25/03/2014

...

“Aristóteles fala de poesia sublime e vulgar, e esta oposição, explicitada sobretudo na oposição tragédia/comédia, reflecte desde início a organização social nas suas duas classes: a classe dos senhores, voltada para cima, onde normalmente é a residência dos deuses, e a classe dos servos voltada para baixo, onde normalmente é o trabalho e a produção. Enquanto a tragédia representa a reverência perante a ordem que vem de cima a comédia ocupa-se da ‘baixa humanidade’. O facto de as tragédias terem sido proibidas muito mais raramente que as comédias está ligado à própria propensão destas para transgredir os limites do papel ético-social das classes oprimidas. Não é só o desfecho que distingue radicalmente este dois géneros e está a priori fixado, mas também a construção e a intenção. Em termos claros e evidentes, poderiam reduzir-se os dois géneros às seguintes combinações: se há senhores logrados por deuses  ou por outros senhores é trágico; se há servos logrados por servos ou por senhores é cómico; as restantes combinações estão fora do âmbito do sistema poetológico.

[…]

Pelo século XVIII, este estado de coisas começou a desagregar-se, dentro do processo geral de desagregação de toda a estrutura da sociedade antiga, que se baseava numa ‘razão’ transcendente e não racional e, menos ainda, existencial. Esta libertação da arte literária da transcendência absoluta dos estilos e dos géneros faz portanto parte da libertação da consciência operada ao longo do processo da revolução burguesa.

Acontece, porém, que esta quebra de estrutura social libertou não só o produtor de arte literária como também o seu consumidor, o público; formou-se por essa época um novo público, naif no que toca ao conhecimento da técnica literária tradicional, interessado no consumo e assimilação de um novo tipo de arte, menos complexa e cifrada, mais espontânea e posta naturalmente ao serviço dos seus específicos interesses de classe, reais ou ideais.”


Alberto Pimenta in “O Silêncio dos Poetas”, pp. 21-23, Edições A Regra do Jogo, Lisboa, 1978.

Sem comentários: