“Aristóteles
fala de poesia sublime e vulgar, e esta oposição, explicitada sobretudo na
oposição tragédia/comédia, reflecte desde início a organização social nas suas
duas classes: a classe dos senhores, voltada para cima, onde normalmente é a
residência dos deuses, e a classe dos servos voltada para baixo, onde
normalmente é o trabalho e a produção. Enquanto a tragédia representa a
reverência perante a ordem que vem de cima a comédia ocupa-se da ‘baixa humanidade’.
O facto de as tragédias terem sido proibidas muito mais raramente que as
comédias está ligado à própria propensão destas para transgredir os limites do
papel ético-social das classes oprimidas. Não é só o desfecho que distingue radicalmente
este dois géneros e está a priori
fixado, mas também a construção e a intenção. Em termos claros e evidentes,
poderiam reduzir-se os dois géneros às seguintes combinações: se há senhores
logrados por deuses ou por outros
senhores é trágico; se há servos logrados por servos ou por senhores é cómico;
as restantes combinações estão fora do âmbito do sistema poetológico.
Pelo século XVIII, este estado de coisas começou a
desagregar-se, dentro do processo geral de desagregação de toda a estrutura da
sociedade antiga, que se baseava numa ‘razão’ transcendente e não racional e,
menos ainda, existencial. Esta libertação da arte literária da transcendência absoluta
dos estilos e dos géneros faz portanto parte da libertação da consciência
operada ao longo do processo da revolução burguesa.
Acontece, porém, que esta quebra de estrutura social libertou
não só o produtor de arte literária como também o seu consumidor, o público;
formou-se por essa época um novo público, naif no que toca ao conhecimento da técnica literária
tradicional, interessado no consumo e assimilação de um novo tipo de arte,
menos complexa e cifrada, mais espontânea e posta naturalmente ao serviço dos
seus específicos interesses de classe, reais ou ideais.”
Alberto Pimenta in “O Silêncio dos Poetas”, pp. 21-23, Edições
A Regra do Jogo, Lisboa, 1978.