereceu-o à mulher. E o milagre deu-se. Como no paraíso, tinha de ser um fruto a uni-los para o bem e para o mal.
E foi então que eu deixei aquele lar que durou quatro horas, acompanhado de um adeus compreensivo da senhora corada e de um olhar inteligente do Gary Cooper.

Miguel Torga, “Diário III”, pp. 183-187, 1954, Coimbra.

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