14/04/2013

"Já são coisas do passado"...

pintura de Dieter Wanczura

      No prefácio da famosa antologia do Kokinshû (“Colectânea de poemas de outrora e de agora”) publicada em 905, que define a sensibilidade e a estética da época Heian, lê-se que a poesia “comove céu e terra”, suscita a piedade de demónios e dos deuses invisíveis, impregna de ternura os laços entre homem e mulher, distrai o coração dos ferozes guerreiros. No século X, ir-se-á tornando aos poucos uma arte de viver, uma arte suprema, que pode contribuir para se atingir a verdade. Por isso , era pelo talento de redigir poemas que se avaliava o grau de perfeição de um homem ou de uma mulher. Para um homem ser capaz de escrever um poema chinês era prova da sua sabedoria no domínio do governo e constituía a chave do seu sucesso na carreira política. Para uma mulher, escrever um poema recorrendo ao meio mais simplificado do silabário japonês revelava a sua nobreza, o seu requinte e a sua delicadeza. A poesia estava sempre presente na vida quotidiana. No palácio ou nas residências das grandes famílias, efectuavam-se concursos de poesia sobre um tema escolhido, de acordo com as estações: as flores da ameixoeira na Primavera, a lua de Outono, os crisântemos rosados pela geada… Todavia, e mais simplesmente, a poesia era um meio corrente de as pessoas se corresponderem. Os homens, que reservavam o chinês para os assuntos do Estado, redigiam, como as mulheres, waka, poemas japoneses de cinco versos com cinco, sete, cinco, sete e sete sílabas, para darem ou pedirem notícias, felicitarem alguém por ter sido promovido, etc. Nos momentos graves, antes de se partir para o exílio ou para a morte, escrevia-se um último poema. E, muito naturalmente, o domínio em que a poesia ocupava o maior lugar era, como aliás em todo o lado, o amor. Todavia no Japão a poesia convertera-se em ritual das relações amorosas, de um requinte e de um estetismo inigualáveis. Mal um homem regressava a casa, após a sua primeira noite de amor em casa de uma mulher, escolhia um papel bonito, da cor que mais se adequasse ao seu tema, pegava no pincel e na pedra de tinta e caligrafava com o maior cuidado um poema a que prendia um ramo de pinheiro, de glicínia ou de qualquer outra flor, de acordo com a estação e a imagem que tinha evocado. Um jovem pajem, de bela figura e discreto, ia entregar o poema e esperava pela resposta da dama, que tinha o dever de responder com uma imagem, uma alusão, continuando assim o diálogo iniciado. Um poema que não desse a resposta esperada, ou tivesse sido escrito com uma caligrafia pouco esmerada, causava muito má impressão. O homem esperava impacientemente descobrir a mão da sua bem-amada, como ela própria tinha esperado descobrir a dele. Para ele, o poema era como que um espelho das qualidades do seu coração. Desde a mais tenra infância que as raparigas eram iniciadas na arte da poesia e da caligrafia, visto que as duas eram inseparáveis. Fosse qual fosse o tema, deviam ser capazes de escrever rapidamente um poema. Citar um verso de um poema antigo, chinês ou japonês, era a prova da maior distinção, mas, para isso, era preciso possuir não só inspiração, mas também uma vasta cultura, e é evidente que nem todas as mulheres tinham acesso a essa cultura, que continuava a ser apanágio da aristocracia e do meio da corte. Para um reduzido número de grandes poetisas, como Musaraki Shikibu, Izumi Shikibu ou Sei Shônagon, quantos talentos medíocres haveria? Seja como for, a poesia foi-se infiltrando cada vez mais nas classes sociais mais baixas e o Konjaku monogatori, com as suas inúmeras histórias recheadas de waka, mostra bem que a cultura da aristocracia se perpetuou, passando a ser um modelo. O meio mais seguro para uma mulher conquistar um homem era, para além da sua beleza, a poesia. A sensibilidade e a delicadeza eram as qualidades femininas que o homem mais apreciava. Graças a alguns versos bem escritos, uma esposa trocada  por outra podia sair de uma situação desesperada (XXX, 10, 11, 12), se o marido fosse igualmente um homem sensível. Se fosse um guarda brutal e inculto (XXIV, 50), a poesia não surtia efeito e contradizia o prefácio do Konjaku monogatori.

Dominique Lavigne-Kurihara, P. Quignard, “Histórias de amor de outros tempos”, Cotovia – Série Oriental,  pp. 195-196, Lx, 2002.

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