pintura de Dieter Wanczura |
No prefácio da famosa antologia do Kokinshû (“Colectânea de poemas de outrora e de agora”) publicada
em 905, que define a sensibilidade e a estética da época Heian, lê-se que a
poesia “comove céu e terra”, suscita a piedade de demónios e dos deuses
invisíveis, impregna de ternura os laços entre homem e mulher, distrai o
coração dos ferozes guerreiros. No século X, ir-se-á tornando aos poucos uma
arte de viver, uma arte suprema, que pode contribuir para se atingir a verdade.
Por isso , era pelo talento de redigir poemas que se avaliava o grau de
perfeição de um homem ou de uma mulher. Para um homem ser capaz de escrever um
poema chinês era prova da sua sabedoria no domínio do governo e constituía a
chave do seu sucesso na carreira política. Para uma mulher, escrever um poema
recorrendo ao meio mais simplificado do silabário japonês revelava a sua
nobreza, o seu requinte e a sua delicadeza. A poesia estava sempre presente na
vida quotidiana. No palácio ou nas residências das grandes famílias, efectuavam-se
concursos de poesia sobre um tema escolhido, de acordo com as estações: as
flores da ameixoeira na Primavera, a lua de Outono, os crisântemos rosados pela
geada… Todavia, e mais simplesmente, a poesia era um meio corrente de as
pessoas se corresponderem. Os homens, que reservavam o chinês para os assuntos
do Estado, redigiam, como as mulheres, waka,
poemas japoneses de cinco versos com cinco, sete, cinco, sete e sete sílabas,
para darem ou pedirem notícias, felicitarem alguém por ter sido promovido, etc.
Nos momentos graves, antes de se partir para o exílio ou para a morte,
escrevia-se um último poema. E, muito naturalmente, o domínio em que a poesia
ocupava o maior lugar era, como aliás em todo o lado, o amor. Todavia no Japão
a poesia convertera-se em ritual das relações amorosas, de um requinte e de um
estetismo inigualáveis. Mal um homem regressava a casa, após a sua primeira
noite de amor em casa de uma mulher, escolhia um papel bonito, da cor que mais
se adequasse ao seu tema, pegava no pincel e na pedra de tinta e caligrafava
com o maior cuidado um poema a que prendia um ramo de pinheiro, de glicínia ou
de qualquer outra flor, de acordo com a estação e a imagem que tinha evocado.
Um jovem pajem, de bela figura e discreto, ia entregar o poema e esperava pela
resposta da dama, que tinha o dever de responder com uma imagem, uma alusão,
continuando assim o diálogo iniciado. Um poema que não desse a resposta
esperada, ou tivesse sido escrito com uma caligrafia pouco esmerada, causava
muito má impressão. O homem esperava impacientemente descobrir a mão da sua
bem-amada, como ela própria tinha esperado descobrir a dele. Para ele, o poema
era como que um espelho das qualidades do seu coração. Desde a mais tenra
infância que as raparigas eram iniciadas na arte da poesia e da caligrafia,
visto que as duas eram inseparáveis. Fosse qual fosse o tema, deviam ser
capazes de escrever rapidamente um poema. Citar um verso de um poema antigo,
chinês ou japonês, era a prova da maior distinção, mas, para isso, era preciso
possuir não só inspiração, mas também uma vasta cultura, e é evidente que nem
todas as mulheres tinham acesso a essa cultura, que continuava a ser apanágio
da aristocracia e do meio da corte. Para um reduzido número de grandes
poetisas, como Musaraki Shikibu, Izumi Shikibu ou Sei Shônagon, quantos
talentos medíocres haveria? Seja como for, a poesia foi-se infiltrando cada vez
mais nas classes sociais mais baixas e o Konjaku
monogatori, com as suas inúmeras histórias recheadas de waka, mostra bem que a cultura da
aristocracia se perpetuou, passando a ser um modelo. O meio mais seguro para
uma mulher conquistar um homem era, para além da sua beleza, a poesia. A
sensibilidade e a delicadeza eram as qualidades femininas que o homem mais
apreciava. Graças a alguns versos bem escritos, uma esposa trocada por outra podia sair de uma situação
desesperada (XXX, 10, 11, 12), se o marido fosse igualmente um homem sensível. Se fosse um guarda brutal e inculto (XXIV, 50), a poesia não surtia efeito e
contradizia o prefácio do Konjaku
monogatori.